Numa tarde com ventos fortes, frios e malquistos pelos três, eles estendiam as mãos e apontavam os polegares para os carros que transitavam na estrada. Afastaram-se um pouco da universidade porque era sábado e não tinham disposição para assistir a aula. Para não desperdiçarem o tempo, foram parar num sujo boteco cujo preço dos litrões era baixíssimo, o que foi decisivo para lá ficarem. Pensavam que uma tarde de algumas cervejas era a única opção interessante se comparada a uma tarde de aula. Não tinham condições de beber muito, mas mesmo que não os deixasse bêbados, esta bebida os inspira às conversas mais divertidas e longas, ainda que com uma moderação forçada pela falta de dinheiro.
Atendidos por uma simpática senhora, contaram uns aos outros com a empolgação de amigos de infância que eram as coisas legais e as banais que viveram desde o último encontro. Com o primeiro gole de cerveja, Carla foi a primeira a falar - com uma fala vagarosa, calculada e forçadamente despretensiosa, contou da noite anterior e fingiu desinteresse pela moça com quem saiu, e Ezequiel para não chatear fingiu não perceber a vontade que ela demonstrava de reviver a noite que passou.
- Tive uma corrida de bicicleta com dois caras que encontrei pelo caminho - neste momento foi Ezequiel quem tomou a palavra. - Eles estavam vestidos com aquelas roupas coladas e aerodinâmicas, enquanto eu tava com as minhas de sempre. Eles estavam muito bem preparados e me pegaram distraídos. Mesmo assim acabei com eles – finalizou ele, sentindo orgulho e com muita autoconfiança, esperando a aprovação e a admiração das amigas.
Alícia, dissimulando o fato de saber que tudo o que ele disse foi mentira, acenou afirmativamente ao fim da história. Para não remoer a história e aproveitar melhor a tarde, contou-lhes sobre as séries que assistiu nas horas vagas.
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O fim daquela tarde de cervejas já estava se evidenciando pelo excesso de cigarros que fumavam e pela grana que não tinham, quando o pôr do sol despontou no horizonte cinzento. Os três partiram para a estrada já sem dinheiro para pegar qualquer condução e foram buscar carona, balançando seus polegares para os carros que passavam. Por quinze minutos não conseguiram nada, mas foram persistentes, até que um Pálio azul parou para ajudá-los.
- Pra onde vão? - perguntou o motorista, com uma expressão séria.
- Para o centro.
- Entrem. – acatou ao pedido, mantendo um contato visual firme. Isto dito, entraram radiantes por terem encontrado o que precisavam e também por se sentirem isolados do vento gélido que soprava onde antes eles estavam.
O motorista era muito alto, tinha os braços muito largos e musculosos, com cabelo curto e castanho, cortado em estilo militar. Falava num sotaque forte de Pernambuco e possuía um olhar que nunca desviava dos olhos daqueles que a ele se dirigiam.
Com o carro já em movimento, se calaram mais por respeito do que por timidez. Nos oferece uma carona e vamos importuná-lo ainda mais com nossas conversas e nosso maldito hálito de cerveja? Já basta o cheiro de cigarro. E também, o que tenho para falar agora? pensaram entrementes. O motorista iniciou a conversação, não se sabe se pelo estrondoso ruído do silencio que o obrigou a assumir papel de anfitrião ou se, no entanto, por realmente ter um assunto sobre o qual falar.
Começou por perguntas convenientes, que exprimiam a insensibilidade normal, generalizada, do cidadão formado em uma sociedade mercadológica. O que fazem da vida os três jovens?... O que pretendem se tornar?... E o mercado de trabalho?... Não chegou a pensar em fazer Direito e não História, já que gosta de ler? Por que não Medicina ao invés de Biologia? Acostumados que são com situações do tipo, não se incomodaram mais do que o normal.
- A universidade está lotada de duas gentes que eu não entendo, vocês concordam comigo? – disse ele.
- Quais? – perguntou Alícia, franzindo o cenho e lutando consigo mesma para transparecer curiosidade, já que o papo do motorista começou a estranhá-la. – Tem várias pessoas que eu não entendo, sinceramente...
Ela era a mais diplomática dos três amigos, agia com a naturalidade própria dos grandes oradores. Em situações do tipo, assumia o diálogo em qualquer grupo que estivesse. Alícia já foi diretamente atingida por muitos discursos com lugares-comuns, cujos argumentos a diminuíam pelo fato de ter pele negra e um grande cabelo Black Power. Era natural que ela tivesse receio de ser atingida pelo discurso que viria.
- Ah, mas não é óbvio? Já é o estereótipo, garota! – ele continuou.
- Mas não te entendo – disse Alícia,
- Ah! O que mais tem nesse lugar é, um – disse, levantando o dedo indicador. - , comunistas e dois – continuou, com o indicador e o anelar -, drogados. O que fode é que não é tão difícil de achar universitários que são comunistas e drogados ao mesmo tempo.
“Primeiro, os esquerdistas derrubam um regime mais do que consolidado na Rússia, se utilizando de uma doutrina mais do que falida, que já nasceu falida e se tornou ainda mais. Depois chamaram mais nações para participarem da união dos sovietes – da sua farsa -, e elas pereceram por muitas décadas naquele governo. Fome, eu falo de fome! Eu falo de milhões de ucranianos mortos!”
Entreolharam-se chocados.
