As sete horas
Francisco L Serafini
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 25/03/16 15:42
Gênero(s): Drama
Tags: álcool
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 8min a 10min
Apreciadores: 3
Comentários: 1
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Palavras: 1302
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Esse texto, quando eu o fiz, era para ser uma comédia, mas hoje relendo-o, vejo que tá mais para um triste drama.

Sei lá... interpretem como acharem mais pertinente.

Capítulo Único As sete horas

Que noite louca. Será que já é terça-feira? Meu relógio diz que são às setes horas da manhã. É, acho que tem lógica. Não teria como ter sol no céu durante a madrugada. Então posso dizer que é terça-feira. Então ontem era segunda-feira. Gosto das segundas-feiras. Deveria ser sempre segunda-feira.

Segunda-feira é quando o Seu Juca paga aquele churrasco para os mais chegados. Ele sempre tem uma carne e uma cachaça oriunda de sua fazenda. A carne até que é boa, mas nem faço questão que tenha, pois ela acaba cortando um pouco do efeito do álcool. Álcool esse que vem daquela majestosa branquinha. Provavelmente seja o único que prefira a cachaça ao churrasco, tanto é por isso que sou o único a tomar uma garrafa inteira. Seu Juca é muito legal e gosta muito de mim. Mas também pudera! Sou quem anima o churrasco com meus cantos e tropicões.

A noite acabou e acho que estou perto de casa. Não tenho certeza se tenho que seguir essa rua ou dobrar a esquerda. Esquerda? Qual lado é a esquerda? Acho que é o lado que fica o coração. Como posso senti-lo com a mão, a esquerda é para esse lado aqui. Mas tem muito carro passando pela esquerda. Vou para a direita então! Mas tem muito carro passando pela direita. Mas como pode isso? E essas buzinas nessas horas da manhã? Qual o sentido disso? Será que tem alguém no meio da rua? Vou eu saber. Mas vou descobrir lá no boteco do Batatinha, que fica logo ali na frente.

Hoje é terça-feira. Adoro as terças-feiras. Menos que as segundas-feiras, mas tenho meu carinho pelas terças-feiras. O Batatinha é um grande amigo meu. Ele me consegue um vinho dos bons por cinco reais ao litro nas terças-feiras. O Batatinha tem contatos bons. Queria eu conseguir esse vinho direto da fonte dele. Acho que vou espionar o Batatinha. Já que são às setes horas da manhã, ele deve estar recebendo o vinho do fornecedor dele agora. Vou pegar o contato do fornecedor e comprar diretamente.

Mas como? O Batatinha já está aberto? Que horas esse homem começa a trabalhar? Que homem trabalhador. Pena que ele não pode escolher seus horários e o lugar onde ele queira trabalhar. Hahahaha! Chupa essa, Batatinha. Eu faço o que quero da minha vida! Até escolher a hora e lugar onde trabalhar.

– Ooo, Batatinha?! Ic! – maldito soluço – Já aberto? Ic!

– Como já aberto, Murtosa? São às onze horas! Hahahaha!

– Não minta para, ic, mim, Batatinha. Eu ainda, ic, sei ver horas.

– Mas então olha ali na parede do boteco e me diga que horas são.

– Batatinha?! Ic, mas tu paraste no tempo? Por, ic, que usar esses relógios com, ic, ponteiros? Com seis ponteiros. Não tem como saber que, ic, horas são.

– Hahahaha! Já está bêbado, Murtosa? Ou continua?

– Vai a, ic, merda, Batatinha. Não estou bê, ic, bêbado. Eu sou lá homem de ficar, ic, bêbado?!

– Está bem, está bem. É extremamente sóbrio um homem ver seis ponteiros no relógio e chegar ao boteco caminhando pelo meio da rua com uma garrafa de cachaça na mão.

– Cachaça, ic, onde?

– Na tua mão direita, Murtosa.

– Oh! Ic, é verdade. Vende-me, ic, dos teus vinhos, ic, Batatinha.

– Vendo, mas hoje sem pendurar.

– Como, ic, sem pendurar? Tu sabes, ic, que eu te pago.

– Sei. Por isso que é sem pendurar.

– Vai a merda, ic, Batatinha.

O Batatinha tem dessas. De querer complicar as coisas simples. Seis ponteiros no relógio, abrir às sete horas da manhã, não me vender vinho a fiado. Ele que vá a merda. Não estou nem aí. Ao menos ele me disse onde achar uma garrafa de cachaça. Acho que é a última do Seu Juca. Acho que ele me deu, porque faz questão que eu a beba. Ela já está até aberta. Pô, mas que merda. Ela já está vazia também. Estou fazendo o que com essa merda na mão?

