Aprendiz
De certa forma, as ações da humanidade sempre chamaram atenção. Como se comportavam em grupos e individualmente. O movimento dos peões inseridos na sociedade e soltos, loucos de pedra. Como evoluíram e se identificaram com as culturas em que se ajustam hoje. Nada passava despercebida, nem quando chovia na lua, nem quando o sol chorava; mesmo criada sob regime ferrenho de duas religiões parentes (Católica e Católica Ortodoxa), tinha esse senso meio cético, não que duvidasse, mas que se permitia questionar mesmo no silêncio, isso desde os cinco anos.
Analítica por conta, observava a conversa dos adultos, como se portavam em suas casas e em reuniões, quanta diferença! Por que o local onde se vive, em certa etapa da vida, infância ou adolescência, tem que ser sempre o mais sério? Legal era posar nos primos, nos amigos então, caraaacaaassssss… Que farra! Mas nem tudo eram rosas sem espinhos, por isso os grupos familiares são diferentes, mesmo inseridos na mesma sociedade e tendo a mesma cultura e religião, os adultos se comportavam de forma não correspondente. O lance é que quase nenhum deles se prepara para encarar a descoberta dos pequenos, talvez, e isso é uma hipótese, por saberem como fora a sua própria, então, deixam a vida correr conforme os padrões.
Duas etapas plenamente vividas, nunca trocou sua idade como a maioria das meninas de 14 anos, o negócio era jogar handebol e vôlei, fazer atletismo e estudar; isso me rendeu tempo para aproveitar preciosos momentos com os amigos, viagens em ônibus com cantorias desvairadas e descompromissadas com a afinação, “Toda vez que chego em casa, a barata da vizinha tá na minha cama (2x), ele vai dar uma chicotada na barata dela (4x)”. Em 1992 isso não era visto como promíscuo, apenas se cantava, e bem alto por sinal. Chegou até na fase do “sabão cra-cra…” com os Mamonas Assassinas; mas por fim tudo era guardado, os casais que iam para o fundo se amassar, os que se pegavam de relance, os que só se olhavam e outros que ficavam morrendo de medo da treinadora, não davam um pio, ficavam com o cú na mão se fossem lá pro fundão. Mas a vontade, ahhhh vontade de chegar até a poltrona 15 pelo menos.
Os anos foram passando, última temporada de jogos estaduais, outro treinador, dois busão lotados de atletas dos 14 aos 17 anos. Hormônios saltitantes, tudo era farra do começo ao fim, as músicas atravessavam viagem com alguns resistentes, outra turma ia dormir, uma outra fazia de conta que ia. Ser da primeira e da última turminha não foi uma má experiência. A primeira vinha munida de natureza artística, samba, pagode, MPB e rock roll, além de cumprirem com suas tarefas diárias como estudar e treinar, alguns faziam muitos extras, praticavam pintura, dança, idiomas entre outros. Esse povo vive pilhado! É muita energia! É muita vida correndo nos vasos sanguíneos de cada um. Já a última turma apaziguava tantos pensamentos frouxos.
No busão ainda tudo escuro, não se via muita coisa, mas a abelhudice falava mais alto e os ouvidos se apuravam. No banco do lado, poltrona 16, ela estava sozinha de propósito, esperando a hora que Ale se cansaria de cantar; já se passava das duas da madrugada. Pensei que Nessa estava dormindo de fato, porém quando o assento do seu lado foi preenchido ela se virou, mandou Ale calar a boca, estava falando alto demais, e se deitou em seu colo por sugestão dele. Não parecia tão brava agora. O pretexto era esse mesmo, independente da hora, algo nela a impedia de dormir de fato, seus pensamentos já estavam afogados em babas dos beijos dele antes de sua chegada, dos sedentos desejos do toque, de viver algo esperado, fantasiado. E foi assim, que percebi a premeditação, ela sabia que Ale sentaria ali uma hora, uma hora iria rolar, tinha que ser ali, naquele momento.