“EM QUE LUGAR ESSE CARA APRENDEU A TER CORAGEM DE DIZER TANTA MERDA? ONDE FUI PARAR?” pensou Carla. Não era a primeira vez que cada um deles se sentia desajeitado numa carona, mas nunca a eles havia acontecido com tanta veemência, por isso sempre consideraram uma boa opção na falta de dinheiro. Boa ou má, é a única.
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Carla ficou absorta na paisagem da cidade que se movimentava pela janela. Intercalou a visão de seu cabelo liso que ia até os ombros, de sua face alva e rosada no reflexo do carro, com a outra vista das ruas e dos transeuntes. É uma excelente cronista, presta muita atenção nas pessoas que passam para tentar adivinhar o que estão a pensar, quais as suas motivações para quererem chegar em casa ou para estarem fora dela. O carro do Motorista Exaltado ultrapassa as casas, e ela analisa a personalidade dos contornos arquitetônicos e o que pode haver dentro delas. A arquitetura do domicílio expõe muito sobre os donos e se nada dizem sobre seus gostos e interesses, são claras sobre a condição social.
Demorou a perceber, mas eles estavam indo bem mais para o leste ao passo que o centro em contrapeso era para oeste. O condutor não dava sinais de que mudaria a direção e rumaria ao centro. No sol desaparecendo por completo, entraram em um bairro bem afastado, pontilhado por terrenos baldios cujas ruas eram estreitas e escuras. Se Carla já não estava assustada o suficiente, esta visão, na circunstância na qual estava, bastou.
- Sabiam que é em situações adversas que a gente mais aprende? – disse o Motorista, lacônico.
- De fato, algumas vezes aprendi alguma coisa em situações que eu não tinha previsto – disse Alícia.
- Pensem dessa forma – Olhou para Alícia e voltou-se para os outros dois colegas no banco traseiro. – Será melhor se pensarem assim.
- Sabe, esses universitariozinhos tem tanta pretensão. – recomeçou o Motorista.
- O que disse? – respondeu ela, sobressaltada. - Pra onde estamos indo?! – Alícia enfureceu-se.
- Têm imaginações pretensiosas e ficam em saraizinhos banais recitando seus poemas e pedindo carona a estranhos porque leram Jack Kerouac e acham que fazendo isso ficarão mais legais. Ainda ficam distribuindo sorrisos falsos. Mas vocês não mudam porra nenhuma do mundo, sabia?
- Pra onde estamos indo?! – perguntou Alícia. O motorista estava fazendo menção de continuar, mas ela, enfurecendo-se, cortou a fala.
“TÁ LEGAL, AGORA FICOU MUITO ASSUSTADOR!” pensou Alícia.
Ao virar uma vez mais para a direita e afastar-se ainda mais do ponto de carona combinado, chegaram a uma rua deserta. O homem manobrou o carro, encostando-o ao paralelepípedo que ficava defronte a um terreno relativamente pequeno, porém vazio e tenebroso.
- Vocês sabem o que faço com quem me interrompe? – disse com uma fúria transparecida na face, com as veias das têmporas e do pescoço saltadas. Alícia, Carla e Ezequiel ficaram acobardados. Numa pausa, ele encarou cada uma das faces dos estudantes.
- DESÇAM JÁ DO CARRO! – gritou ele. Assim como outros, abriu a sua porta.
A calçada estreita ficava ao lado direito do carro e eles saíram pelas portas nesta direção. O Motorista saiu pela esquerda como que para cercá-los... Fora de si, num passo vagaroso, abriu um pequeno sorriso de canto de boca e encarou-os parados na escada a olharem de volta para ele, sem entender bem aquilo.
“PUTA MERDA, EU SÓ QUERIA IR PARA O CENTRO!”, pensou Ezequiel, ainda mais transtornado do que as outras, porque esteve dormindo durante todo o percurso.
Ele sacou uma pistola 9mm e a apontou para os três jovens, com um sorriso completo de contentamento (o primeiro que deu durante toda a viagem) que só conseguiu mostrar ao usar toda a elasticidade do seu rosto.
- Solta essa arma, seu babaca! – disse Ezequiel, num ímpeto irracional.
- Não me provoque, você não sabe o que eu posso fazer com você. E não só com você, disso você também sabe... – ratificou o Motorista, com teu sorriso a sumir por inteiro do rosto, empunhando um revólver na mira da cabeça de Ezequiel. Este se assustou ainda mais de forma a não conseguir parar de tremer. Num momento como este, sua imaginação era maior inimiga do que o louco que apontava uma arma em sua cabeça.
- Você não precisa fazer isso. A gente só estava sem dinheiro e precisávamos chegar ao centro da cidade! – disse Alícia.
Não tinham para onde correr. Não tinham como correr. Sentiam arrependimento e incompreensão por terem se metido nessa.
Ao invés de avançar, o Motorista foi recuando passo a passo em direção à porta do carro, tão lentamente como havia saído dele, ainda com a arma apontada para a mesma pessoa. Num lento passo, o homem chegou à porta de motorista do veículo, ainda com a arma empunhada...
- Sou Policial Federal. E vocês deviam ter mais cuidado ao saírem como uns loucos pedindo carona por aí – disse ele. Desviou lentamente a mira da cabeça do garoto. - Jack Kerouac não tem vez aqui. – e nisso ele abaixou a arma por completo.
Entrou no carro, deu partida e acelerou.