“Dormir: aquelas pequenas fatias da morte, como eu as odeio.”
- Edgar Allan Poe
Dia 4
Eu já não lembro mais como eram os dias sem ele, tudo apenas parece estar em um passado distante desde que estamos morando juntos. Apenas há um mês, a minha vida era totalmente diferente do que é agora. Eu penso que esse é um dos milagres que o amor faz.
Mês 2
Dia 1
Talvez seja pelo sabor estranho da água que agora eu já me acostumei ou a textura estranha do molho quando ele faz a minha comida favorita quase diariamente ou a cor do café sem leite, mas eu sinto que há algo estranho acontecendo na minha casa. O mais intrigante são os comprimidos que eu preciso tomar. Por que mesmo eu preciso tomá-los? Eu não lembro, mas ele diz que isso me faz dormir melhor, algo como 12 horas por dias.
Caminho até o pequeno armário que fica acima do espelho do banheiro, abro-o e tiro de lá um frasco com muitas pílulas que parecem nunca acabar, retiro as três que devo tomar e engulo sem água. As pílulas passam rasgando na minha garganta e a sonolência vem depois de alguns minutos.
Dia 3
O alarme soa nos meus ouvidos. Estico o braço na tentativa de desligá-lo, mas não consigo. Abro os olhos devagar, a minha cabeça dói como todas as manhãs ao acordar. A luz do sol invade as cortinas brancas quase transparentes diretamente nos meus olhos. Desligo o aparelho e já está de tarde, como sempre dormi muito. Preciso de um café forte, penso ao me levantar da cama.
Desço os degraus da escada lentamente até chegar ao andar principal, daqui eu consigo ver a cozinha branca, com armários feitos de madeira, uma janela grande fica em frente a pia ao lado do fogão e lá está ele preparando o almoço, enquanto a cafeteira está funcionando.
Caminho até ele devagar e o surpreendo com um abraço que o faz sorrir, antes que eu possa pegar a xícara de café, ele me leva até a bancada, aonde eu sento no banco alto e ele prepara o café da forma que eu aprendi a gostar de beber enquanto moramos juntos. Eu sempre pergunto qual o segredo do café. Mas adivinha? Ele nunca me diz.
Dia 5
As noites parecem sempre se repetire. Filme, pipoca, refrigerante ou suco e por último as pílulas antes de deitar. Sentada no sofá com o filme pausado, eu o vejo na cozinha preparar a pipoca, colocar um pó no copo e depois o suco. Colocou um pó. Deve ser açúcar e sinto sono agora. Então ele vem caminhando e me entrega o suco que borbulha e a pipoca. É hora de o filme começar.
Dia 7
Talvez eu esteja sendo paranoica ao dizer que desde aquele dia em que o vi colocar o que talvez seja açúcar no meu copo, eu não paro de pensar que talvez algo possa está acontecendo, sinto isso há alguns dias, mas como sempre, quase tudo some da minha mente após dormir por 12 horas. Desço as escadas e não o vejo em lugar algum, mas quando chego perto da cozinha, através da janela eu o vejo aparando a grama. Olho a cafeteira e vejo a xícara de café já pronta. Mais uma vez olho para fora e ele continua lá.
Decido pegar a xícara, mas ao invés de levar o líquido a boca, derramo-o na pia e ligo a torneira, lavo a xícara e a coloco no armário. Caminho até a geladeira prateada e ao abrir a porta vejo o suco, o mesmo de ontem e o mesmo de hoje a noite. Derramo um pouco do líquido alaranjado na minha mão e passo a língua, provando-o. Doce. Não parece precisar de açúcar. Ou ele teria adoçado ontem?
Dia 8
A minha mente está confusa. Após desligar o alarme desço a escada, mais devagar do que o habitual, a minha cabeça dói mais hoje do que nos dias anteriores. Antes de descer o último degrau, eu o vejo, ele parece perceber a minha presença e se vira, mas antes que o olhar dele possa encontrar o meu, eu apenas abaixo a cabeça e caminho até a sua direção, a xícara já está lá, pronta para mim.
