O rapaz no espelho
Sjowmalf
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 23/10/22 15:49
Editado: 24/10/22 14:56
Avaliação: 9.77
Tempo de Leitura: 6min a 8min
Apreciadores: 8
Comentários: 6
Total de Visualizações: 521
Usuários que Visualizaram: 14
Palavras: 996
Este texto foi escrito para o concurso "Crimes Macabros " Nesse Halloween, convidamos todos vocês a explorarem sua natureza macabra em uma clássica e sangrenta aventura! Queremos que dêem vida ao pior pesadelo, que façam sangrar as melhores ideias e que elas encham o inferno o suficiente para que os mortos passem a andar na Terra! Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Notas de Cabeçalho

Este conto foi escrito exclusivamente para o Concurso Crimes Macabros.

Capítulo Único O rapaz no espelho

- Sente-se, fique à vontade. Quer um café? – o homem baixo de óculos fecha as persianas. Ele enche uma das xícaras e mantém a garrafa sobre a outra. Sempre inspirado para conversar, ansioso como um garotinho apaixonado.

O rapaz alto se acomoda na poltrona. Este é uma pintura renascentista: pura forma, cores e medida, destituído de expressão.

O rapaz ergue uma mão.

- Você sabe que não tomo café. É uma bebida impura. Preciso manter o meu corpo limpo.

- É claro, é claro...

O homem baixo se senta atrás da escrivaninha, seu sorriso como uma janela aberta para o sol. Mas não há sol diante dele. Não há vento, não há estrelas.

- Então, vamos começar...

- Eu fiz o que me pediu na sessão anterior. – o rapaz se adianta. Como de costume, seu olhar se prende no homem baixo e permanece imóvel.

- Você se olhou no espelhou e se avaliou.

- Sim. Foi o que pediu.

- Por quanto tempo?

- Um minuto e cinquenta e dois segundos. Foi o máximo que consegui.

- Por que apenas esse tempo?

- O espelho se quebrou.

O homem baixo ajeita os óculos e faz uma anotação em sua caderneta.

- O espelho se quebrou? Como?

- Ele... – o olhar do rapaz se vira por uma fração de segundo. – Ele tentou me dar um soco. O outro cara, do outro lado.

- Seu reflexo. Então, quebrou o espelho com um soco. – o homem baixo verificou as mãos do rapaz: sedosas como as de um pianista. – Não se machucou?

- Eu estava usando luvas.

Uma xícara subiu devagar até os lábios do homem baixo.

- Vamos voltar um pouco atrás. – deu um gole no café. – Um minuto e cinquenta segundos antes do soco. Quando você se olhava no espelho, como se sentiu?

Houve outro quase imperceptível desvio.

- Eu senti... injustiça. - os olhos voltam a se grudar quando o rapaz encontra a palavra. – Eu senti pena do outro cara. Uma desconfortável pena. E medo.

- Sentiu medo do seu reflexo?

- Não. Não, eu senti medo por ele. Por toda a bagunça onde teria de viver, pelo resto da vida. Então...

Mais anotações, e outro pequeno gole. – Então? Você se olhou nos olhos, como pedi?

- Sim. Doutor, já viu aquele olhar dos gatos, quando você vê um na rua e ele não vai com a sua cara, ou só quer que você vá embora para sempre?

O homem baixo lutou para não desviar seus olhos dos do rapaz. Aquelas esferas de vidro que ora nada causam, ora trazem bolhas no estômago.

- Eu conheço esse olhar dos gatos.

- Os gatos não são como os cães. Cães podem amar, e pouco mais que isso. No máximo serão violentos por amor ao dono ou ao território, mas não por ódio a algo.

O rapaz se levantou devagar. As esferas congeladas se aproximavam, e o homem baixo se segurava para não vacilar.

Não se pode vacilar ante um predador.

- Gatos sentem tanto amor intenso quanto ódio incontrolável. – o rapaz parou frente à janela e afastou ligeiramente a persiana. – Eles são muito humanos.

O homem baixo enfiou uma mão por baixo da escrivaninha, apalpando o botão de emergência.

- Sim, de certa forma o sistema de prazer sexual e instinto caçador dos felinos são como um único software com múltiplas funções...

Não era comum o sorriso vir à tona no rosto do rapaz alto. Ele sorria às vezes, o homem baixo havia notado em outras sessões. Porém, não era como quando seus pacientes com depressão sorriam, quando a terapia estava dando certo...

Quando o rapaz alto sorria, o significado era difícil de interpretar.

O rapaz alto soltou as persianas e voltou sua atenção ao homem baixo.

- Gostei. Gostei dessa analogia, “como um único software...” – deu dois passos em direção à escrivaninha. O sorriso não sumiu. – Você diria que o meu “software” está com defeito, doutor?

O homem baixo tomou uma pose profissional, ou pelo menos tentou.

- Eu não acho que você seja defeituoso. Na verdade, acredito que o que faz é exatamente o que o seu instinto demanda, dada as circunstâncias de sua infância.

A face do rapaz alto se transformou. A figura renascentista se distorceu, o nariz e testa formando relevos, afiando-se em uma expressão de fera.

- E o que eu faço, doutor?

- Eu não posso responder isso a você. - o homem baixo engoliu seco. Indicou a poltrona. - Por favor, sente-se.

O rosto da fera se desfez. O rapaz alto permaneceu impassível durante longos segundos. Então, voltou a se sentar.

- Quer saber o que eu vi no espelho, doutor?

