— Não se preocupe, eu voltarei em breve. — Disse Charlie com a voz embargada de emoção, enquanto abraçava Annie, sua mãe. — E quando isso acontecer, finalmente vou poder te ver pela primeira vez!
A mulher chorava com uma intensidade que a impressionava. Era como se as lágrimas estivessem tentando alertá-la de que algo estava errado, ou talvez fosse apenas seu instinto materno reagindo à primeira separação dela e da filha ou, talvez, fosse algo que apenas ela sabia e não ousava expressá-lo nem mesmo em seus pensamentos. Haviam sido dezesseis longos anos acompanhando a filha e sendo seus olhos para ver o mundo, portanto Annie se permitiu chorar o quanto sua alma desejava — ou, talvez, apenas para que os vizinhos que estavam se despedindo a vissem como a maravilhosa mãe que pensavam que ela fosse. A mulher inspirou profundamente o perfume de lavanda de Charlie e, tendo-a entre seus braços, pareceu-lhe que estava abraçando uma flor. Flores morrem, um pensamento assaltou-a de repente, fazendo com que ela interrompesse o abraço. Seu semblante perturbado não incomodou a filha, que sorriu gentilmente para ela e começou a chamar por Ellen, a responsável por ser sua acompanhante durante os três dias do Retiro dos Milagres.
— Estou aqui, querida. Venha, vamos para o carro. — Disse a mulher com delicadeza, segurando a mão da garota e guiando-a até o carro, enquanto os vizinhos diziam que já estavam com saudades e que não viam a hora de poder mostrar a ela várias coisas de suas casas.
Assim que ambas se afastaram, Peter desceu do veículo e aproximou-se de Annie.
— Pastor, me sinto um pouco insegura, talvez devêssemos rever… — Começou a dizer a mulher com a voz carregada de uma quase forçada aflição ao ver a filha partir, porém foi interrompida pelo homem.
— Irmã, entendo sua insegurança. Foram longos dezesseis anos de devoção aos cuidados de sua filha, porém o Senhor me enviou para ajudá-la e, tal qual Jesus ressuscitou ao terceiro dia, daqui a três dias o milagre já terá acontecido! Iremos cuidar da pequena Charlie, assim como Cristo cuida de sua igreja. — Peter disse com convicção e, como se fosse se despedir, aproximou-se dela e sussurrou: — Deus nunca nos dá um fardo maior do que podemos carregar, por isso devemos ter humildade e aceitar a ajuda dos nossos irmãos.
Notando que a tensão abandonara o semblante da mulher, o pastor se despediu e entrou no carro. Os vizinhos entraram em suas respectivas casas, enquanto Annie continuou acenando para a filha até o veículo desaparecer, mesmo sabendo que Charlie jamais poderia ver seu adeus e muito menos o seu sorriso de satisfação quase perverso, por conta de sua cegueira.
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Após várias horas de viagem, eles chegaram ao local onde o Retiro iria acontecer. Gentilmente, Ellen ajudou a menina a descer do veículo e começou a conduzi-la pelo caminho de cascalho. Apesar de não enxergar, Charlie sentia o cheiro do orvalho, assim como ouvia o som de seus passos ecoando através da aspereza das pequenas pedras abaixo de seus sapatos e sentia o amável toque do vento em seu rosto e das pétalas de rosa que os irmãos da igreja jogavam para recepcioná-la. Em contrapartida, uma iminente sensação de perigo eclodia em seu peito: por trás de toda essa atmosfera quase mítica, ela conseguia identificar um cheiro forte de enxofre e fogo, como se Satanás houvesse passado por ali. Charlie sentiu vontade de rezar o Pai Nosso, mas a sua fé, que até então parecia mover montanhas, se calou: ela tinha certeza que Deus não ouvia ninguém que estivesse naquele lugar, pois a escuridão que já estava acostumada a ver, encontrava-se mergulhada em trevas obscuras e silenciosamente violentas desde que havia descido do carro.
