Eu, você, nós dois e mais alguns
Renan Magalhães
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 28/02/16 15:52
Editado: 28/02/16 15:55
Gênero(s): Cotidiano
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 8min a 11min
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Palavras: 1406
Não recomendado para menores de dezoito anos
Capítulo Único Eu, você, nós dois e mais alguns

Vai. Vai logo. Toma logo esse café. Não, não toma. Deixa coar mais um pouco. Pronto, agora vai. Pode beber. Isso. Não, não beba. Vai queimar a língua, assim. Espera esfriar. Não, ainda não. Só mais um pouco. Pronto, vai. Agora pode. Beba com cuidado. Eu disse “com cuidado”. Olha só. Está escorrendo. Virou a xícara muito rápido. Uns fios do líquido fugiram pelos cantos da boca. Isso, limpa isso direito. Pronto, vai, agora coma a torrada. Assim. Dá um pedacinho para Barnabé. Ele adora torradas. Aliás, não. Não dê. Chuta logo esse infeliz. Você detesta cachorros. Isso. Pisa, pisa, pisa. Não, não. Para. Você não detesta. Por que você fez isso? Bem, só não o chute mais. Ou talvez só mais um pouco. Isso. Resolveu pegar a faca? Boa. Quer dizer, não. Para. Para com isso. Larga essa faca. Não faça isso. Para de pisar no rabo dele. Deixa o poodle ir. Isso. Ótimo. Agora, termina logo esse café. O dia será longo.

Vai, acena logo para o táxi. O quê? Com milhares de táxis na rua, e essa velha tem de chamar justamente o nosso? Ora, a velha o chamou primeiro; é dela. É nada; empurra essa desgraçada para o meio-fio. Não faça isso. Faça isso, sim. Não faça. Não, faça. Não faça. Não, faça. Não. Faça. Isso. Só um tapinha e ela se desmonta toda. Vai, anda. Empurra. Empurra! Não! Não empurra. Isso. Deixa para ela. Vem outro logo atrás. Pronto, se acalma. Ele já viu seu sinal. Pronto, está parando. Parou. Certo, agora vai. Entra. Não cumprimenta o taxista. Não, cumprimenta, faz parte da educação. Educação que nada; só diga para onde quer ir e pronto. Isso, fala logo. Pronto. Agora mofa umas horas no engarrafamento. O trabalho será estressante.

Esse seu chefe, hein? Ronaldo é um calhorda e imbecil dos infernos. E você também não fica atrás. Te enche de pilhas e pilhas de processos, aos quais ELE quem deveria dar baixa, e você fica aí, rindo feito idiota, fazendo trabalho dos outros. Imbecil. Não, não fala assim com ele. Falo, sim, e até outra vez: imbecil. Não, espera, espera. Olha quem vem lá. Quem vem lá? Elisabete. A secretária gostosa de vinte e poucos? Sim. Ela também está de minissaia hoje? Sim. A situação será oportuna.

Ei, você aí: vai ficar parado? Não, ele não vai. Anda, trata logo de se endireitar. Isso, mantenha a compostura. Nada de acorcundar. Céus, esse é seu momento! Ela derrubou a pasta inteira no chão. Hora de se fingir de cavalheiro. Recolha tudo para ela. Isso, agacha colado às pernas dela, e mantenha a elegância. Isso, se finja de elegante por mais um pouco. Olha só, ela até agradeceu. Aproveita o ângulo e dá uma espiada na calcinha dela. Não! Não faça isso. Não, faça isso. Não faça. Faça. Não. Agora já era, perdeu sua chance. Quis dar de bom menino e ficou sem ver calcinha. Imbecil. Pronto, ela já foi. Pode se acorcundar novamente. Não, não! Endireite-se! Ela está voltando. Ela parece querer dizer algo. O que será? Será o quê? Não sabemos. Vamos ouvir. Oh. Pronto. O corcunda será feliz.

Agora que já está em casa, vai logo tomar banho. Não, coma alguma coisa primeiro. Não, vai direto para o banho; poderá comer quando se encontrar com Elisabete. Mas aí a comida será A ELISABETE. Ela também. Ou não. Talvez. Quem sabe? Eu sei. Ele também. Você não sabe?

— Sei.

Viu? Agora vai para o banho. Tá certo, vai para o banho. Não, não. Antes de ir: olha Barnabé ali, acuado. Faça um carinho nele. É, e aproveite para estrangulá-lo; você detesta cachorros. Não, não o estrangule, e você não detesta. Pronto, agora ele está rosnando. Deixa ele ir se não quiser levar mordida. Não, deixa ele morder. Será um bom motivo para matá-lo. Não o mate. Anda, dá só um chute, então. Isso. É tão engraçado quando ele sai correndo assim. É, principalmente porque nem correr direito mais ele consegue. Debilitou-se por ser fraco. É, mas e você aí? Vai logo para o banho e para de enrolar. Precisa pegar Elisabete às oito. A noite será proveitosa.

Táxi na porta dela, oito e meia, e ela atrasa. Vadia. Não fala assim dela. Falo, sim. E, olha: o taxímetro incrivelmente continua rodando. É, é uma vadia. Eu disse. Pelo menos o bolso não é meu. Nem meu. Mas é nosso. É? Sim. Não, não é. É só o bolso dele ali. De quem?

— Meu.

