Mergulho na escuridão de rostos enevoados, à medida em que adentro as profundezas do vazio, as faces se acumulam ao meu redor, rodopiando em volta do meu corpo, elas me circulam. Aos poucos, começo a perceber que uma destas estranhas faces se assemelha a minha.
— Olá, já faz anos que não conversamos! — Diz minha réplica, sua voz é extremamente suave. O ser não fala normalmente como nós, seus sussurros são ouvidos apenas pela minha mente, como uma comunicação telepática.
— Não sei quem é você! E também não me importo! Ande logo, me leve para este tal imperador! Para que ele me liberte deste pesadelo! — Digo gritando com esta cópia fajuta de mim. Este encontro é inútil, uma perda de tempo que não possuo.
— Henrique… Henrique… Eu sei… ou melhor dizendo, no fundo, das entranhas da sua mente, você sabe que nunca houve liberdade. Há apenas o ciclo, a rotina, a mesma repetição de eventos sem sentido, sempre, sem objetivos, sem ambições, apenas a existência. Ambos somos seres sem propósito, seres vazios. O vazio é o mais próximo da liberdade que iremos ter. — Diz a estúpida réplica, mesmo que haja verdades em suas palavras, não devo me preocupar com isso, pois, agora, apenas a volta ao mundo real importa.
— Não me interessa! Só quero deixar este maldito lugar… — Conforme confronto o ser a minha frente, começo a sentir a minha vida se esvair cada vez mais rapidamente. — O que está acontecendo… meu corpo, não consigo mais sentir ele, o que você fez? Não! Não! Não posso morrer aqui. Por favor! Eu te imploro! Me leve de volta… — Em vão, começo a implorar pela minha vida.
Minha última visão é minha réplica me dizendo.
— Não há como voltar, nós nunca seremos livres. Lamento, mas agora somos apenas mais uma face no vazio. — A voz ecoa em minha mente. A réplica havia desaparecido, tudo havia se extinguido, só me restou o vazio.
--*--
Fecho os meus olhos conforme caio, esperava atingir o fim deste abismo, porém, nada acontece. Quando abro meus olhos, vejo que as faces se acumularam ao meu redor. A neblina se aglomerou, formando uma réplica minha.
— A música, o piano, quanto tempo faz que não tocamos? Por que ainda tocamos? — Uma voz, semelhante à minha, soa suavemente pela minha mente.
— Não compreendo, como isso é relevante? Agora não é hora de se preocupar com a música! — Digo a névoa. Isto não faz sentido, como deveria chegar ao imperador? Este ser não deveria me levar até ele?
— Meu bem, sabemos que toda a hora é a hora de se preocupar com a música! Ela nunca deixa nossa mente, não importa o que estamos fazendo, ela sempre está lá, o piano sempre está lá, nos encarando, e nós o encaramos de volta. — Diz minha réplica. Estes são meus pensamentos mais íntimos, nunca foram compartilhados com ninguém. Como este ser pode saber tanto sobre as minhas reflexões mais obscuras? — Por que continuamos tocando? Por qual motivo persistimos no fracasso? Por que buscamos algo inalcançável? — Sinto estas perguntas perfurarem o meu coração, me levando a uma intensa reflexão sobre os meus objetivos.
— A música… A música é o verdadeiro, não, é o único objetivo que tenho na vida… — Digo, procurando uma forma para descrever os sentimentos que a música me traz. — O motivo pelo qual nunca irei parar de tocar é simples. As sinfonias que componho não são apenas sons aleatórios, são o meio pelo qual me conecto com os outros, são o meio que utilizo para inspirar meus semelhantes. — Digo com convicção, pois, sei que a minha música toca as pessoas e lhes devolve a esperança. — Se uma pessoa se inspirar com minhas composições já é o bastante para mim. — Digo conforme as lágrimas escorrem pelo meu rosto.
Minha réplica se distorce, e seu rosto se transforma em um macabro sorriso. Em um piscar de olhos, uma intensa luz amarela toma o seu lugar, ofuscando minha visão e sobrepondo a escuridão.
--*--
É como em um dos meus pesadelos, eu estou infinitamente caindo no vazio. Sem propósito, eu apenas flutuo em meio a névoa e a escuridão, decaindo na amargura do passado. Quando a névoa se torna uma réplica minha, não me surpreendo, já esperava que algo assim fosse acontecer.
— Novamente nos encontramos caindo. Desde que fomos diagnosticados, desde que paramos de lutar, nunca conseguimos deixar de cair. — Diz o ser, sua indagação está cem por cento correta. Eu tive minha chance de realizar o meu sonho, infelizmente, não tive êxito.
— Apenas me deixe aqui… não há mais um propósito, não há mais um objetivo… tudo que me restou foi a nostalgia e o vazio! — Digo a criatura. Não havia mais motivos para continuar com o teatro, me engajar socialmente com os demais, não, não, chega! Eu apenas quero estar em paz, eu aceito o vazio da minha existência.
— Oh! Agora vamos desistir! Não tente me enganar! Ainda possuímos o desejo de lutar! A chama ainda queima em nosso interior! — Diz o ser, é como se meus pensamentos mais íntimos ecoassem pela minha mente.
— Como? Como ainda posso lutar? O que devo fazer para acabar com a angústia? Por que… — Começo a questionar o meu outro eu, porém, o mesmo me interrompe quase que imediatamente.