As mãos do homem baixo estavam de volta à escrivaninha, fazendo anotações. Os olhos de vidro do rapaz também retornaram.

- Eu adoraria.

- Eu analisei o outro cara, mas ele era melhor do que eu. Ele me via mais do que eu o via. Eu vi as luvas ensanguentadas que vestia, mas ele viu o meu pecado. Eu vi seu avental impregnado de tripas e pele recém-esfolada, mas ele olhou dentro do vazio eterno em mim. Eu vi a mulher massacrada no chão atrás dele, e ele espreitou a morte em meu futuro. Eu vi o homem apavorado ao seu lado, amarrado, amordaçado e nu, empapado com o sangue da mulher...

O homem baixo bebericou o café.

- E o que o seu reflexo viu?

- Ele viu o machado na minha mão. Viu as gotas rubras que pingavam no chão... Então, deu um berro e me deu um soco.

O rapaz alto abria e fechava as mãos. Seus dentes rangiam, suas pálpebras tremiam. O homem baixo o via. O admirava.

- E o homem que estava amarrado? O que fez com ele?

Um novo sorriso se abre.

- Você é o psicólogo, doutor. Tente adivinhar.

O homem baixo fez as últimas anotações e bateu a ponta da caneta para pontuar o fim da sessão.

Não precisava pensar muito para adivinhar o destino do homem amarrado. Já fazia sessões com o rapaz há tempo suficiente para saber que mais um casal desaparecido seria manchete no jornal da cidade.

- Até mês que vem, Damien.

- Até a próxima, doutor.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Obrigado por apreciar, queridos leitores!

Apreciadores (8)
Comentários (6)
Postado 23/10/22 16:32

Caraca, que narrativa incrível! Não consegui parar de ler e fiquei surpresa quando foi revelado sobre as facetas do paciente. O profissionalismo desse médico é impecável kkkkk.

Obrigada por compartilhar conosco!

Parabéns ♥

Postado 23/10/22 20:35

Fico contente e lisonjeado pelo comentário!

E muito grato pela leitura :)

Postado 30/10/22 00:25

"- Você sabe que não tomo café. É uma bebida impura. Preciso manter o meu corpo limpo."

Já gostei dessa criatura logo de cara! #DigamNãoAoCafé

Eu amei esse lance de espelho e reflexo. Amei o médico. Amei a ideia como um todo. Ótimo texto de terror.

Parabéns e boa sorte no concurso!

Postado 31/10/22 20:07

Pô, comentários como o seu e o da Sabrina fazem o meu dia!

E que assim seja, mas se não ganhar, estamos aí pela escrita e somente por ela hehehe

Muito grato!!

Postado 02/11/22 17:31

Fiquei tensa lendo o texto e gostei da ideia como um todo. Ele é o seu próprio reflexo! Acho que o doutor não teve muita dificuldade de entender isso, eu espero hahaha

Parabéns!!!

Postado 06/11/22 20:42

É e não é :)

Eu quis usar o reflexo pra ilustrar a opinião/imagem que ele tem de si mesmo. Não sei se consegui hsuhsuhs

Obrigado pela leitura!

Postado 08/11/22 23:19

Só não concordo com a parte do café, ao menos não matei ninguém kkkk

Destaco no seu texto a forma como você foi construindo a tensão entre o paciente e o doutor. Por um instante achei que ele fosse atacar o terapeuta kkk

Ótimo texto, parabéns!

Postado 16/11/22 16:17

Querido Sjowmalf, que prazer é ter a sua obra participando do nosso concurso!

Eu amei o clima de tensão que foi se criando, a descrição insana do reflexo de si mesmo e do passado/futuro no espelho, toda a ansiedade do terapeuta e as cenas que vão sendo pinceladas a cada novo parágrafo.

Parabéns pela sua obra! Ficou muito boa! Em breve postaremos os resultados do concurso, fique atento.

Beijinhos,

Seis.

Postado 03/01/23 23:26

Ah, Sr Sjow... Como pude me abster tanto tempo da leitura de suas obras? Oh, Satã... Que texto inspirado(r) temos aqui! Senti como estivesse vendo uma daquelas memoráveis cenas em que Hannibal conversava com Clarice e, pelo ardor do Inferno, este paciente realmente sabe como aterrorizar alguém!

Sua narrativa e descrições são simplesmente fabulosas, meu caro! Impossível não mergulhar de cabeça em todo esse clima tenso que vai nos encurralado na medida em que a leitura avança, cada parágrafo nos brindando com mais e mais desse sentimento de apreensão até termos por certo que uma tragédia repentinamente ocorrerá. Para a sorte deste incrivel doutor, desta vez, não houve. Todavia, o que o paciente disse acerca de si e de suas vítimas... Ah, isso me golpeou lindamente!

Adorei sua obra e adoraria ver uma continuação, seja com Damien ou outros pacientes, pois a ideia e a execução da mesma foram brilhantes!

Meus sinceros parabéns pela história, Sr Sjow!

Atenciosamente,

Um ser que precisa de terapia assassina, Diablair.

Postado 14/03/23 14:41

Faz tanto tempo que eu não me encontro aqui, meu queridíssimo Diablair dos Infernos!

Que maravilha é ver um comentário seu sempre em meus textos medonhos, fazendo-os parecer as obras magníficas que eu queria que realmente fossem.

Tu és um camarada entanto, e um dia a gente vai se encontrar, se não neste hell terreno, em algum outro tão medonho quanto este, ou pior!