Um baú de mentiras
Monise
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 08/04/21 08:26
Editado: 13/04/21 00:06
Avaliação: 9.73
Tempo de Leitura: 7min a 9min
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Capítulo Único Um baú de mentiras

Anos e anos trabalhando para aquela velha maldita e finalmente a infeliz bateu as botas, alívio!

Agora sim, ia mudar de vida...

A infeliz não tinha parentes, era tão sovina que nunca se dispôs a ajudar um ser no mundo.

Tudo o que ganhava, guardava num velho baú embaixo do leito e ainda choramingava ao lhe entregar mês a mês aquela miséria de salário!

Todavia, Sebastiana sabia esperar, os anos de fome e miséria nas ruas do Rio de Janeiro a ensinaram a ter paciência...

Conhecera dona Veridiana por acaso. Era um dia chuvoso e frio e percebeu quando a pobre senhora escorregara na ladeira ralando-se inteira e com as compras espalhadas pela rua...

Saiu correndo da janela e foi ajudar.

Pegou a senhora e a sentou no degrau de uma casa, rapidamente recolheu todas as compras e como a pobre estivesse encharcada e suja de lama, a levou para sua casa, insistiu que tomasse um banho, emprestou umas roupas e lhe deu um chá bem quentinho com biscoitos que tinha acabado de ganhar da vizinha.

A velha ficou surpreendida com tanta bondade e nem Sebastiana compreendia porquê fizera tudo aquilo, talvez via na velha a mãe que nunca conhecera...

Tornaram-se amigas e sempre que Sebastiana a via no começo da ladeira, corria e a ajudava a carregar as sacolas e oferecia um cafézinho. Os olhos da velha brilhavam de contentamento ao sorver a doce bebida e mordiscar um bolo ou biscoito que Sebastiana sempre oferecia...

Um dia dona Veridiana arrastava as sacolas no início da ladeira, parecia estar passando mal, mais que depressa Sebastiana correu a ajudar.

A velha senhora mal conseguia respirar e por isso Sebastiana insistiu por levar as compras da amiga até em casa. Finalmente ia conhecer um pouquinho mais da amiga...

Dona Veridiana se sentia bem mal, mas de modo algum gastaria seu rico dinheirinho com um táxi, então aceitou a ajuda, afinal, quem a recebia tão bem e lhe dava tantas coisas não poderia ser uma pessoa ruim, era tola ao gastar dinheiro à toa, mas não ruim.

Sebastiana ficou deslumbrada com o tamanho da casa da amiga, um verdadeiro palácio!

_Ué Veridiana, tu nunca me falou que era rica!

_Rica, eu?! Pobre de mim, essa casa é uma tristeza, só dá gasto, uma herança de papai, mal dou conta de pagar água, luz e impostos. Só não me livro dela por valor sentimental...

Dentro da casa, um luxo, tudo bem antigo, era verdade, mas um luxo só: porcelanas, tapeçarias, quadros, lustres grandiosos... Tudo cheirava mofo e poeira, mas era lindo!

_Ô Veridiana, tudo aqui é muito bonito, porquê tu não chama teus filhos prá te ajudar a dar uma faxina?

_Pobre de mim, sou sozinha, nunca tive filhos nem marido, a vida é muito cara hoje em dia... E essa casa, grande demais, só gasto, se não fosse a única lembrança que tenho de papai...

Sebastiana estava deslumbrada, precisava ir mais vezes ali, contemplar aquela belezura! Precisava saber mais...

_Ô Veridiana, olha, se tu quiser eu te ajudo a limpar, sábado num costumo fazer faxina, mas dá dó ver essa beleza de casa assim, se quiser venho e damos um trato em tudo!

_Pobre de mim, não posso pagar, não tenho como! Gastei tanto com remédios esse mês...

_ Ô amiga, sei como é isso... Então dessa vez num cobro nadinha, o que você acha?

Os olhos da velha cintilaram! Claro que aceitou! Faxina grátis?! Imperdível...

E assim, o que era uma ajuda se tornou um hábito e Sebastiana ficou meses faxinando de graça, pois queria saber tudo sobre dona Veridiana e aquela casa...

Era perfeito! Nenhum herdeiro, nenhum parente vivo e a velha ainda tinha dinheiro guardado num baú embaixo da cama, com certeza tinha milhões, não, trilhões guardados ali dentro! Tinha que cultivar aquela amizade e se tornar a herdeira da velha...

