Há um ninho de demônios em minhas entranhas.
Eles não me devoram, não me machucam;
apenas permanecem, sangue de meu sangue,
rubros e decaídos e patéticos —
sombras anêmicas sobre o terreno da própria fraqueza,
resquícios de derrotas inapagáveis,
alma e espírito da resignação.
Vejo-os quando meus olhos tombam para dentro —
sempre e sempre, marionete quebrada que sou, corpo despedaçado.
Amo-os como filhos que nunca nasceram,
adoro-os como só posso adorar aquilo que nunca ousou existir.
Meu prazer é sentir seus coraçõezinhos de ódio bater,
pulsar junto ao meu feito de ódios tão maiores;
meu mundo é ouvir suas risadas de repúdio e desprezo,
e unir a elas meus lamentos de angústias,
meus prantos constituídos em rancor e fel,
meu veneno destinado a tudo, assassino apenas de mim.
***
Certa feita fui acometido de um delírio.
Eram desertos vermelhos e céus ainda mais vermelhos;
uma areia empapada de qualquer coisa fétida e borbulhante.
Eu afundava naquela areia, satisfeito ou quase —
afundava como gostaria de afundar na própria carne podre do mundo,
devorar e violar a terra como a terra devora e viola, e ainda mais:
fantasma e carrasco e Deus daquele lugar horrível;
de todos os lugares, todos horríveis.
Mas não estava sozinho naquele inferno.
No horizonte permanecia um homem, tão pálido, tão inexplicável;
seu rosto era como rocha e sal, seu sorriso a pedra assassina dos abismos.
Vi em sua pele os restos das peles de todos os homens,
tiras esfoladas de todos que haviam lutado, todos que haviam perdido;
vi um rio de sangue fluindo de seus olhos tão cruéis e alegres,
e vi que esse rio se expandia, que era infinito —
que me afogaria e afogaria tudo enquanto eu e tudo imploraríamos para nos afogar.
Naquele sonho morri.
Naquele sonho fui feliz.