Decidi me escolher
Vanessa Souto
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 29/05/18 18:23
Editado: 11/06/18 20:40
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 7min a 10min
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Palavras: 1245
[Texto Divulgado] ""
Não recomendado para menores de catorze anos
Capítulo Único Decidi me escolher

Ouço o som do meu celular que já se tornou irritante, checo a mensagem desconexa e deduzo que ele só pode estar bêbado “pra variar”. Ignoro novamente, jogo o aparelho pro lado e me viro para o outro lado da cama, tento me forçar a dormir mas a tentativa é completamente falha, levanto e caminho para o banheiro.Me debruço sobre a pia, jogo um pouco de água no rosto e encaro meu reflexo no espelho.

Ele sente minha falta porque está bêbado ou está bêbado porque sente minha falta?

Acabo viajando até a memória da ultima vez que estivemos juntos...

-Hey baby, o que está pensando? - Viro o rosto em direção a voz e me deparo com um sorriso travesso e meio preguiçoso, passo meus olhos sobre seus olhos azuis acinzentados o tom de tempestade que combina perfeitamente com a confusão de sentimentos que causam em mim, desço os olhos até atingir a visão da sua tatuagem de lobo, as linhas pretas acentuando as curvas do peitoral nu parcialmente coberto pelo lençol, todo o conjunto me tira o fôlego e logo meu estômago começa a se debulhar com as famosas borboletas levando leves arrepios em uma turnê pelo meu corpo.

Deus isso é tão clichê, eu prometi a mim mesma que não sentiria isso e que não iria parar na cama dele novamente. Porque eu sempre atendo o maldito telefone? Porque eu sempre encho a cara e venho parar aqui?

Poderia estar me preocupando com a falsa democracia que vivemos, com as contas do final do mês ou com as provas da faculdade que estão chegando... mas em vez disso estou deixando minha vida girar em torno dele enquanto ele se impregna em todos os cantos dos meus pensamentos.

A tatuagem realmente o representa bem, ele é o lobo... e eu sou o cordeiro.

-Eu preciso ir embora João.- Levanto recolhendo minhas roupas do chão, e porque caralhos a calcinha sempre se transporta pra outro universo nessas horas ? Isso é constrangedor e eu preciso sair daqui.

-Está procurando isso?- Ele levanta a mão esquerda com o pequeno tecido rendado preto enrolando em seus dedos mantendo o sorriso que agora está mais para atrevido, ele realmente deve estar se divertindo com a situação.

Puxo da sua mão e começo a me vestir.

-Por que vai embora? Não quer dormir aqui?

Por que será? Será que é por que eu não quero ser acordada às 6hrs da manhã com você dizendo que precisa trabalhar e me apressando pra sair como se estivesse arrependido ou como se eu fosse um segredo sujo que ninguém deveria saber?

Será que é por que eu não quero ser largada a uma ou duas quadras da minha casa tendo um selinho rápido como despedida e nenhuma palavra?

Então eu prefiro que seja eu tomando a decisão de partir, pelo menos essa vantagem eu preciso ter.

Mas é claro que eu não digo nada disso, a falsa indiferença é a única coisa que mantém minha dignidade que está pendurada por um fio.

-Minha mãe esta me ligando e mandou mensagem pedindo pra voltar pra casa, você sabe como meu pai é... Ele já até me pediu pra passar meu endereço novo pra ele vir me visitar. - Digo sem olhar nos seus olhos e recebo a sua gargalhada como resposta á minha ultima frase, sim meu pai disse essas palavras quando percebeu que eu passo mais noites fora do que em casa mas é claro que é só uma desculpa para ir embora porém ele não se dá conta disso, ele não se importa a ponto de perceber.

-Tudo bem, eu te levo. - Após se recuperar das risadas ele diz ao se levantar e começar a se vestir também.