— Sim! Sim! Estas são as perguntas que devem ser feitas, mesmo que a resposta seja óbvia, só devemos fazer o que sempre fazíamos. A única coisa que éramos bons em fazer é… — Diz o ser, pausando no final da frase, aparentemente, ele quer que eu a complete. Paro e penso, alguns segundos se passam, e a resposta vem naturalmente.
— Levantar! Como nos velhos tempos, tudo que posso fazer é me levantar! — A face da criatura se distorce em um estranho sorriso. Neste exato instante, um clarão amarelado reluz sobre nós.
Quando a luz se esvai, meus olhos se abrem e eu vejo um trono. Diferentemente do restante desta misteriosa cidade, o trono não é feito de luz, ele aparenta ser constituído pela própria escuridão, um objeto que se encontra em um estado físico completamente alienígena, diferente de qualquer um dos sete que conhecemos.
Sentado em seu tétrico trono, está o imperador. O ser possui duas orelhas pontudas, uma cabeça desproporcionalmente grande se comparada com seu corpo pequeno e esguio, o ser é tão magro que é possível ver os ossos em seu abdômen. Dois globos amarelos brilham intensamente como duas pequenas estrelas pela pele cinza clara do seu rosto, porém, o mais inquietante em sua forma inatural é o seu sorriso, que sempre está estampado em sua face.
Quando consigo desviar meu olhar deste horror, vejo que Laura está ao meu lado, e assim como eu, ela também está presa a uma estranha cadeira de madeira.
— Vocês passaram, ambos possuem um objetivo, um sonho. Felizmente, vocês ainda possuem o meio para efetuar o pacto, ainda há vestígios de vida, ainda há sangue. — Diz o imperador. Sua voz perfura a escuridão, a mesma é estranhamente similar a minha, porém, extremamente mais aguda, como uma agulha perfurando a mente.
— Estamos… queremos… — Não consigo encontrar as palavras para me dirigir a este ser elevado, pauso, respiro fundo e continuo. — Vossa excelência, nós três gostaríamos que o senhor nos levasse de volta ao nosso mundo! — Digo após alguns segundos de silêncio.
— Três? Hah… infelizmente seu companheiro era apenas um animal bestial, ele não possuía uma consciência avançada, na verdade, ele era, apenas, mais uma face no vazio. — Diz o imperador, seu macabro sorriso, brevemente, vacila em seu rosto.
Eu me viro para Laura, vejo que ela apenas encara o ser com as pupilas dilatadas, não conseguindo dizer uma palavra. Cabe a mim, continuar esta conversa, não posso me preocupar com Henrique, tenho que nos tirar daqui. Mesmo estando quase mortos, sinto, e acredito que Laura também sente, o pouco de vida que ainda nos resta, a pequena brasa ardendo em nosso interior.
— Vossa excelência, faremos qualquer coisa necessária para que possamos voltar à nossa realidade! — Digo fortemente. O sorriso do imperador se distorce em seu rosto.
— Maravilha! O renascimento é almejado por cada célula de seus corpos! Vocês devem aceitar os termos de meu pacto, caso o aceitem, vocês retornarão ao seu mundo e seus sonhos serão concretizados em troca do sangue. Depois que o sangue se esgotar, vocês virão para meu reino, se tornarão meus servos, porcos, que se alimentam da essência de seus semelhantes. — Diz o imperador. Enquanto a oferta é feita vejo vislumbres, tenho visões de meus maiores desejos se realizando.
— Sim! Sim! — Digo instantaneamente, não penso nas consequências, apenas aceito a realização do meu sonho.
— Sim! Sim! — Diz Laura, simultaneamente. Acredito que ela teve os mesmos vislumbres que eu, o mesmo sentimento, de que o inalcançável agora poderia ser alcançado.
Ao nos ouvir, o imperador se levanta de seu trono, e ergue seu braço cadavérico. Estrelas em miniatura brilham pela palma de sua mão, é como se ele controlasse o universo. Quando sua mão se fecha, meus olhos se fecham.
Em um piscar, meus olhos se abrem. Vejo os médicos ao meu redor, vejo a doutora Alice, estou em Corvus, havíamos voltado. Meus olhos se enchem de lágrimas, pois, agora estamos de volta a nossa realidade.
--*--
João e Laura foram salvos da morte, ambos ficaram dez segundos sem atividades cerebrais, infelizmente Henrique pereceu. Não sei dizer o motivo pelo qual este estado comatoso os havia atingido, ou o porquê de os medicamentos não afetarem seus corpos, teorizo que possivelmente a Sub-C.V.4 tenha afetado suas mentes e os levado a este estado de coma prematuro.
O restante do dia foi conturbado. Informei o comitê médico sobre os resultados inesperados, também como o falecimento de um dos participantes. Claro que isso levou ao cancelamento do experimento. Meu trabalho regressou à sua fase mais primitiva.
No fim do dia, dispenso os sobreviventes, os agradecendo por sua ajuda e lamentando pela situação em que os coloquei. Intrigada questiono ambos, buscando saber se eles tiveram algum tipo de experiência no momento em que jaziam comatosos, ambos negam, dizem que nada foi visto, não houve nenhuma experiência pós morte, ou relato fantasioso, apenas a escuridão. Nada, hum? Isso realmente é desanimador. Agora, eu só posso voltar ao início da pesquisa e tentar encontrar quaisquer erros que anteriormente foram negligenciados.
Meses se passaram, e a empresa cancelou o financiamento do experimento; Padrões Mentais. Meu trabalho foi encerrado, após anos de pesquisa, tudo que obtive foi o fracasso. Minha posição acadêmica foi retirada, minha carreira exterminada. Agora não me resta nada, além do vazio existencial.