Um dia dona Veridiana escorregou no banheiro e quebrou a bacia. Sebastiana só a encontrou dois dias depois, correu com a velha para o hospital, era grave! A velha ficou na UTI quase um mês, como não tinha parentes, Sebastiana ficou com ela, saía da faxina, engolia alguma coisa e corria para lá. Aos poucos a velha foi se recuperando, mas os médicos disseram que ficaria meses sem poder andar...

Não vendo saída a velha pediu a Sebastiana se não poderia trabalhar com ela, sabe como é, era pobre, ganhava pouco, a conta do hospital tinha sido um roubo e era impossível pagar uma enfermeira...

Sebastiana pensou um pouco, mas quanto iria ganhar? E o aluguel do seu barraco?

Dona Veridiana, falou que ela poderia morar na casa e que poderia continuar com as faxinas deixando a comida pronta para ela, aí só trabalhava a noite e nos finais de semana. Era pobre mas pagaria um salário, mas como iria morar com ela não gastaria com comida, nem aluguel, nem água ou luz, era uma grande economia para Sebastiana!

Sebastiana pensou e achou vantajoso de fato. Morando ali, com certeza estaria presente quando a velha batesse as botas (no hospital descobriu que a velha tinha problemas no coração, pressão alta e diabetes, não podia viver muito mais era quase uma múmia) e herdaria a fortuna!

Coitada da Sebastiana, a velha era o cão, chamava a noite inteira, reclamava da demora no banho, reclamava que estava desperdiçando comida, reclamava de luz acesa, nem TV tinha naquele inferno! Pelo menos aprendeu a gostar de ler, já que tinha biblioteca...

Como todos os sonhos da Sebastiana eram mentira e logo viraram pesadelos... Ô arrependimento! Mas não ia desistir tão fácil...

E os anos se passaram e a velha a cada dia mais insuportável e era aquele chororô na hora de pagar o salário...

Finalmente chegara a sua hora, a velha batera as botas, agora ia ser livre, quase quinze anos de sua vida naquele inferno, mas agora valeria a pena!

Largou a velha morta na sala e correu a abrir o bendito baú. Tinha um cadeado enorme, nada que umas marretadas não resolvessem...

Quando finalmente abriu...

"Surprise!!!"

Só dinheiro velho, recolhido! Poucas notas novas, mal pagaria o enterro!

Não era possível!

Arrombou as gavetas da velha, ordem de despejo da casa por não pagar impostos, tudo iria a leilão em três meses cado não quitasse as dívidas...

Inferno!!!

Outra gaveta, salário da velha comprometido por empréstimo, tava ali! Os remédios eram realmente muito caros...

Como sua percepção pudera falhar tanto?! No final sua ganância, a envolvera numa grande mentira!

Desperdício de vida, de tempo, de sonhos...

Encheu duas malas com o que pôde: livros, peças de cozinha, roupas de cama, saiu, alugou um barraco e só depois voltou a casa e chamou a ambulância.

Mentiu que estava dormindo e acabara de encontrar a velha...

Sorte não ser descoberta! O que pegou? Deu prá nada não, antes tivesse seguido sua vida e deixado a velha se virar...

MENTIRA para si mesma, agora não adiantava reclamar...

❖❖❖
Apreciadores (4)
Comentários (2)
Postado 28/05/21 13:31

Caramba, Srta. Monise, isso foi forte!

A ganância leva as pessoas a fazerem coisas absurdas, e muitas vezes sem perceberem que é um absurdo aquilo que estavam fazendo...

Não fiquei com dó de nenhuma das duas. Acredito que a Veridiana tenha percebido as intenções de Sebastiana, e tenha se aproveitado para usar muito ela. Bem feito, diga-se de passagem.

Um ótimo texto para refletir sobre essas questões relacionadas a dinheiro. Teria valido muito mais a pena Sebastiana vivendo pobre, mas livre, do que aprisionada aos caprichos de Veridiana esperando por um dinheiro que nunca veio (e mesmo que tivesse vindo, 15 anos é muito tempo...)

Parabéns e um grande abraço <3

Postado 29/05/21 15:45

Que bom que você gostou, Mei!

Obrigada pelo apoio e presença!

Postado 11/01/22 16:38

Às vezes nós pregamos peças em nós mesmos. Sentimentos como os da narradora cegam e, por mais que nos movam, em algum momento, eles próprios nos derrubarão. A leitura me trouxe uma baita reflexão!

Obrigada por compartilhar conosco.

​Parabéns, Monise ♥

Postado 22/01/22 18:14

A gente às vezes se perde nas nossas próprias expectativas e esquecemos de realmente olhar o que de fato acontece.

Obrigada por ler e comentar.

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