Uma moça, que já amara outros rapazes, que já amara outras moças.
Está agora a amar um rapaz.
Ele é meninão, falante, sorri para tudo e todos.
Brincalhão...
Gosta de super-heróis, lutas, batalhas,
tem muitos amigos, é um menino adorado,
sempre muito bem falado.
Sempre correndo, pulando, gritando...
Faz muitas piadas sem graça,
e alguns riem,
e alguns se irritam.
Dia após dia, sempre mostrando ao mundo esse seu lado incrível,
Ele parecia ser invencível...
Seu sorriso é sua armadura...
(pena que ninguém o avisou, que armadura tão frágil como esta, quebra-se tão facilmente quanto cristal...)
Seus olhos seu ponto fraco, pois quem mais profundamente os olhasse,
mais profundamente veria sua dor.
Ela porém, gostava de olhar diretamente nos olhos,
e foi assim que se apaixonou.
Como pode um sorriso tão lindo esconder tanta amargura?
Como pode seus olhos, nas profundezas tão melancólicos, transmitirem tamanha doçura?
Moça pianista, gosta de sentir tudo com as mãos,
seus débeis dedinhos frios percorriam o rosto emoldurado de emoções...
Moço temeroso, não se deixa olhar nos olhos verdadeiramente tão facilmente.
Era preciso romper a armadura do sorriso formado por seus lábios tão delicados,
e era preciso muito cuidado, para não quebrar o cristal em partes pequenas demais que não pudessem ser remendadas mais tarde...
(tarde demais... uma vez espatifado, o cristal jamais voltaria a ser como era antes... pena que ninguém os avisou que a vida seria assim...)
Moça pianista que gostava tanto de sentir as coisas pelas pontas dos dedos,
já havia se esquecido, da sensação de um selar de lábios,
e ao senti-lo, macio como nuvens, doce como mel, molhado como chuva, quente como fogo em brasas, esqueceu-se de seus próprios medos...
Teria sido esse o seu erro?
A partir daquele momento, depositou nele toda sua confiança,
contou-lhe todos os seus sentimentos e suas inseguranças...
Contou-lhe seus sonhos mais profundos, contou-lhe seu passado, contou-lhe sobre as pessoas que já amara...
Agora sim, esse com certeza foi o seu erro!
O tempo foi passando, e mais rápido do que eles haviam planejado,
o destino tratou de fazer se conhecerem, a sogra e a nora.
De quem foi o erro?
A moça a muito queria conhecer a mãe de seu amado,
e este sempre inventando empecilhos, mas ela tanto insistiu,
e tanto
e tanto...
E fez e aconteceu, foram momentos felizes,
caronas alegres na volta da escola.
Sua mãe sempre tão faladora e brincalhona como o filho,
seu pai sempre cheio das piadas sem graças como as do filho,
e sua irmãzinha sempre tão fofa e tão birrenta como o irmão.
A moça, desde pequena acostumada a conviver e conversar com adultos,
dava-se muito bem com os pais de seu amado,
que vivia a dizer-lhes as coisas incríveis que a moça fazia.
Gostavam bastante da moça, o pai e a mãe do moço.
Ela é pianista! Que incrível!
Ela tem notas maravilhosas na escola! Uau!
Ela estuda japonês! Deve ser difícil heim!?
Sim, todos a achavam uma bela garota,
perfeita para seu filho...
Certa vez a moça convidou seu amado para estudar em sua casa,
em uma bonita tarde, apenas algumas poucas horas...
foi a primeira e a última vez que seu amado esteve em sua casa...
(Talvez esse tenha sido um erro...)
Afinal, iniciaram-se uma série de intrigas, mas infelizmente o moço não confessava para sua amada, todas essas terríveis brigas...
ele tinha medo de admitir, que a culpa fora sua por falar demais...
(mas que injustiça, um filho deveria poder contar qualquer coisa para seus pais, sem ser julgado, sem ser retalhado... mas pena que ninguém contou ao moço, que se ele se abrisse para seus pais, sua vida tornar-se-ia um inferno...)
