O olhar de Jurema
Francisco L Serafini
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 14/11/18 09:14
Editado: 14/11/18 09:21
Gênero(s): Drama
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 6min a 8min
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Palavras: 968
Livre para todos os públicos
Capítulo Único O olhar de Jurema

Jurema acordou cedo, como sempre o faz, e preparou o café da manhã. Sentou-se à mesa e logo estava acompanhada por seus dois filhos. Eles adoram presunto e Jurema sabe disso. Por isso, preparou uma receita que acentuava o gosto do frio e permitia que uma fatia satisfizesse os dois. O presunto está caro e, portanto, é preciso saber aproveitá-lo. Em seguida, ela levou seus filhos para a escola próxima a sua casa. Para tal, utilizou de uma bicicleta, a qual possuía dois bancos extras oriundos de uma improvisação caseira. É a maneira mais rápida e barata de levar as crianças à escola, o que permite economizar um dinheiro e chegar ao trabalho no horário. Já no escritório, ela recebeu os clientes de seu patrão com um sorriso largo no rosto e de maneira eficiente. Os clientes são pessoas poderosas, mas metódicas, que implicam até com a posição do vaso de flores na recepção. Então, para impedir desagrados, Jurema instalou uma câmera na entrada do escritório, a qual faz imagens dos clientes que chegam, para então ela arrumar as flores, entre outras coisas, da forma que cada um se agrada. Essa inciativa fez a Jurema ter um aumento em seu salário, embora não muito significativo.

No horário de almoço, Jurema aproveitou do momento de descanso para se inteirar do mundo. Leu o jornal da cidade e, depois, o do estado. Neles, ela viu que a inflação disparou, que o governo está, novamente, em um escândalo de corrupção e que empresários falsificaram os certificados de qualidade da carne que comercializam. Escândalos e mais escândalos são o que desanimam Jurema. Assim, para ver se a sorte será diferente amanhã, Jurema mudou o foco da leitura e verificou seu horóscopo. Ele nunca falha, embora ela nunca tenha feito uma estatística para ver realmente quanto eficiente ele é. Mas Jurema acredita nele e altera seu humor de acordo com o que lê.

Antes de voltar a seus ofícios, ela conversou com sua superiora no grupo de revenda de produtos cosméticos, atividade a qual ela entrou para ter uma renda extra. Mas não está fácil de conseguir um bom dinheiro, tal como lhe tinha sido prometido. Sua superiora disse a ela que deveria atrair mais três pessoas ao grupo para ganhar um maior rendimento. Jurema não entendia o porquê disso, mas disse que fá-lo-ia. Para encerrar, olhou o vídeo que seu primo tinha postado no grupo da família sobre a nova ferramenta do governo para acabar com a corrupção. Ela gostou do que viu e repassou para suas amigas.

O sol já tinha ultrapassado a linha do horizonte fazia uma hora e meia quando Jurema chegou em casa. Recebeu um abraço apertado de seus filhos, quem já estavam em casa há algumas horas, na companhia de sua vizinha e também avó. Jurema, então, preparou um jantar gostoso e dedicou o horário da novela para ajudar seus filhos a fazer o dever de casa. Posteriormente, ela os colocou na cama e foi tomar um banho. Ao parar em frente ao espelho para pentear seus cabelos ainda molhados, ela olhou para seus olhos. E ela o fez com muita atenção, com a intenção de ver tudo que eles podiam lhe dizer. Logo ela notou, que aquele olhar cansado e esperançoso não pertencia somente a ela, mas ao João do açougue, à Maria da padaria e ao Antônio do ônibus. Pertenciam a todos os brasileiros que dão o seu jeito para conseguir colocar comida à mesa e ter uma vida digna junto aos seus próximos.