— Disse alguma coisa?

— Não.

Disse, sim. Diga novamente. Por que ele deveria? Não é educado ser deseducado com taxistas. Não é educado ser educado. Talvez seja. Não é. Quem sabe. Olha, ela chegou. Céus, finalmente. Isso, sai do carro. Isso, abra a porta para essa vadia que atrasa. Sim, dá vontade de esganá-la, mas não o faça agora. “Agora”? Não o faça nem depois! Bem, o depois é depois. Por ora, simplesmente não a esgane. Isso, não a esgane. Certo, agora senta logo essa bunda gorda no banco de trás. Isso, ao lado dela. Assim. Pronto. Dá logo o endereço do restaurante ao taxista. Céus, cento e cinco reais e quarenta e sete centavos até agora? Ao menos o jantar será delicioso.

Sai do táxi. Estenda a mão para ela. Paga os cento e trinta para o cidadão. Deixa ele ir com Deus. Agora dá o braço para Elisabete. Isso. Entra com ela. Entra nos passos de um valsador. Como se ele fosse um valsador. Não é, mas pode ser. Tanto faz. Tanto faz, não; seja. É, seja.

— Serei.

— Disse alguma coisa?

— Não.

Disse, sim. Diga novamente. Ela quer ouvir. Não, não diga, e vai logo jantar. Oh, deu sorte; pegou mesa de janela. Sorte nada. A visão da cidade é horrível, com esses morros e favelas todos. Melhor que nada. Talvez. Sim. Ei, você aí: inicia logo conversa. Isso, pergunta como foi o dia dela. Agora pergunta como está no trabalho. Não, não pergunte! Tarde demais. Terá de ouvir por horas a fio sobre as propensões dela para o futuro. Blá, blá, blá, quero ter filhos, blá, blá, blá, quero ter marido compreensivo, blá, blá, blá, cachorro e casa própria, também, blá, blá, blá, algum dia serei rica e viajarei o mundo. PARA O INFERNO COM ISSO. Existe algo mais chato? Provavelmente não. É, provavelmente. Ainda bem que eu não sou você. E nem eu. E nem nós. Ainda bem que ele é ele. Se vira com tanta chatice.

Pelo menos o jantar acabou e ela parou de falar. Agora é a sobremesa: ela. Joga ela logo na cama. É, de roupa e tudo, mesmo. Agora, se joga sobre ela. Machucar? Quem se importa se vai machucar ou não. Só trata de rasgar logo essa seda vagabunda do vestido e tirar a mulher que há dentro dele. Ela parece assustada; para. Parar? Não, não para. Isso. Coloca o membro para fora. Já está meia-bomba. Dá uma sacudida aqui, outra acolá, e bom divertimento. Não, não faça isso, ela está chorando. E daí? Deixa chorar. Vai deixar ele fazer isso contra a vontade dela? Ele gastou pouco mais de duzentos reais nessa noite chata com essa vadia; o que tem de mais quer fazer valer a pena? Elisabete; ela tem nome. Eu também tenho nome. Que seja.

Faça o seguinte, então: já que ela não quer dar para você por vontade própria, a amarra no pé da cama e receba à força. É, faça isso. Não faça. Não, faça. Não faça. Faça. Não. Sim. Tudo bem, vai. Isso. Agora amordaça. É, não é bom ela ficar gritando. Agora divirta-se. Isso. Apalpa, aperta, desliza, chupa, lamba, mordisca, morda para valer, arranca, massageia, estimula, penetra, força. Grand finale.

Agora mata. Matar? Sim, matar. Por quê? Por que não? Porque sim. Tem é que matar, mesmo. Imagina se ela sai contando o que aconteceu. É, isso não seria legal. Estupro não é legal. Assassinato também não. Mas se assassinar, a ilegalidade é invalidada. Mas o assassinato não. Só se presenciarem. E se presenciarem? É só matar. Oh. Então mata. É, mata. Isso, esgana. Pronto. Morte limpa. Ótimo trabalho. É, muito bom, mesmo. Foi uma longa caminhada até aqui. Esqueci até de me apresentar. Eu me chamo esquizofrenia. E eu também. E eu também. E todos nós também. E você agora é um assassino. A vida será divertida.

— Será.

— Disse alguma coisa?

Oh, alguém está presenciando! Mate esta pessoa também. Vai, vai!

❖❖❖
Notas de Rodapé

Para mais: http://www.contosdearaque.com.br/

Apreciadores (7)
Comentários (4)
Postado 28/02/16 16:56

Muito bom , gostei muito da forma como construiu a história apenas com as vozes e tbm achei bem engraçado a forma como elas interagem entre si kk

Postado 12/03/16 12:22

olha, vc pode não acreditar , mas me identifiquei totalmente...sofro de esquisofrenia..maravilhosa as vozes...é assim mesmo....mil parabéns...

Postado 11/01/19 19:46

Caracaaaaaaaaaaaaaaaaaaaas, muito bom! A construção da obra é genial.

Meus parabéns ♥

Postado 18/10/22 20:46

Vou dizer, o problema todinho começou com o café. A culpa é do café. Não bebe o café! ESQUECE O CAFÉ! Fica longe do café!! Tá, parei.

Sobre o final... Não ameaça não! A coisa não vai prestar. U.U

Muito bom. Perfeito, como sempre!