Certa vez então o moço convidou sua amada para um passeio,
fora o passeio mais adorável, mais encantador,
e ficaram mais e mais apaixonados...
(pena que ninguém o avisou, que um passeio tão belo, puro e inocente como aquele, poderia se transformar em uma gigantesca e horrenda bola de neve nas garras da perversa imaginação de sua mãe...)
(pena que ninguém o avisou o quanto uma bola de neve pode ser cruel)
A moça, filha única, solitária, gosta de encontrar carinho nos abraços dos irmãos mais novos de seus amigos
e com a irmã mais nova de seu amado não poderia ser diferente
fazia de tudo pela menina, a amava e respeitava
como se fosse sua própria irmã...
Mas o moço, tempos atrás, inocente, havia dito para sua mãe que a moça já amara moças...
E então tem-se inicio a inquisição!
Pedras são jogadas e tiros disparados
de todos os lados
e os enamorados em meio ao fogo cruzado...
A mãe manda a moça afastar-se de seus filhos
tirar as garras perversas de perto de sua filha
e a pobre moça em completo desespero, sem saber o que fez de tão errado
e a mãe acusando e caluniando:
Vadia! Está usando meu filho! Sua cretina!
Cadela! Quer abusar da minha filha! Lésbica lazarenta!
Mas a moça infelizmente, culpa nenhuma tinha...
Melhor seria se a moça tivesse culpa, pois então a mãe estaria certa e com razão,
mas a verdade é que mentes doentias são perigosas
e bolas de neve são traiçoeiras...
A mãe voraz
inventou calúnias
inventou injúrias
difamou a moça aos quatro ventos,
tanto escárnio maldito...
Cidades pequenas são criaturas cruéis
todas as paredes tem ouvidos
todas as portas tem olhos
e todas as bocas guardam línguas venenosas...
Não tardou para que a moça fosse olhada com olhos de desprezo
fosse apontada com dedos de acusação.
É verdade, ela é uma lésbica nojenta!
Sim, eu ouvi dizer que abusou de uma menininha!
Dizem que ela organiza orgias!
Nojenta! Sinto nojo só de olhar para ela!
E a moça tentava ignorar os comentários,
tentava viver a vida,
mesmo imaginando todo o sofrimento
pelo qual seu amado estava passando nas mãos da mãe.
A mãe prendera o filho no quarto, sem nada,
sem comunicação alguma com o mundo externo.
Batia no garoto,
maldizia sua amada,
gritava e urrava com toda sua fúria:
Aquela lésbica do caralho!
Como você pode ter se aproximado dela!?
Impuro! Sinto nojo de você, só de pensar que você beijou a boca dela!
Só de saber que você segurou a mão dela, eu sinto nojo!
E batia, e gritava, dia após dia, sua mesma ladainha
até que semanas depois, todos os vizinhos com certeza conseguiram ouvir
os gritos de desespero do garoto, ao ter suas mãos serradas a sangue frio
e a língua decepada.
A irmãzinha via tudo que o irmão passava, de longe,
com medo e horror da própria mãe.
Ela tentara convencer a mãe, de que a moça nada tinha feito de errado,
de que a moça nunca havia se aproximado dela com segundas intenções,
mas a mãe cega de raiva, surda de ódio,
nem sequer escutara o que a menina tentara falar...
Sentindo-se assim, completamente inútil,
impotente, sem ter como ajudar seu irmão,
seu primeiro,
único,
e último sacrilégio,
foi tirar a própria vida, do pior modo que conseguiu imaginar, depois de ver a mãe serrar as mãos do irmão e decepar-lhe a língua.
Fez como havia visto em um filme,
enfiou a cabeça num saco plástico preto de lixo,
amarrou a boca do saco em seu pescoço,
e rapidamente amarrou as próprias mãos nas costas
com sua corda de pular preferida, azul e violeta,
antes que ficasse difícil de respirar.
Quando já estava com as mãos devidamente amarradas,
começou a sentir a falta de ar,
que foi piorando e se intensificando a cada segundo...