Vou ter que ir até em casa buscar dinheiro. Vou dobrar para a esquerda aqui, onde eu pego a avenida principal. Mas é cumprida essa avenida. E que sol forte para às sete horas da manhã. Já não consigo caminhar direito. Deve ser o calor. E por que as pessoas tão olhando assim para mim? Quanto desprezo no olhar, meu Deus. Não estou fazendo nada de errado. Opa, cheguei.

– Maria, ic, Clara! Que bom, ic, vê-la! – que merda ter que ficar gritando da rua. Se eu soubesse, não tinha colocado essas cercas há dez anos atrás. Só me atrapalham. E por que a Maria Clara me olhou com esse olhar. Será que disse algo de errado?

– Papai! Há quanto tempo!

– Nem muito tempo, ic, Clara.

– Faz tempo sim, papai. Chegou hoje da tua viajem a África?

– África?

– É, a mamãe me contou que o senhor é um grande desbravador das planícies alagadas da África.

– Não, ic, eu estava, ic – que merda de soluço!

– Deve ser muito difícil. Olha o estado do senhor, papai. Barba e cabelo compridos, roupa velha e rasgada, pés descalços. O senhor deve ter lutado contra vários leões, né, papai?

Barba e cabelo compridos? Onde? Em quem? De quem a Maria Clara está falando? E que história é essa de África e de leões? Acho que ela está assistindo muito daquelas porcarias da televisão.

– Mamãe! O papai está aqui!

– O quê, Clarinha? O teu pai está aí?

– Sim. Aqui fora! Não sei porque ele ainda não entrou. Deve ter perdido as chaves na luta contra os leões.

– É, pode ser, Clarinha. Pode ser. Mas agora entra aqui, vem assistir o teu desenho que tu tanto gostas. Eu vou falar com o teu pai.

– Oba! Desenho! Até logo, papai.

– Ic, até.

– Murtosa! O que tu estás fazendo aqui?

– Como assim, ic? Aqui é minha, ic, casa! – por que ela tem que ficar na sacada da nossa casa enquanto eu na rua? – E que história, ic, é essa de África?

– Para de gritar, seu animal estúpido! Essa aqui não é mais tua casa há dois anos! Não lembras que te expulsei de casa?

– Ah, ic, Josefina! Já faz tanto tempo, ic, que discutimos sobre, ic, aquilo. Não, ic, tem porque ter, ic, mágoa de mim. Eu, ic, não, ic, sou, ic – que merda de soluço! – eu não sou, ic, viciado!

– Murtosa, seu desgraçado! Meu nome é Joelma e não Josefina! O álcool corroeu teu pequeno cérebro e agora só fica vagando pelas ruas como eu bêbado imundo que até parece que voltou da África. Foi por isso que inventei isso para Ana Clara essa história, porque, se ela te visse na rua, não queria que ela soubesse que o estado do seu pai era, na verdade, por causa da cachaça.

– Quem é Ana Clara?

– Ah! Murtosa! É a tua filha. Maria Clara é fruto do teu cérebro podre.

– Ah, Joelma! Para, ic, de drama! Eu sei o, ic, nome da Maria, ic, Clara. Digo, ic, Ana Clara.

– Vai embora daqui, Murtosa! Nunca mais quero te ver aqui na frente de casa!

– Está bem, ic, está bem, ic! Eu vou embora. Só preciso de, ic, quinze reais.

– Vai embora, Murtosa!

A Josefina, Joelma, sei lá, sempre foi assim. Um barril de pólvora. Explode por qualquer coisa. Faz dois anos que discutimos e ela continua com essa paranoia de eu ser um bêbado viciado. Mas que se exploda ela mesmo. Não preciso dela. Consigo meu dinheiro sozinho. Mas o que eu preciso mesmo agora é descansar. Acho que aquele banco ali da praça está bom para um cochilo. São às sete horas da noite. Como pode ter tanto sol agora? Só pode ser horário de verão. Mas isso não importa. O que importa é que vou dormir como um anjo porque amanhã, amanhã tem a festa do Antônio, lá no viaduto dele. Que tenha daquela branquinha.

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Apreciadores (3)
Comentários (1)
Postado 25/07/16 21:03

AH! De fato! Eu diria que é uma tragicomédia... Não pude deixar de rir com os ic's permeando os diálogos! Ah, mas sim, é trágica a condição depravada do sujeito e a vergonha que ele desponta em sua família...

Muito bem escrito o conto! A leitura é saborosa, do começo ao fim. ^^

Postado 26/07/16 17:02

Obrigado, Ovni! Suas palavras são sempre bem-vindas!

Pois é... texto foda de interpretar, visto que tem cenas cômicas, mas é algo triste. Foda...

Fico feliz que tenha gostado!