A noção de tempo parecia um conceito surreal durante aquela queda. Ternura nunca sentiu um medo tão primal em toda a sua existência até então e mesmo tendo consciência de sua imortalidade, não conseguiu segurar o pranto silencioso enquanto despencava nas trevas quase que completamente inerte. O próprio som de sua queda a assustava, pois lembrava um pouco o silvo medonho que a arma de sua irmã fazia. Não podia enxergar nada, tanto pela escuridão quanto pela visão embaçada pelas lágrimas. Mil pensamentos e sentimentos a tomavam, mas o mais constante era a imagem mental de seu corpo sendo reduzido a pedaços quando atingisse o fundo do poço ou talvez sendo trucidado por alguma criatura lá embaixo, bem como o terror e pesar que aquilo lhe causava.
Então, sem aviso, sentiu seu diminuto corpo colidindo com algo líquido e gélido, afundando em uma velocidade e a uma profundidade vertiginosas. Curiosamente, não houve dor, mas uma sensação de acolhimento como nunca sentira antes. Era como se... Se estivesse nos braços de sua mãe. Deixou-se tomar por tal sensação, submergindo mais e mais até sentir os seus pés tocarem o leito rochoso do poço. De imediato, uma força misteriosa agora a empurrava gentilmente para cima juntamente com inúmeras bolhas de ar, fazendo-a emergir após alguns momentos. Com dificuldade, Ternura foi nadando até uma espécie de aclive pétreo mais a frente.
A garota se pôs de pé e ficou um tempo parada, chorando baixinho no escuro. De início, não conseguiu acreditar que tudo aquilo era verdadeiro, mas sim algum indescritível pesadelo. Todos aqueles corpos trucidados, aquele monstro que vagamente lembrava seu querido tio, ser arrastada por entre os mortos... Não podia ser real. Mas, a queda e o que sentiu durante ela... Aquilo foi o choque de realidade que precisava e agora seu corpo parecia doer bem mais, assim como seu coração.
- Por que ele virou aquela coisa ruim? E como ele pôde... Me machucar desse jeito? - indagou Ternura com a voz embargada, ainda sentindo-se suja de sangue e traída pelo seu tio Diab, de quem tanto gostava. - Será que ele... Machucou a tia Mei? E minhas irmãs? E a Flávia? Será que.... Ele matou todo mundo? Eu vou... Morrer aqui assim? Com fome, frio, machucada e sozinha?!
Ternura não mais podia conter o choro, se encolhendo aos poucos enquanto sentia as lágrimas escorrerem e pingarem na rampa de pedra onde estava apoiada. Estranhamente, cada gota que saiu de seus olhos se transformou em um pequenino vagalume quanto tocou o piso, cada um de uma cor diferente. Foram cinco ao todo, alçando vôo calidamente de modo a iluminar sutilmente os arredores. A menina ficou mais encantada que confusa com aquilo, diminuindo o choro enquanto observava suas inesperadas criações bailando no ar e revelando uma entrada lateral para espécie de gruta adjacente rampa acima.
A menina seguiu os vagalumes e se deparou com um tipo de grande cômodo escavado na rocha. Nele havia um saco de dormir feito com a pele lisa e escura de algum animal, bem como um cantil de água, um traje cinza de corpo inteiro e, mais afastada, algum tipo de plantação de cogumelos, com cerca de quatro variedades. Entre eles e em algumas partes do local existia um musgo azulado que tornou-se sutilmente fluorescente quando os vagalumes pousaram nele, fornecendo uma bem vinda iluminação ao recinto, ainda que fraca. E no centro da gruta, havia um envelope preto com lacre em forma de um pentagrama.
Timidamente, Ternura apanhou o invólucro e o abriu. Era uma carta de seu tio. Com a voz ainda embargada, Ternura começou a ler o que havia escrito:
"Preciosa Termura
Não ouso imaginar o quão confusa, entristecida e provavelmente machucada (em diversos aspectos) você esteja neste momento e nunca existirá tempo o suficiente na Existência para que possa me perdoar por tudo o que fiz. Contudo, ao menos permita-me explicar os terríveis motivos que levaram seu tio a fazer tudo isso.
Daqui a mais ou menos seis meses, os poderes latentes referentes à sua Essência Divina irão se manifestar com tamanha potência que, se seu corpo, mente e alma não forem fortes o bastante, você será extinguida de tal forma que será obrigada a regressar para a Divina Brina. Sendo ela um espírito agora, não mais poderá fazer com que você (re)nasça neste mundo, pois seria preciso o sangue dela para tal coisa.
Tendo isso em mente, no dia do seu nascimento ela perguntou mentalmente se eu aceitava um Desígnio dela: treinar você no momento oportuno (só depois eu soube que era para garantir que não fosse destruída pela sua própria força). Eu aceitei de imediato. Só que, para torná-la forte o bastante para suportar o seu Despertar, eu teria que ser extremamente rigoroso, a ponto de te expor a perigos e provavelmente te machucar, tanto física quanto emocionalmente.