— Tome cuidado com os degraus, querida. — Alertou Ellen, enquanto a auxiliava a subir a pequena escada.
Um passo.
Dois passos.
Três passos…
para o início do fim.
Assim que subiu o último degrau, sua acompanhante se afastou, porém Charlie sentiu que várias pessoas se aproximaram bruscamente dela. E então, sem quaisquer apresentações ou pudor, aquelas pessoas invisíveis começaram a tirar suas roupas, até expô-la diante da nudez de seu corpo que ela própria desconhecia. A garota gritava, enquanto tentava desajeitadamente se desvencilhar deles.
— O que está acontecendo? Por que estão fazendo is…
Charlie interrompeu a frase, porque todos, como se nunca tivessem existido, simplesmente desapareceram. Seu peito subia e descia com uma intensa violência, pois parecia que todo o oxigênio de seu corpo havia sido convertido em medo, humilhação e confusão. Ela deu alguns passos para trás, tentando encontrar os degraus, a trilha de cascalho, o caminho para casa… Porém tudo o que ela achou foi mais um obstáculo em sua caminhada para o inferno: Charlie encostou no corpo nu de alguém, mas foi repelida pelo mesmo com um empurrão. Quando sentiu que iria encontrar o chão, ela novamente tocou em alguém e foi empurrada. Esse jogo de escárnio e mau gosto durou o suficiente para deixá-la zonza e, se pudesse enxergar, ela descobriria que havia sido o bastante para gerar alguns hematomas em sua pele alva.
Sem ter tempo para a recuperação e desprovida de qualquer amparo, ela simplesmente caiu de cócoras no chão, sentindo que seu cérebro iria sair por seus olhos cegos a qualquer momento por conta da forte pressão que sentia em sua cabeça. Mesmo desamparada, ela sentiu as pessoas se aproximarem mais uma vez e, nesse momento, ela soube que seria possivelmente a última vez que iria sentir qualquer coisa.
Alguém havia se deitado embaixo dela.
Alguém estava atrás dela.
Alguém estava acima de suas costas.
Duas pessoas estavam ao lado de seus ouvidos.
Três pessoas estavam diante de seu rosto.
Todos, como se estivessem sendo movidos por uma dança perversa, agiram simultaneamente: ela foi penetrada por dois homens, a mulher em suas costas se esfregava freneticamente sobre sua pele como um parasita, os três diante de seu rosto esfregavam seus membros eretos em sua face e os que estavam ao lado, tentavam penetrar seus ouvidos. No início, ela sentiu uma dor que ia além do sofrimento, mas depois que eles começaram a revezar, ela perdeu a noção do tempo e decidiu parar de gritar: tudo o que conseguia fazer, era fingir que tudo aquilo não estava acontecendo com ela, criando mais uma camada de escuridão em sua cegueira. Entretanto, no fundo do que restava de seu âmago, ela só conseguia repetir, que se realmente existia um deus, ele teria que lhe pedir perdão.
Quando não havia mais nada para ser violado, as pessoas se afastaram como se fossem sombras na noite, novamente. Charlie não se moveu, apenas continuou deitada na posição em que havia sido deixada: com os braços e pernas abertos, cobertos pelo rastro de um estupro brutal. Ela ouviu alguém caminhando ao seu redor, enquanto derramava um líquido com cheiro de enxofre sobre seu corpo. Foi então que, milagrosamente, Charlie começou a enxergar e a primeira imagem que se materializou diante de seus olhos foi a mais dolorosa de sua vida: diante de si, ela via as pessoas de sua igreja; aqueles que haviam lhe prometido a cura e que alimentaram todas as suas esperanças. Ela não sabia quem era quem, pois todos estavam despidos e com sorrisos perversos em seus semblantes, contudo a garota queria que eles tivessem uma imagem mais demoníaca, porque era extremamente perturbador que pessoas como eles parecessem, simplesmente, seres humanos. Para Charlie, todos eram idênticos, mas com sutis diferenças de crueldade.