Nessa deitou sua cabeça no peito de Ale, eles falavam sussurrando no escuro, via-se somente sombras se movimentando quando o beijo apareceu, os estalos aceleravam com a respiração enquanto a música rasgava no fundão do ônibus. Volta e meia um clarão se infiltrava pela janela, as mãos de Nessa já estavam por baixo da camiseta de Ale, enquanto ele parecia o Drácula. sugava-lhe o pescoço, a boca, a orelha, deixava tudo babado, percorria todos estes lugares freneticamente. Os gemidos de Nessa não eram percebidos pelos desatentos, mas deixava claro que era isso que tanto esperava. Sua voz trêmula a cada amasso, a cada passo que a mão dele escorregava por seu corpo ela correspondia com entonações diferentes.
Mais um clarão vindo de fora, o peito esquerdo de Nessa já estava em posse, o sutiã estava visivelmente desabotoado, a blusa levantada, e a boca de Ale indo em direção ao pequenino bico; naquele momento o clarão acabou, mesmo que os olhos estivessem arregalados para ver, somente as sombras e a voz de ambos se identificavam para o observador. O ritmo acelerava, as vozes se excediam, as sobras mudavam de lugar, a cabeça de Ale, levantava, subia, ele se erguia como se fosse debruçar-se sobre ela. E os bocós da turma dormindo nos bancos da frente.
A mente já rezava por mais um clarão, aprender coisas proibidas causa mais que curiosidade aguçada, desperta o frisson do proveito das ações a sua volta, excitação moderada, uma emoção demasiadamente audaciosa, um alvoroço despontando no corpo, entusiasmo. Um sentimento repentino que o momento proporcionara; o medo misturado com a excitação, pois entendia o que estava prestes a acontecer, tudo fluía na imaginação; os barulhos que as bocas faziam ao se atracarem, os gemidos dela quando ele a tocava com vontades, os dele quando ela o provocava esfregando sua mão sob o short jeans.
Arrepio na pele, calafrio na alma; um frio que despontava no secar dos lábios, o interesse por alguém sentar ao lado e tocar a boca, sufocar-te com a língua; as crises de imaginação aumentavam. Queria ser Charles Xavier do filme “X-Men”, saber de tudo, escutar as nuances mais baixas do pensamento, deliciar-me com os feromônios pairados no ar, fechar os olhos e ter um orgasmo sinestésico múltiplo alimentado pelos desejos mais pecaminosos que emanavam da segunda turma, aqueles que sempre estavam a espera de um encontro selvagem, não cantavam muito e jogavam porra nenhuma. Não que os outros não tivessem seus momentos de flertes e pegação, mas as prioridades eram outras. Ainda no escuro, mais movimentos das sombras que se atracavam, os músicos esgotados, cada um caía para um lado e apagavam, dava para ouvir os roncos do treinador de longe, ambiente propício para mais crimes acontecerem, logo as poltronas 23, 28, 34, e 38 enlaçavam barulhos dos quais já havia ouvido dos residentes da poltrona 16.
Vai “Xavier”! Aboleta-se em mim por favor… Jean Grey? Mística? Mímico? Morfo? Psylocke? Cablo? Stacy X? Xorn? Alguém… pleaseeee! Não conseguia dormir, os ouvidos pulsavam eletrizados, as narinas podiam sentir a substância química secretada; então era assim… Minha professora de Biologia tinha razão, esse é um sinal, um comunicador entre os animais, nesse caso animais racionais, é… em parte. Mas ela tinha razão total, como tal essência era extremamente atraente, irresistível ao ponto de tolir a razão. Enfim, vários clarões pela frente, os olhos cerrados, ouvidos escancarados, a mão de Ale dentro do short de Nessa enquanto ele engolia sua boca escandalosamente, ela rebolava sutilmente para que Ale sentisse seu desejo latente; houve um momento que ambos se olhavam ardentemente, sem piscar, seus olhos cerravam e fechavam enquanto seus corpos se comunicavam.
