Sentados, cada qual numa poltrona, Bento e Adão tagarelavam:
— O que eu quero dizer, Bento, é que o ser humano, hoje em dia, tá tateando no escuro, como se tivesse procurando os óculos.
— O ser humano sempre esteve tateando no escuro.
— E o Iluminismo?
— Ah, isso foi a humanidade tateando no escuro à luz da razão, mas todos nós sabemos agora que a razão não presta.
— Não presta?
— Sim, Adão, que nem tu disse: procuramos os óculos. Mas o que é a razão? É um óculos que cega.
— Sim, é claro que a razão é falha, mas nem por isso ela é imprestável, Bento. Pô, me passa um cigarro aí.
— Toma aí. — Adão começa a tossir. — Eita, Adão, cê tá espectorando sangue. Cuidado.
— Ah! Bobeira! Quer dizer, é claro... eu acho que estou quase no ponto já.
— No ponto?
— É, o tempo tá me cozinhando. A morte aguarda mais essa refeição... no caso, eu.
— Você pensa muito na morte. E a sua vida?
— Que é que tem?
— O que pretende fazer dela? Vai me dizer que não quer fazer nada?
— Bem, certamente eu não quero me casar e ter filhos.
— Qual o problema com isso?
— Nenhum, mas é que tenho outros planos...
— Tipo o que?
— Meditar sobre a Verdade.
— Hein? — Bento gargalha. — Hein? — continua gargalhando. — Puta merda, é sério?
— Sim.
— E o que vai fazer? Sentar no alto de uma montanha e viver lá por dez anos?
— Não, vou viver lá por cinco anos.
— O quê!!!?
Bento gargalha estrondosamente, mas então percebe que Adão está falando sério.
— E quando é que você vai?
— A qualquer momento, Bento.
— Boa sorte, então. Enquanto isso, vamos, vamos, tomar umas cervejas.
Bento pega mais uma caixa de cervejas na cozinha.
A noite passa, eles conversam uma série de banalidades. Adão vai embora.
No dia seguinte, ele parte pra floresta, com poucas roupas e um saco de arroz. Encontra uma caverna, em meio a uma montanha não muito grande. Senta-se e mergulha num silêncio solitário revelador e profundo. Fica assim durante anos e anos, alimentando-se com poucos grãos de arroz e frutas silvestres. Chega a adoecer algumas vezes, mas resiste com todas as forças.
Num dia qualquer, depois de mil oitocentos e vinte e cinco dias e mil oitocentos e vinte cinco noites, Adão se levanta e brada aos céus:
— FINALMENTE!
Ele caminha saltitante e fedorento através da floresta lodosa e selvagem, chega à cidade, com a barba na altura do peito e os dentes podres.
Bate na casa Bento.
— Quem é você?
— Sou eu, Bento. Seu velho amigo, Adão.
— O que!? Não acredito! Você foi mesmo? Pensei que tivesse morrido.
Bento encheu-se de lágrimas, abraçou seu amigo, todo sentimental e efusivo e saudoso.
Os dois sentaram-se nas mesmas poltronas de outrora. Bento contou que esteve à beira da morte, porque contraiu um tumor, e se recusou a fazer o tratamento, preferindo uma cura alternativa com um xamã muito louco que habita a cidade. Enfim, contou novidades, e outras coisas, e então perguntou a Adão o que foi que ele conseguiu meditar e descobrir em sua aventura eremita através da natureza selvagem.
— Diga, diga! E aí, qual é a Verdade Absoluta? O que significa Tudo Isso? O que é o Espírito Universal? Para onde estamos CAMINHANDO? Como é a face de Deus? Por quem os sinos dobram? Por que nunca vemos os filhotes de pombo? Diga, diga, qual o SIGNIFICADO DO UNO UNIVERSAL E DA MULTIPLICIDADE ETERNA DAS EFEMERIDADES QUE SURGEM E DESAPARECEM NO FLUXO ININTERRUPTO DO GRANDE DEVIR INCESSANTE?
— Então, Bento...
— Diga! — seus olhos brilhavam, transbordando curiosidade e esperança.
— Tudo isso, Bento...
— SIM?
— É nada.
— Como?
— Nada.
— Nadinha?
— Nada, nada, nada.
— Eu sabia!
— Todos nós sabemos, lá no fundo.
— E agora?
— Agora a gente segue em frente.
— Pra onde?
— Sim, pra onde?
Silêncio.
Adão se levanta, pega uma cerveja na cozinha e cantarola uma canção qualquer.
Há cinco anos Adão não bebia uma cerveja. Quem precisa de verdades, quando há cerveja?