Sobre vida
Nilton Victorino Filho
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 19/07/19 19:05
Gênero(s): Cotidiano
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 4min a 5min
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Palavras: 642
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Livre para todos os públicos
Capítulo Único Sobre vida

Não se trata de sorte ou azar, ninguém escolhe nada, onde irá nascer, que família terá, existem probabilidades a serem consideradas, tempo e lugar são detalhes.

Todo mundo sabe o tempo exato de quando começou a viver, não o tempo do nascimento, eu falo do tempo em que você tomou as rédeas da sua vida e passou a se sentir parte desse mundo, importante ou não, você começou a se sentir parte de todo o contexto, toda essa engrenagem que damos o nome de vida.

Me lembro que, no ano de 1982 eu completei 14 anos, estudava, trabalhava e fazia um curso, todo um mundo novo se mostrou e, eu me senti nascer para ele, nesse sentido, esse é o meu ano de nascimento.

A vida não dá a todos as mesmas oportunidades, criança nenhuma escolhe como e quando virá a sua redenção, as crianças vivem num mundo de adultos, depende deles a sobrevivência, esse é um mundo de adultos e, muitos deles são sádicos e insensíveis e, infelizmente, esse tem participação ativa nos destinos das crianças.

Muitas crianças não tem uma data que seja um marco de nascimento para a vida e, sim, um tempo exato para começar a morrer, morrer em vida.

1982 foi o ano que Luciléia, tendo apenas 6 anos de idade, começou a morrer em vida.

A mãe havia engravidado, aos 13 anos, de um homem violento e gerado uma filha de nome Claudia, ainda na dieta, engravidou outra vez.

Uma adolescente com uma filha ainda amamentando e grávida de outra menina, não seria a primeira e nem a última a tentar o aborto, várias tentativas e Luciléia insiste em nascer e, em abril de 1976, vem ao mundo a criança de nome Luciléia e, não houve festa, a violência do pai já imperava naquele lar.

Não irá o leitor precisar consagrar-se mestre para entender que, uma adolescente, com duas filhas pequenas e um homem que costuma beber, é um casamento que tem poucas chances de vingar, para proteger-se e às crianças, Luzia, a mãe fugiu.

A menina viu seu mundo se modificar, a relativa sensação de pouco conforto deu lugar ao conforto nenhum, na favela do Parque São Domingos não havia água encanado ou energia elétrica, em frente ao barraco o esgoto corria à céu aberto, no entanto, servia para fugir da violência do pai e, uma relativa paz se anunciava.

Sendo ainda jovem, vinda de Minas Gerais e sem contar com a ajuda de parentes em São Paulo, Luzia pensou que a solução estava em procurar um companheiro, alguém que se pudesse contar, alguém para se amar e ajudar a cuidar das meninas.

Não se pode enxergar um monstro só botar os olhos, eles andam pela rua e se passam por pessoas comuns e, o Francisco era uma pessoa dessas, alto, de aparência agradável, fala mansa e amigo, bem do tipo que inspira confiança, a moça se apaixonou e, fez o que as moças iludidas com o exterior, geralmente faz, juntou-se a ele, trouxe-o para o seu lar.

Nesse primeiro instante, o Francisco era um homem bom, cumpridor de seus afazeres como marido, a moça trabalha de auxiliar de limpeza e, não demorou a ficar grávida de novo.

Monstros nascem monstros, só que disfarçam esse comportamento por um tempo indeterminado, um dia a máscara cai, muitas vezes o álcool é a desculpa que faltava e, Francisco começou a consumi-lo.

A pessoa educada e bem-humorada deu lugar ao cavalo, agora ele batia na esposa e nas meninas, negava-lhes alimentos e humilhava-as em público.

No entanto, o monstro de verdade, na verdadeira acepção da palavra... só Luciléia viu e sentiu.

No ano de 1982, enquanto a mãe saía para trabalhar e a irmã mais velha estava na escolinha, com a desculpa de dar banho na segunda, passou a tocar-lhe nas partes íntimas.

A menina começou a morrer.

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Apreciadores (5)
Comentários (5)
Postado 09/09/20 23:33

A carga emocional desse texto é tão real que o leitor termina a leitura com o coração apertado, como ele estivesse sendo quebrado e pisoteado. A vida é cruel, mas as pessoas conseguem ser monstros que nem todas as palavras conseguiriam explicar.

A narrativa é dura e direta, mas o impacto das palavras equivale a um soco no estômago. Todos os acontecimentos fazem parte de uma realidade triste e muito comum, principalmente no Brasil. Muitas vezes subestimamos a capacidade humana em ser pior e é lendo textos assim que vejo o quanto ela não possui limites.

Como sempre, o senhor nos aprensenta obras memoráveis e impactantes.

Obrigada por compartilhar essa obra incrível conosco!

Parabéns, Nilton

Postado 11/09/20 11:44

Sr. Nilton, estou impressionada com este texto tão forte...

Infelizmente tudo isso retrata a realidade, dura, cruel, horrível e monstruosa que muitas crianças sofrem diariamente...

A vida é muito injusta...

"Não se trata de sorte ou azar, ninguém escolhe nada, onde irá nascer, que família terá" - essa frase me tocou profundamente, pois é uma verdade extremamente triste...

Parabéns, Nilton, por mais um texto tão bem escrito <3

Um grande abraço <3

Postado 11/09/20 18:39

O meu coração se partiu com essa história, nossa, muito triste, muito forte, esse tipo de monstro devia morrer, isso é tão horrível que não tem nem o que dizer... o texto ficou ótimo viu...

Postado 11/09/20 21:03

Quanta tristeza e quanta dor nesse texto, mais ainda por saber ser a realidade de muitas crianças.

Seu texto é doloroso, mas um verdadeiro alerta!

Obrigada por compartilhar conosco.

Postado 11/09/20 22:48

A tristeza que existe no seu texto é maior do que qualquer coisa que se possa imaginar. É triste ver o sofrimento da mãe, das meninas, ver a vida delas indo cada vez mais para o fundo de um poço escuro e asqueroso.

Suas palavras retiraram a vida de tantas, escondidas na sombra do medo, que vão morrendo lentamente, e talvez até anseiem por tal coisa.

Muito obrigada por trazer um texto tão necessário para estre antro.