— Meus irmãos e irmãs… Nesta noite, estamos aqui reunidos para dar a purificação dessa pobre criatura… — Começou a dizer Peter, dirigindo-se aos doze discípulos presentes. — Nosso trabalho de manter a pureza santa neste lugar é árduo, porém seremos recompensados com um grande galardão. — Ele fez uma pausa e se virou para Charlie com uma repulsa palpável em sua face. — A sua deficiência é um erro que apenas as trevas podem consertar, porque Deus despreza pessoas como você ao ponto de não querer curá-las. Você, criança, é a raiz de Judas que temos que exterminar.
Charlie, se pudesse, choraria, mas suas forças, assim como sua alma, já haviam abandonado a carcaça oca que ela se tornara. Os presentes formaram um círculo ao redor da menina, enquanto Peter entoava um cântico que nunca havia sido cantado na igreja:
Deus, nosso Pai, perdoai essa criatura
Por seu nascimento,
Porque ela pertence à Escuridão.
Jesus, nosso Salvador, purificai essa criança
Por sua deformação,
Porque ela pecou no ventre.
Assim que o breve louvor terminou, todos debruçaram-se sobre ela e, feito bestas animalescas famintas, começaram a mordê-la e a desfrutar de sua carne. Nesse momento, ela voltou a si por alguns segundos e percebeu que, para eles, não bastava que seu estado emocional estivesse destruído: era preciso arrancar tudo o que ela possuía... tudo o que ela era.
Ela viu seu corpo pela primeira vez, só que ensanguentado.
Ela viu que seus cabelos eram loiros como os dos anjos, só que tingidos de vermelho escarlate.
Quando ela se viu pela primeira vez, foi para contemplar sua própria morte.
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Três dias após o ocorrido, Peter e Ellen foram vistos saindo da casa de Annie. Quando os vizinhos questionaram sobre a ausência de Charlie, a mulher esclareceu:
— O impacto de Deus em sua vida foi tão profundo e sua gratidão pelo presente do nosso Senhor foi tão intensa que ela decidiu ir para fora do país para pregar o evangelho. — E, com lágrimas de alegria em seus olhos, ela finalizou dizendo: — Ela foi ver toda a vida que existe mundo afora.
Assim que a porta se fechou, Annie continuava a sorrir: não porque o que havia dito era verdade, mas sim por ter se livrado de um enorme obstáculo que havia impedido que ela vivesse durante dezesseis anos. Ela possuía uma dívida com os irmãos de sua igreja, que haviam ajudado ela a se livrar de um fardo que ela não havia pedido a Deus para carregar em seu ventre, muito menos ao decorrer dos anos.
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A Seita de Judas continuou trabalhando de cidade em cidade por longos três anos após o episódio de Charlie que, infelizmente, não fora o único. Eles nunca deixaram rastros de seus atos, muito menos corpos para serem enterrados. Ninguém nunca havia desconfiado deles, afinal quem iria ousar questionar a vontade divina?
No entanto, eles não contavam que Annie, no dia em que Charlie faria dezenove anos, iria cometer suicídio e deixaria uma carta para as autoridades, onde confessava tudo o que havia feito juntamente com todos da Seita. Peter e seus doze discípulos foram presos e condenados à morte.
Até os dias de hoje, fazem-se muitas especulações acerca da atitude de Annie. Alguns dizem que ela sucumbiu ao fardo de sua consciência pesada, enquanto outros falam que a loucura havia se apoderado dela — alguns vizinhos relataram à polícia que ela dizia com certa frequência que estava ficando cega. Entretanto, o único consenso que chegaram acerca desse crime hediondo, é que o deus certo agiu e a justiça divina se concretizou… seja lá qual deus for.