O Eu ridículo
V
Tipo: Lírico
Postado: 22/11/17 12:54
Editado: 22/11/17 13:02
Gênero(s): Cotidiano Poema Sátira
Avaliação: 9.72
Tempo de Leitura: 2min
Apreciadores: 8
Comentários: 6
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Palavras: 345
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Livre para todos os públicos
Capítulo Único O Eu ridículo

— Ó tédio!

Minha mulher sai pra trabalhar,

e eu, inerte, frouxo, caduco;

lânguido, paspalho e molenga;

sim: eu, um homem (?) do século XXI,

que carrega nas costas a Grande Cruz da História,

todos os séculos e saberes idos,

possuindo tudo sem saber nada;

besta aflita! — atordoado

pelo vácuo gerado por um mundo globalizado,

mundo da técnica e do avanço sem fim,

mundo veloz, segregado, privatizado;

eu, que quando me entristeço

ponho-me a postar selfies no Facebook

com legendas blazé,

citações de Nietzsche, Sartre, Camus;

(porque não basta entristecer-se,

é preciso ostentar uma tristeza culta,

ser marketeiro-de-si-mesmo, etc.)

eu, que danço desengoçado John Coltrane;

isto é, danço, sozinho, lelé-da-cuca,

pra sacudir dos ombros o peso do Nada,

o Nada absurdo, absoluto,

o Nada por cima e por baixo de tudo;

eu, que abandonei a escola pra escrever;

que abandonei a escrita pra beber;

que abandonei o álcool pra ser sóbrio...

sóbrio,

sombriamente sóbrio,

mais sóbrio que uma pedra,

mais sóbrio que uma pedra no meio de um deserto;

eu, sedentário, que passo os dias

a olhar pela janela, o vai-vem dos carros,

o tumulto urbano, os ares cinzas...

entediado, deito-me, fecho os olhos,

e me divirto com o breu;

eu, que tomo um açaí com granola após o almoço

e — por alguns segundos —

sinto toda a dor do mundo se extinguir;

penso em minha mulher, em como eu a amo,

preciso arrumar um emprego, penso;

minha mãe é quem me dá mesada;

e eu escrevo, em verdade,

não como um homem, um homem autômato e maduro,

mas como um filhotinho de pássaro

a quem dão alimento mastigado no bico...

...

— Ó tédio!

vinte e quatro pessoas curtiram minha foto de perfil

e a morte come pipoca e ri dessa comédia...

...

eu, ilusão, nulidade, acaso;

chamam-me — pelo meu nome —

é minha mulher,

dou-lhe um abraço, um forte e feliz abraço...

o que eu sou — ela nunca saberá —

o que ela é — eu nunca saberei —

ao menos não inteiramente,

jamais inteiramente...

E, no entanto,

esse amor, pra mim,

é o que há de mais divino e concreto no mundo.

❖❖❖
Apreciadores (8)
Comentários (6)
Postado 22/11/17 13:23

Ah, a Apatia pela Existência... Quantos "sintomas" desta "doença" que consome a alma e a "vida" de inúmeras pessoas temos descritas de modo tão mórbido e sincero aqui!

Este poema exprime de forma bastante realista o Modus Operandi do ciclo atual da sociedade atual no que tanje esse sentimento de que boa parte dos indivíduos vive e sustenta um misto de marasmo com melancolia e uma dose imensa de falta de propósito realmente mensurável para com suas "vidas" e, principalmente, para si mesmos.

Sim, pois a tudo segue um padrão por vezes tosco e sem qualquer sentido de fato mensurável. Temos tanto potencial e conhecomento e ao mesmo tempo nada. Somos coisa alguma.

Ao menos, o eu-lírico ainda conta com algum auxílio tanto financeiro quanto sentimental para subsistir e resistir em sua condição de miserabilidade constante enquanto muito só encontram (ou não) alguma espécie de resposta/solução nas drogas, nas automutilações (não apenas físicas) e na própria destruição permanente de si mesmos...

Belíssimo trabalho, Sr V (seria V de Vazio...?)!

Atenciosamente,

Um ser tedioso e entediado desde o ventre materno, Diablair.

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Postado 22/11/17 13:52

Sim! — "a Apatia pela Existência"!... Dir-se-ia uma degeneração crescente da raça humana... Niilismo por todos os lados! "O mais sinistro de todos os hóspedes"... Tento, à medida do possível, "fotografar" os vários matizes desse quadro nosso, desse cenário moribundo... Claro, eu mesmo, em algum grau, fui fisgado por esse "demônio", digamos!... Mas é um combate incessante, eu diria... Na luta contra o "Nada", de nada servem lamentos... Quiçá o riso seja uma arma... De qualquer modo, é preciso ter outros horizontes! E tudo o que eu escrevo é nesse sentido, apesar de tudo. É uma tentativa de nadar, digamos, nessa maré de absurdos...

"enquanto muitos só encontram (ou não) alguma espécie de resposta/solução nas drogas, nas automutilações (não apenas físicas) e na própria destruição permanente de si mesmos..."

Exatamente! Aí está! Os sintomas! A vida como uma questão a ser resolvida — o desespero diante da consciência da finitude — as fugas incessantes, um acovardamento geral...

Em suma! Tempos loucos! Enfim, enfim! Grato pelo comentário, Sr. Diablair.

E o "V" — talvez seja de Vazio... quem sabe...

Postado 25/11/17 16:31

Bem... é realmente mais elegante uma citação culta do que um depoimento choroso. Eu prefiro ler elas. Não sou empática o suficiente para engolir a tristeza dos outros, quando estou a beira de vomitar as minhas. Talvez isso seja meio feio da minha parte, mas todo mundo erra de alguma maneira.

Gostei muito dos versos! Ficaram muito bonitos e tristes. Realmente mergulhei na leitura.

Meus parabéns!

Postado 26/11/17 14:12

Quantas verdades em tom mórbido. Essa - definitivamente - é a melhor obra que eu já li hoje.

Não sou das que ficam postando fotos e citações cultas, mas devo admitir que conheço bastante gente assim. A sociedade em sua maioria está seguindo esse "padrão" da época.

Concordo com Alien, ler a parte culta é melhor que o sofrimento alheio, mas não por eu não sem empática o suficiente... Acho que tá mais para falta de paciência para "aturar" certos sofrimentos fúteis (ou algo desse tipo)

Amei seus versos. Parabéns!

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Postado 12/02/18 15:23

Obra incrível. Retrata mais do que bem a realidade que nos cerca. Parabéns ❤

Postado 11/11/18 23:44

Que obra real! A romantização da tristeza, tornando-a culta e respeitável nas interwebs apenas para fingirmos que não sofremos tanto...

Que OBRÃO! É isso que me alimenta, obras que mordem minha pele inteira, que me dão um soco na cara! Muito bom!!!

Postado 11/09/20 22:27

Excelente obra! Seu poema transmite as dores pubgebtesce as vivências de uma sociedade narcisista, carente de sentido para a vida.

Seus versos em parte chocam não pelo assunto em si, mas por trazer de forma nua e crua toda futilidade e inutilidade do ser humano atual.

Grata pelas importantes reflexões!