Por fim já caída no chão,
ainda se debatia em desespero,
tentando encontrar o ar que lhe era tirado dos pulmões...
Em vão...
Após minutos e minutos, do mais angustiante sentimento de agonia
sua inocente alma já não mais habitava seu áureo corpo...
Ao descobrir o corpo inerte de sua filha,
naquele estado deplorável, com as mãos amarradas nas costas
e o saco preto na cabeça,
a mãe gania, uivava e rugia enfurecida
personificando em seus sons abismais o seu mais puro ódio.
Animalescamente, a mercê de seus instintos mais bestiais
mordeu e dilacerou a carne da filha,
ululando os mais repugnantes e abomináveis urros de asco e execração.
Com as vísceras de sua filha ainda na boca,
ela guinchava e rastejava pelo chão
até chegar ao quarto do filho,
que de tanto perder sangue com as amputações,
estava com o corpo já hirto, em posição de profunda dor e horror,
empapado com o próprio sangue e com o próprio vômito,
jazendo moribundo e agonizante.
Ela se aproximo do filho, e cuspiu as vísceras em seu rosto.
Moleque morfético!
Tá vendo isso? Isso é o que sobrou da tua irmã!
Para de chorar seu lazarento!
Você não enxerga que é tudo culpa sua???
Cretino!
Tudo isso porque você foi se envolver com aquela lésbica!
Cala a boca!
Ou você quer que eu pense que você também é gay?
Vai defender aquela puta lá no inferno!
Asqueroso!
Feito todo este escarcéu, ela gritou mais,
e bateu mais,
e arrancou a roupa do filho.
Juntou com as mãos as vísceras agora já esparramadas pelo chão,
e introduziu-as no ânus do garoto com toda a brutal força que conseguiu reunir.
O garoto berrou e ganiu de dor,
os olhos quase saltando para fora das órbitas,
se debatendo o máximo que conseguiu, devido a sua moribundice que já o deixava quase sem forças até mesmo para respirar.
Por fim a mãe deixou-o estatelado no chão,
e sentou-se a alguns poucos metros,
e esperou, e observou cada leve movimento que o filho realizava, em sua agonia final.
Horas depois, após o filho finalmente dar seu último suspiro,
a mãe embalou seu corpo junto com o da irmã em sacos pretos,
colocou-os no carro, e dirigiu-se à casa da moça.
Lá chegando tocou freneticamente a campainha
até que a moça atendesse.
A moça, assim que abriu a porta e olhou para fora,
quase desmaiou com o que viu,
a mãe de seu amado toda imunda,
o corpo, as roupas, o cabelo, tudo empapado de sangue
e sua boca gotejante, escorrendo o avermelhadamente límpido e suculento líquido da vida.
A mãe gritava, urrava, gemia, se debatendo no portão da moça,
e a moça, em completo desespero corre para dentro de casa
e liga para a polícia.
Os vizinhos todos ouviam a ensurdecedora gritaria,
mas nem um deles ousou sair de dentro de casa...
A mãe não parou de gritar e se debater,
e quando finalmente a polícia chegou,
encontraram dentro do carro os dois corpos putridamente fedorentos...
A moça quis ver o corpo de seu amado e de sua irmãzinha,
e chorava, e lamuriava-se, e gemia, e queixava-se, e soluçava,
uivava sua mais profunda dor
sentindo em sua alma espasmos de agonia e sofrimento...
Ah! Quisera eu que ela também tivesse me matado!
Mas não, ela sabia que se tivesse me matado, teria acabado com minha angústia!
Mas agora viva... viverei o inferno!
Sentirei em mim, por todos os dias que me restam, os tormentos do abismo!
Malditas lembranças que eu nunca esquecerei!
Tudo isso simplesmente porque eu amei...
amei garotos... amei garotas...
amei você meu amado... amei sua irmã como se fosse minha própria irmã...
mas agora
estou livre
deste sentimento maldito.
Ah! O amor!