13 de outubro de 1986.
A noite estava fria, uma singela ventania cortava-me o rosto. A lua cheia iluminava o céu, clareava a avenida e brilhava os olhos dos amantes apaixonados que se beijavam atrás da igreja. Tudo parecia bem, eu estava voltando de uma reunião do trabalho, louco para tomar uma ducha quente e limpar a neve dos ombros. A mala em minha mão pesava tanto que já era um grande esforço não me deixar cair e ser atropelado pelos poucos carros que ali passavam rapidamente.
-Alberto. –ouvi alguém chamar.
Olho para trás em busca de quem sussurrava meu nome em meio a escuridão. A luz da lua me ofertava apenas um brilho simples, claro, mas simples. Não consegui ver além do casal promíscuo. Mas era óbvio que o chamado não veio deles, para isso seria preciso estar com a boca desocupada. Penso ser apenas um devaneio oriundo do cansaço. Firmo o pensamento na banheira que me espera em casa e não no acontecido do ano anterior.
-Eu sei que você pode me ouvir- escuto a mesma voz, mas dessa vez como se estivesse na ponta dos pés sussurrando colado ao meu ouvido.
Viro-me rapidamente em busca do piadista que estava querendo me tirar do sério, meus olhos azuis cor do mar reviram todos os cantos da avenida. Um frio percorre a minha espinha ao perceber que nem mesmo o casal está ali mais. Sumiram. Em um passe de mágica. Estavam ali e não estão mais, sem fazer um barulho sequer. O medo toma conta de mim. Seria possível? Não, não de novo. Eu tenho certeza que ela está morta, essa voz não pode ser dela. Eu estou muito cansado, hoje foi um dia difícil no trabalho, apenas firmo o pensamento na banheira e isso me acalma, sim. Um banho espumas deve ser suficiente.
-Suficiente, Alberto? Então escolha um aroma de lavanda, para se parecer com aquela noite.
Agora não há como escapar do sentimento que cresce em mim. Como aquela voz saberia disso? Como saberia que eu estava pensando na minha banheira? E, pior, como saberia da lavanda? Automaticamente sinto o cheiro penetrando o meu nariz, o doce cheiro de lavanda. Sim, doce. Mas para mim esse é o pior cheiro que existe no mundo, ele arde minha narina e adentra meu cérebro, começa a fazer parte de cada célula do meu corpo.
-Não gosta? Esse cheiro não pareceu te incomodar enquanto eu sangrava até a morte.
Ao ouvir essas palavras, que me cortaram como faca, começo a correr em direção ao breu. Nada seria pior que ouvir essa frase estúpida. Agradeceria a Deus mesmo se um ladrão aparecesse na minha frente e tentasse roubar todos os meus bens, qualquer companhia era melhor que aquela.
-Fazendo preces à Deus? Como você mudou... você não acostumava acreditar nele, HAHAHAHAH
A risada foi ficando mais alta, cada vez mais alta e irritante. Quanto mais eu corria pela avenida, mais perto a voz se aproximava da minha nuca. Até que... ela se calou. Fui diminuindo o ritmo até parar. Meu peito ardia, meu rosto estava encharcado se suor, qualquer um perceberia que me encontrava em péssimo estado. Olhei para os lados em busca de algo que eu não gostaria de encontrar. E, felizmente, não encontrei. Volto a caminhar rumo à minha tão sonhada casa. Até que minha mala –que por um segundo esqueci que estava ali, não faço ideia como não se perdeu durante a correria- começou a pesar ainda mais. Ela estava cheia de papeis pesados, realmente. Mas o peso aumentava a cada vez que meu pulmão se enchia de ar, pesava mais algumas gramas enquanto expelia o ar. Com receio, a coloquei no chão e comecei a abri-la cuidadosamente. Me deparei com uma cena horrenda, onde os papéis cintilavam um vermelho vivo, a cor do sangue. O sangue vinha de um par de órgãos que se encontrava no centro dos papéis. Um par de seios.
-Não, não, não. Isso não pode ser real, isso não pode estar acontecendo comigo.- eu repetia em voz alta, na esperança de que ao ouvir minha própria voz a razão voltasse ao meu corpo. E foi então que desmaiei.
13 de outubro de 1987.
Um dia bonito como esse não pode ser desperdiçado. Não é comum fazer sol em dias como esse, então resolvo aproveitar. Coloco o biquíni mais bonito que tenho por baixo de uma tanga bonita, vermelho vivo. Eu simplesmente adoro essa cor, valoriza meus olhos e realça não só minha cintura, mas também meus seios. E eu adoro, porque é muito mais fácil de atrair os homens assim, eles não estão nem aí para o meu PHD. Se vão me comprar coisas porque admiram meus seios, que seja.
-Alana?- Ouço alguém chamar, embora esteja sozinha em casa.
Como sou extremamente medrosa, corro porta a fora em busca de ajuda. Seja ladrão ou assombração, não quero ficar para descobrir. Entro em uma loja de roupas onde costumava comprar e, por isso, já conhecia todas as funcionárias. Busco por ajuda no caixa, na recepção, na administração. Mas não acho ninguém. Diminuo o passo para ouvir melhor um barulho que vem do fundo da sala.
-Me ajuda, alguém me ajuda, por favor me ajuda!- ouço alguém chamar, embora pareça bem abafado, como se um pano cobrisse a boca. Penso em correr, realmente não sou uma mulher corajosa. Mas olho para baixo, para a tanga que vestia, que já me rendeu bons encontros e presentes. Ela fora comprada ali, na mão de Aline. Tudo bem, ela merece minha atenção. Entro na sala de onde vinha a voz, o ambiente era sujo, pequeno e molhado. Encontro Aline deitada no chão, amordaçada e amarrada com panos velhos. Ao me ver, Aline grita, se desespera e tenta se soltar de todo jeito. Tento acalmá-la
-Calma, Aline. Sou eu, Alana! Eu não vou te machucar, estou fazendo um favor, se lembra?
Aline respira fundo, parando de se debater aos poucos. Quando vejo que ela está mais calma, me abaixo e pego uma tesoura que estava há alguns metros de distância. E a enfio na garganta de Aline. Espero um pouco enquanto o sangue gorgoleja, uma fonte do liquido vermelho vivo, lindo. Realmente, minha cor favorita. Eu realmente gostava muito de Aline, por isso mesmo a escolhi. E eu estava fazendo um favor à ela, esse é o destino de todos aqueles que começam com A, não sabia? Pensei em escolher Marta, mas M não me agrada. As linhas do M me lembram uma onda, ondas são instáveis. O A é fixo, firme. Se parece com pilares de uma casa, sim, A é bom. Mas não me restam devaneios, preciso terminar o serviço antes que a voz estúpida volte. Aline me servirá bem para fugir dela.
Começo o serviço. Primeiro raspo o cabelo para que a peruca fique perfeita, em seguida, arranco-lhe os olhos do globo. Ah, sim, olhos verdes muito me agradam. Da última vez tive olhos azuis, bem fortes, da cor do mar, hoje são castanhos. Mas verdes servirão bem. Faço questão de que todas as partes de Aline me sirvam bem, as partes que não cabem no meu novo eu, guardo na bolsa que antes usava para ir à praia. Medidas desesperadas servem para situações desesperadas.
Com o rosto de Aline eu duvido que a maldita voz do Alberto me encontrará e, assim, poderei viver em paz. Bom, até que a voz de Aline comece a me procurar também. Mas não faz mal. O namorado de Aline se chama Andersson.