Ela nunca fora a menininha que todos achavam que ela era.
Tinha sua aparência jovial e seus olhinhos puxadinhos, tão lindos... Não havia menina mais bonita no bairro e, é claro que era um privilégio e também, uma maldição.
Daniela tinha muitos amigos e era tão popular! Sua vida era perfeita, sua mãe era ótima, seu pai era até que presente, seus irmãos a compreendiam, seus projetos davam certo, ela tinha beleza, ela tinha uma alma tão linda...
Ninguém entendeu quando ela entrou no camburão da polícia, respingada de sangue e um sorriso afrouxado, leve, orgulhoso. Ela se manteu ereta, formosa, até quando a sentença foi decretada, até quando uma mulher enfurecida cuspiu-lhe na cara - ela apenas limpou o cuspe e foi embora.
A questão é tão pesada... É melhor vocês se sentarem.
Há muito tempo ela era observada e, sabia disso. O truque é não deixar com que ele desconfie de que você sabe.
Ele a seguia com a van branca, desde quando ela era apenas uma criança. Ela sempre sentia o frio na espinha, e quando olhava para trás, lá estava ele, com uma mão no volante e a outra... Bom, vocês podem imaginar.
Por alguns meses, ela conseguiu manter o controle, escapar de muitas situações; muitas pessoas dizem que você tem total poder de escolha sobre a sua vida, porém ela soube que não era verdade no momento em que ele a puxou para dentro, num dia iluminado, com pessoas na rua, com crianças brincando, com padeiros fazendo suas entregas; ela soube, soube que a vida era injusta, soube que estava sendo invadida, violada, torturada, por um homem... Um homem assim: pai, avô, tio, cabelos brancos, olhos claro, papo manso, sorriso reconfortante e mãos pesadas.
Foram poucas horas.
Quando ele a largou em frente a uma igreja abandonada, não era como se ela tivesse tido liberdade... Era como se ela estivesse olhando no fundo dos olhos da morte.
Mas ela? Ela superou. Por anos a fio, quase nunca se lembrava disso e, quando se lembrava, era apenas um segundo, desses a toa, que passam num piscar de olhos - ela não queria ter tempo para pensar.
"Pare de ser tão criancinha" - diziam os amigos dela, que na verdade não faziam ideia de que ela foi forçada a ser uma mulher.
"Nossa, você nunca sofreu de verdade na vida, não deveria reclamar tanto" - diziam as velhinhas da igreja, que com absoluta certeza também viram coisas tão escabrosas quanto ela, mas também, optaram por esquecer.
"Você é muito fraca, não aguenta nada e já chora, algum dia você vai precisar ser forte" - disse sua própria mãe, enquanto elas voltavam do mercado, passando em frente a igreja abandonada de tantos anos atrás.
Ela aprendeu a engolir, guardar para si, para suas histórias, para seus devaneios, para suas crises de riso compulsivas durante as provas, para as fotos de animais mortos, para os desenhos nas margens dos cadernos, para as lâminas guardadas em seu bolso do casaco de inverno...
Ela aprendeu a engolir, quando começou a reparar que ele ainda estava vivo, depois de tantos anos, que ele dirigia aquela maldita van, e... Caralho, agora era uma van escolar!!! E... As meninas no banco da frente... Todas caladas... Foi um tiro no peito dela, num segundo as memórias voltaram, a raiva surgiu mixada com um medo apavorante, logo os cheiros lhe vieram às narinas, os toques, o tom da luz, tudo, tudo... Estava paralizada no meio da rua.
Novamente, ela se forçou a tentar esquecer.
Não conseguiu.
Passou a noite toda chorando se sentindo culpada por todo o seu silêncio, imaginando quantas outras meninas foram sujeitas aos abusos... Se sentiu inegavelmente culpada.
Mas como contar?
Ela poderia chegar perto de algum ouvido e dizer: "Fui abusada!"...? Poderia ela gritar? Ir na polícia e tentar se explicar: "Isso aconteceu há mais de dez anos...".
Não.
Tentou falar com amigos.
Que só a fizeram se sentir pior.
"Enquanto você não diz nada, outra menina tem o mesmo fim, a vida delas está nas suas mãos!" - E VOCÊ ACHA QUE ELA NÃO SABE? QUE ELA NÃO TEME? QUE ELA NÃO CHORA PENSANDO NAS POSSIBILIDADES?
Tentou chegar no assunto com a família, a mãe logo mudou de assunto: "Crianças que são abusadas, depois viram gays. Cuidado gente".
Seria melhor nem ter dito nada.
Estava sozinha.
Preciptada entre uma parede de pregos e um poço de lava.
Todos os dias ela sentia o frio na espinha novamente... Um dia ela ousou olhar. E lá estava ele, parado na esquina, olhando para ela... Ele ousou sorrir! E até buzinou como se ela fosse uma velha amiga... Não teve mais jeito.
