— Ó tédio!
Minha mulher sai pra trabalhar,
e eu, inerte, frouxo, caduco;
lânguido, paspalho e molenga;
sim: eu, um homem (?) do século XXI,
que carrega nas costas a Grande Cruz da História,
todos os séculos e saberes idos,
possuindo tudo sem saber nada;
besta aflita! — atordoado
pelo vácuo gerado por um mundo globalizado,
mundo da técnica e do avanço sem fim,
mundo veloz, segregado, privatizado;
eu, que quando me entristeço
ponho-me a postar selfies no Facebook
com legendas blazé,
citações de Nietzsche, Sartre, Camus;
(porque não basta entristecer-se,
é preciso ostentar uma tristeza culta,
ser marketeiro-de-si-mesmo, etc.)
eu, que danço desengoçado John Coltrane;
isto é, danço, sozinho, lelé-da-cuca,
pra sacudir dos ombros o peso do Nada,
o Nada absurdo, absoluto,
o Nada por cima e por baixo de tudo;
eu, que abandonei a escola pra escrever;
que abandonei a escrita pra beber;
que abandonei o álcool pra ser sóbrio...
sóbrio,
sombriamente sóbrio,
mais sóbrio que uma pedra,
mais sóbrio que uma pedra no meio de um deserto;
eu, sedentário, que passo os dias
a olhar pela janela, o vai-vem dos carros,
o tumulto urbano, os ares cinzas...
entediado, deito-me, fecho os olhos,
e me divirto com o breu;
eu, que tomo um açaí com granola após o almoço
e — por alguns segundos —
sinto toda a dor do mundo se extinguir;
penso em minha mulher, em como eu a amo,
preciso arrumar um emprego, penso;
minha mãe é quem me dá mesada;
e eu escrevo, em verdade,
não como um homem, um homem autômato e maduro,
mas como um filhotinho de pássaro
a quem dão alimento mastigado no bico...
...
— Ó tédio!
vinte e quatro pessoas curtiram minha foto de perfil
e a morte come pipoca e ri dessa comédia...
...
eu, ilusão, nulidade, acaso;
chamam-me — pelo meu nome —
é minha mulher,
dou-lhe um abraço, um forte e feliz abraço...
o que eu sou — ela nunca saberá —
o que ela é — eu nunca saberei —
ao menos não inteiramente,
jamais inteiramente...
E, no entanto,
esse amor, pra mim,
é o que há de mais divino e concreto no mundo.