Tiro um minuto para observar seu corpo e minhas pernas se torna trêmulas com a imagem, me forço a afastar os pensamentos ousados antes que meu rosto os entregassem. “FOCO LARISSA, VOCÊ NÃO QUER IR POR ESSE CAMINHO NOVAMENTE!”

Após os berros da minha consciência me acordarem volto o meu foco para o que ele disse e pondero sobre sua oferta que mais pareceu uma afirmação e percebendo que não tenho mais grana nem pra pagar um moto taxi acendo um cigarro e começo a tragar me dando por vencida e tentando afastar as lições de moral que minha própria mente está me dando por estar nessa situação novamente.

Amanhã é sabado o que significa que ele provavelmente vai estar enfiando a língua em outra boca novamente, sem se importar com o fato de eu estar lá assistindo, esse é o problema com cidades pequenas sempre freqüentamos os mesmos lugares e temos o mesmo circulo de amigos. Ele realmente conseguiu arruinar até os meus finais de semana.

E eu vou provavelmente engolir o bolo que vai se formar na minha garganta como conseqüência da imagem e vestir a falsa expressão da indiferença como a boa atriz que eu sou, é sempre essa minha reação quando acontece. Estou presa nesse ciclo vicioso sempre terminando na cama dele pra logo depois tentar manter minha dignidade para as pessoas a minha volta do único jeito que eu sei, fingindo demência e transbordando falsa indiferença.

Volto a realidade com o banho de água fria que o passeio pelas memórias me presenteou. Me dou conta que fui comprometendo pequenas coisas, pequenas partes da minha personalidade, apenas para permanecer ao lado dele e no final além de me tornar um poço de inseguranças me sentindo insuficiênte, também acabei me perdendo.

Talvez a culpa não seja inteira dele, afinal se nem eu mesma soube me impor e me escolher, porque ele faria isso?

O barulho irritante do meu celular começa novamente mas pelo toque longo percebo que é uma chamada, dou uma ultima encarada no espelho respirando fundo e caminhando em direção ao celular.

O encontro jogado na cama em um emaranhado de lençol, cobertas e travesseiros, após o pegar encaro o nome na tela confirmando minhas suspeitas e deslizo o dedo na tela atendendo a chamada.

-Finalmente me atendeu, como vai sumida? Estou com saudades. - Ouço a voz com o timbre rouco tão familiar assim como os sinais de embriaguês bem claros nela.

-João, porque está me ligando a essa hora?- Pergunto mesmo sabendo exatamente o que ele quer.

-Já disse estou com saudade, pensei que poderíamos nos ver e...- Interrompo sua frase no meio.

-Olha João não me ligue mais ok? Foda-se, eu não dou a mínima para o que você sente. Pouco me importa se você sente ou não minha falta, essa história já deu o que tinha dar e vou estar muito ocupada cuidando de mim mesma de agora em diante!- Desligo meu celular sem esperar uma resposta, e me sento na cama.

Demorei muito para tomar essa decisão com medo de me arrepender, sempre pensei que ter um pouco dele ainda era melhor que nada, porém não me dei conta de que por isso estava tendo cada vez menos de mim também e tudo que eu sinto agora é uma onda de alívio me atingindo, uma sensação de liberdade como se alguém estivesse quebrando as correntes que me prendiam, retirando as algemas.

Uma pixação que eu vi em um muro qualquer dizendo "Pouca cerveja ainda é cerveja. Pouca saudade ainda é saudade. Pouco amor não é nada" agora finalmente faz sentido.

E com a constatação de que eu finalmente consegui romper o padrão instantâneamente relaxo meus ombros e permito me sentir feliz por finalmente ter me escolhido.

❖❖❖
Notas de Rodapé

"Amar a si mesmo é o começo de um romance para toda a vida."

- Oscar Wilde

Obrigada por ler até aqui e por favor deixe sua opinião nos comentários. ♥

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Comentários (1)
Postado 28/02/19 23:14

Que texto lindo! É uma lição mais do que maravilhosa para o leitor levar para a vida.

Meus parabéns ♥