Ela levantou seu dedo médio solenemente e direcionou-o para ele.
Naquele segundo, neste segundo que se perde com um piscar de olhos, ele não piscou. Ele premeditou. Ele sabia que ela tentaria algo.
Com o passar das semanas ela secretamente descobriu o telefone dele, o número da placa de todos os seus carros e vans, e descobriu a pior das coisas: Ele morava na rua de trás de sua casa. Tão próximo... Como ela nunca havia notado?
Por muitos dias ela se segurou, tentou orar, tentou agir como a boa menina que era, contudo, não teve jeito, os nervos falaram mais alto.
Daniela escreveu uma linda carta.
Com letra de criança, desenho de giz, adesivos de gatinho e todas essas coisas acolhedoras.
Deixou-o na caixa de correio da casa do estuprador.
Aconteceu que, a mulher dele abriu primeiro.
"Para o tio Valter,
Oi, eu gostaria de dizer que
eu não me esqueci.
Estupradores queimam mais.
Beijos,
Adivinhe quem..."
A esposa dele surtou, nenhum calmante foi o suficiente.
De sua casa, Daniela pode ouvir os gritos e chorava por pensar que havia arruinado aquela família, porém, em seu coração, uma luz a confortava: "Você se saiu bem, menina".
Se passou uma semana, o velho continuava a circular com a van. Os impulsos dela gritaram mais alto novamente. Foi ele estacionar e entrar no banco, que ela se enfiou por entre os carros encapuzada e riscou toda a lataria.
ADIVINHE QUEM.
A garganta dele secou quando ele viu.
Não tinha mais como fugir.
Ele estava encurralado.
Aonde ela estava?
Aqui?!
Talvez lá?!
AONDE?!?!?!
Ele já não dormia mais.
E passou a ficar aceso todas as noites, depois do terceiro ataque.
Ele e a esposa chegaram do supermercado e a casa estava coberta de papel higiênico, e com batom estava escrito, mais de um milhão de vezes.
"ASSASSINO DE INFÂNCIA, ESTUPRADOR DE CRIANÇA".
Tudo que ele construíra estava acabado ali.
Aquela maldita!
Ela havia pedido por aquilo não?
Foi ela que cruzou o caminho dele com aquelas perninas e aquele peitinho aparecendo... Foi ela que escolheu passar batonzinho e andar de shortinho, mesmo sendo criancinha... Ele não pode se controlar, afinal, é o instinto... De covarde.
Só que, um dia. Ele a pegou de novo.
Neste dia, ela queria ser mais ousada e pulou o muro dele, adentrou a casa e começou a pichar as paredes. Ele a pegou, e a acertou várias vezes com um cano de ferro, nas costas, nas pernas, na cabeça.
E a viu sangrar ali.
E ousou se masturbar.
- Era isso que você queria? Sua putinha! Sua vagabunda! Eu vou mostrar pra todo mundo quem você é de verdade! - ele sussurrava enquanto ela tremia no chão, não acreditando naquilo tudo.
Tudo girava, o peito dela se encolhia, seus braços tremiam e ela queria vomitar, não sabia o quê dizer.
Bastou outro daqueles segundos, que perdemos com um espirro.
Ela se levantou, como uma avalanche se forma e chutou o membro do velho.
- AAAAAAAH! VAGABUNDA! SOCORRO! SOCORRO!
- Eu sou a vagabunda que vai acabar com a desgraça da sua vida! - ela disse alto e claro, a todos pulmões, com todo seu sangue, com todos os ossos e juntas.
Ela renasceu ali.
Se mostrou.
Mostrou o monstro que a possuía. E atirou na cabeça dele.
A bala atravessou o crânio.
E o pescoço, e os braços, a as pernas, joelhos, barriga, testículos.
Com o cano ela achatou a cabeça dele, moeu seus ossos todos, pintou as paredes da casa, e até pintou o novo reboco.
Era um silêncio sincero.
Como se a natureza a observasse. Como se os anjos parassem de sorrir. Como se até Deus concordasse.
Os cães que ele havia criado para serem assassinos, assistiam à cena, com os olhos caídos e as patas relaxadas.
O filho paraplégico do homem, se tremia e se urinava no quarto.
E ela não parava que quebrar tudo.
Cada memória, cada dor, cada móvel, cada costela do homem, ela quebrou.
Estraçalhou, como um lobo estraçalha um coelho lento.
Daniela estava mais escarlate e quente que o próprio Diabo.
Neste segundo, Deus e o Diabo estavam conversando, sem saberem ao certo como proceder.
"Ela fica com o Senhor..."
"Nãããão, ela vai ficar é contigo, peste!"
Novamente, ela não pertencia a lugar nenhum.
Macabra demais para justiceira, santa demais para assassina.
A polícia chegou enquanto ela tomava um copo de água calmamente.
Todos na rua, no bairro, na televisão, no mundo, no planeta Saturno, souberam então, o que ela guardara por tanto tempo.