Ela percebeu o quanto o povo brasileiro era trabalhador e criativo, visto ao empenho que eles colocavam para cumprir com seus deveres, o que lhes exigia desenvolver novas habilidades, tal como soldagem para adicionar dois bancos a uma bicicleta, além de se tornar apta para conduzi-la. Ela também notou que o povo poderia agir de forma mais eficiente se tivesse mais acesso a informação de boa qualidade e um incentivo maior por parte de seus superiores e/ou representantes. Esse pensamento lhe brotou ao lembrar que ela não sabia nada sobre sistemas de captura de imagem, mas fez um esforço danado para compreender o único guia que achou na internet para instalar a câmera, o que acarretou numa instalação funcional, mas com vários pontos falhos. Desanimou-se devido a seu chefe, que até reconheceu sua atitude com um aumento menor que a inflação, não criar oportunidades para que ela aprimorasse o sistema.

Além disso, seus olhos dizem que a sua esperança surgiu e ressurge ao ler sobre seu futuro no horóscopo e nos vídeos que recebe nas redes sociais, além, claro, por saber que é capaz de criar diferentes artifícios para facilitar sua vida. No entanto, parece que as estrelas não estão mais precisas, que na ferramenta do governo faltam alguns parafusos e que nunca tem o número de pessoas o suficiente para vender shampoo e creme para as mãos. Essa percepção se criou e se fomentou ao ver que tudo que lhe foi dito não aconteceu até então. Para ela, com toda a certeza, há algo nisso tudo que não está correto ou que está incompleto. Seu olhar demonstra essa sensação de ser enganada constantemente e não conseguir visualizar o que está de errado e quem é mal-intencionado.

Jurema fechou os olhos e decidiu ir dormir. Muita coisa se passa diante a seu nariz e ela não sabe como lidar com isso tudo. Ela vê oportunidades em todas as esquinas e tem certeza que a vida poderia ser melhor se tudo fosse mais claro. Mas como tudo é tão obscuro e difícil de processar, fechar os olhos e repor as energias é o que ela acredita ser o melhor a fazer. E por isso ela o fez, o faz e o fará, mesmo com seus olhos lhe alertando que é possível mudar.

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Postado 04/01/19 01:22 Editado 04/01/19 01:23

Seu texto encapsulou bem a ideia que eu tinha para o desafio, e, como já disse no passado, você tem uma escrita excelente - especialmente para contos deste tipo.

A personagem retratada e as pessoas e ambientes com quem ela interage representam uma caricatura realista do dia-a-dia da maioria dos brasileiros. Tal representação refere-se principalmente às características do contínuo trabalho duro apesar do descaso dos demais, das dificuldades da vida e a realidade da política, acompanhada ao otimismo e à esperança de que as coisas vão melhorar (apesar de raramente melhorarem).

Senti falta de um algo mais no final, ou talvez eu que tenha falhado na interpretação do mesmo. Pareceu um tanto... anti-climático. Não consegui distinguir se tu escreveste desta forma para retratar o infortúnio do cotidiano que nunca muda, ou talvez até como uma crítica à personagem, que continuará a acordar e dormir na mesma realidade, sempre na expectativa da mudança.

Se foi intencional ou não eu não sei, mas talvez é isso mesmo que é a maior realidade/crítica brasileira: o anti-clímax, a repetição, a expectativa que ao fim decepciona.

De qualquer forma, ótimo texto como sempre, e obrigado por participar do desafio. Lamento a demora pelo comentário.

Feliz 2019 para você, Francisco!

Postado 16/01/19 23:15

Sim, Dan. Você captou muito bem o que eu queria passar. Fico feliz por isso. Mas para deixar mais claro, vejo que o brasileiro é capaz de mudar, mas não o faz por falta de conhecimento e por acomodação.

É assim que vejo o povo e é por isso motivo que vejo que o Brasil é o que é, está onde está.

Muito obrigado pelos elogios e pelas palavras!

Postado 01/04/19 12:57

Excente escrita. Narrativa impecável. Detalhes que mostram como é a vida de um cidadão brasileiro comum. Detalhes pequenos a outros, tao grandes para nós

Postado 23/04/19 14:27

É... vidinha de gado (gado, nesse caso, é sinonimo de engrenagem e não de corno, hehehe) essa nossa.

Obrigado pelo comentário!