Puta que pariu! Não gostava nem um pouco das aulas de Biologia, cada nome difícil de decorar pra cacete! Ainda faltei à aula de reprodução… Merda! Será que a professora explicou sobre “tara”, ahhhh… caracas, agora já era, vou ter que aprender na pŕatica, calorrrr moço do céuuuu! “Oh my God!”, que isso? Veio dos fundos, olha o capeta inticando afff… Entre os clarões e a escuridão, avistava a porta do banheiro nos fundos do ônibus, mais um tempinho, levantei de fininho como quem que só vai usar o banheiro. Mal enxergava o caminho, ia tateando os bancos pelo corredor com os ouvidos bem atentos, quando de súbito um clarão. Boquiaberta... Seria a expressão que definiria o que vi, se Manuel Bandeira estivesse nesse busão diria: - Isso que é Libertinagem! E se ele estivesse mesmo, seria sua ouvinte por toda viagem.
Enfim, a porta do banheiro emperrada, fiquei esperando um tempinho e de repente algo caiu lá dentro, ops… ou caíram. Pensei, encostar o ouvido é crime? Meu pensamento rachou na gargalhada sozinho, mais crime que se acomete nessa viagem, ouvir!? Crime!? De jeito nenhum! encosta o ouvido aí. Caramba! Cadê a “Lince Negra” pra se apossar do meu corpo essa hora!? O povo tá virado no “Jiraya” lá dentro, é só cotovelo que bate nessa porta. Enquanto os residentes das poltronas 34 e na outra, 38, de ontem podia observar bem agora, estavam se atracando direto, preciso saber o truque de ficar meia hora sem respirar. Mas báh! Ganho a competição de mergulho ano que vem com certeza! Só a criatividade era capaz de simular tal ocasião; de ligeiro veio um clarão das luzes de um posto na BR; de relance parecia um menino e outro, ou uma menina na boca da outra; eita trem! Era muita informação para uma aprendiz de observâncias da vida.
Os olhos viam o que tinham que ver, não nutria nenhuma repulsa pela combinação das línguas do mesmo sexo, pelo contrário, parecia delicioso, ainda mais que na época todo mundo curtia “Legião Urbana”, “e eu gosto de meninos e meninas”. Ai, ai, aiiii... aiiiiii… Pensei comigo, se aparecer um morto nesse banheiro vou tacar uma bolada na careca do treinador. Não para Pedro, humm… O bom dessa história é que cada hematoma no corpo, quando se está em temporada de jogos, é facilmente explicável. Uma paulistinha na coxa, vários arranhões nas costas, peito e braço, aquele roxo esverdeado no pescoço; era bolada de tudo quanto é lado. Handebol é assim, esporte de contato bruto.
Depois dos últimos gemidos no banheiro era hora de voltar. Nada de sono e nem de insônia, a curiosidade acoplada em descobrir a verdade minuciosa do processo do toque na pele era alucinante, parecia ter tomado cinco litros de energético. Ao sentar novamente na poltrona, já umas cinco da madrugada, quase amanhecendo, os barulhos foram diminuindo, as sombras se dissipando, a escuridão sumindo, os movimentos exaltados iam sossegando, a respiração ofegante voltando ao compasso natural. Era como se nada tivesse acontecido, o que de fato para quem dormia, não aconteceu mesmo. Finalmente, o silêncio imperava nessa nave, somente 5km para chegar ao destino e ainda se ouvia absurdamente o estrondo roncador abominável do careca das neves.
Alguns minutos de paz, o sol já despontava no horizonte, atravessava as janelas e tocava a face dos ditos atletas juvenis; nesse momento tive vários flashbacks, observava a calmaria da ocasião, a exuberância da natureza de passagem, o motora tomando coca-cola ao volante, a chegada à cidade; momento ímpar este em que todos despertam como se tivessem setenta auréolas em suas cabeças. Todos santos, sem dúvida, imagina!? Não aconteceu nada demais aos olhos dos adultos presentes. Observar também é parte do aprender, ninguém escapa das ocorrências da vida; ela te chama e você vai; vai ver, observar, sentir e provar, experimentar, adquirir suas próprias experiências e histórias, isso é só o começo. Virgem aos dezessete, nada mal!