Eu jamais conseguiria fazer isso, Ternura. Quando lhe encontrei no Jardim da Deusa, fui exposto a uma quantidade maciça e prolongada de sua Essência Divina em sua pureza máxima. Isso me tornou incapaz de lhe fazer mal intencionalmente. Por isso me vi obrigado a recorrer ao Diablair. O verdadeiro Diablair, a coisa maldita e maligna que estava selada em meu coração lá na Câmara e que somente a Flávia tinha tido a infelicidade hedionda de conhecer e confrontar até então.
Embora eu esteja refreando suas ações, Diablair possui um grau de misantropia, niilismo e desejo de extermínio praticamente imensuráveis. Isso o torna algo poderoso e perigoso demais para ser mantido sob controle, além do que toda a sua malevolência irrestrita exerce uma espécie de fascínio sobre mim, me corrompendo pouco a pouco.
Quando a hora chegar, vai ter de lidar com o que quer que esta terrível abominação diga ou faça para lhe pôr à prova e tenho plena convicção de que vai conseguir chegar neste ponto da sua jornada. O que irá ocorrer depois só vai depender de você e estou tranquilo quanto a isso.
Neste momento, lhe basta saber estamos em Saasmad*. Trata-se de um Reino Sombrio Irregular cuja abertura aparece uma vez por ano em algum lugar aleatório do Inferno. Aqui, magia alguma do tipo Feitiço, Encantamento, Invocação ou Conjuração funcionará e o tempo flui de modo diferente: cada dia fora daqui equivale a três. Assim, teremos cerca de um ano e meio para que lhe preparar adequadamente para seu Despertar.
Este poço tem seiscentos e sessenta e seis metros de profundidade e escalá-lo será a primeira parte de seu treinamento. Nesta gruta há um segundo ponto aquoso bem menor, porém com água mais potável. Tanto o traje quanto o saco de dormir são feito de um material que não suja nem rasga ou molha, além de harmonizarem sua temperatura de modo que não sinta frio. Os cogumelos são vagamente saborosos, porém altamente nutritivos e completamente absorvidos pelo corpo, então esqueça o desprazer de suas necessidades biológicas por enquanto. Por fim, o musgo tem sutis propriedades medicinais e higienizadoras.
Minha sobrinha, não pense que é fraca, pois isso você jamais foi e com toda a certeza jamais será. Todavia, hoje reconheço que o modo como a sua tia Mei e eu a criamos e educamos potencializou e muito sua Essência Divina, além do que não lhe preparou totalmente para que você desempenhe plenamente o seu papel neste mundo.
Como parte da Trindade do Apocalipse, sua existência (assim como a de suas amadas irmãs) tem uma importância que excede minha capacidade de explicações. Mas, acima de tudo, eu quero que você sobreviva. Eu não suportaria perder mais alguém, ainda mais se fosse você, a quem amparei em meus braços desde bebê e por quem sacrificaria minha vida e alma se/quando fosse preciso.
O dia em que lhe encontrei mudou meu ser de modo a elevar-me, tal qual ocorreu quando encontrei a Mei. E agora isso deve retribuído, pois sua vida depende disso. Por isso descubra o quão forte você é, caubói do Inferno. E o quão ainda mais forte você pode ser.
Ternura, sei que estou exigindo muitíssimo de você, mas também tenho plena convicção de que irá suportar e superar todo o Inferno que estou lhe imputando, pois se não o fizer, será o seu fim, o meu e o de todo o mundo mais adiante. Sei que não mais mereço sua confiança e muito menos seu perdão, entretanto tudo o que leu até aqui é somente a verdade. Ainda é livre para não acreditar em mim, só que lhe peço encarecidamente que não faça isso. E saiba que tudo isso é apenas o começo, já que verdadeira batalha será quando finalmente você sair do poço.
E eu sei que você vai sair. Então... Até lá.
Atenciosamente,
Uma criatura que só deseja o seu bem e também está lutando com tudo o que ainda lhe resta, Tio Diab.
Ao término da leitura, Ternura abraçou a carta com força, como se o manuscrito fosse seu tio e então chorou alto, como nunca antes havia feito em toda a sua terna existência, gerando diversos vagalumes conforme se acocorava aos prantos e esmagava carinhosamente a folha de papel entre seus bracinhos trêmulos. Pôde sentir nitidamente todo o pesar e afeto de Diablair em cada linha, pôde até mesmo vislumbrar o par de lágrimas que ele derramou enquanto escrevia aquelas coisas. Entretanto, o que mais a emocionou foi o fato dele acreditar que ela seria forte o bastante para fazer valer todo aquele martírio que eles e sua família passariam em nome da sobrevivência, ou melhor, da própria existência dela.
- Espera só, Tio Diab... - exclamou Ternura, ainda vertendo lágrimas e com a voz alterada pelo peso das revelações. - Eu não vou te decepcionar. Eu juro, tio! Eu juro!
Sobrecarregada pelos sentimentos e informações que a assolavam bem como pela exaustão física, a pobre menina acabou por perder os sentidos escorada na parede da gruta, sem largar a carta que Diablair havia escrito para ela nem mesmo quando lentamente tombava no solo rochoso e gelado de seu novo lar, rodeada por vários lindos vagalumes...