Quando a noite chega, encaminho-me automaticamente para o sofá, espero a pipoca e suco. Ontem eu o vi colocar o mesmo pó no suco que aparentemente já estava doce, mas pode ser a minha mente enganando o meu paladar. Eu não tenho escolha a não ser beber o suco e comer a pipoca, enquanto assistimos ao filme. Tento agir normalmente, mas eu já decidi o que irei fazer.
Dia 9
Horas antes de o alarme tocar, eu já estou acordada. Na verdade, eu não dormi a noite toda, permaneci com os meus olhos fechados para quando ele entrasse no quarto não desconfiasse do fato de eu não ter engolido as pílulas. Mas o curioso é que ele nunca entrou no quarto.
Saio do quarto silenciosamente, mas ao invés de descer, eu me dirijo até o quarto de hóspede, o único além do nosso com uma cama. Mas nada parece fora do lugar. O que eu sei é que na noite passada ele não dormiu no nosso quarto.
Decido ir para a cozinha. Ele. A xícara. O café. Sento na cadeira alta da bancada, ele desliza a xícara até a minha mão, não tenho o que fazer, ele permanece lá, bebo o líquido preto e subo novamente até o meu quarto, corro até o banheiro e me forço a vomitar o que bebi, até não restar mais nada no meu estômago.
Dia 10
Hoje é um dos raros dias que eu fico sozinha por algumas horas antes de ele retornar do trabalho. Não tomo mais as pílulas, assim como o café, elas descem toda a noite pela descarga do vaso sanitário.
O almoço já foi deixado pronto. Uma porção apenas para mim. Coloco tudo dentro de um pote e caminho até a rua, o gramado seco da casa 22 é perfeito, ninguém vive lá há anos, então não irão notar o que irei fazer. Com toda a vizinhança em casa, ninguém irá olhar nada.
Cavo um buraco não muito grande e jogo toda a comida lá, volto correndo para casa, como qualquer coisa que ele não tenha feito e começo a procurar nos armários por pílulas, pó, algo que seja fora do comum ou estranho o suficiente para me fazer dormir e esquecer de coisas que já aconteceram.
Dia 11
Bebo a xícara de café, mas dessa vez não irei colocar tudo para fora, apesar do sabor incomum e novo que a bebida adquiriu. Logo depois o almoço é colocado também no balcão, comemos em silêncio como costumeiramente fazemos. Mais salgado que antes. Ele pega o garfo e esperta no pedaço de carne enquanto corta com a faca a carne mal passada que jorra sangue, o meu estômago embrulha, mas me forço a continuar normal. Enquanto ele come normalmente, eu sinto que o meu prato está muito salgado. Como eu suspeitei.
Enquanto escurece lá fora, o filme já está rodando, a bebida de hoje é refrigerante, borbulha e está mais doce do que deveria ser, na pipoca não há alteração alguma. Na hora de dormir, jogo as pílulas fora, pois essas não contêm capsulas, logo não posso substituir a substância que elas contêm, assim como eu fiz ontem com todas as pílulas que eu encontrei em diferentes lugares da casa, até mesmo na garagem.
Apesar de o estoque parecer infinito, uma hora elas acabarão e ele terá que comprar novas e talvez seja tarde demais para trocar as substâncias novamente. Por isso guardei todo o pó que consegui dos comprimidos que eu encontrei e preciso fazer com que seja a última vez que isso aconteça.
Dia 13
A minha cabeça dói ainda, mas menos que nos dias anteriores. A casa parece menos tranquila ou amena que antes, as paredes brancas que emanavam serenidade agora parecem sufocantes. Desço a escada, ele está na cozinha como sempre. Bebo o café, a comida está sendo preparada com maestria. Ele a coloca nos pratos. Um para mim e outro para ele. Tudo perfeito até a televisão ligar sozinha, como programei ontem enquanto ele estava preparando a pipoca. Ele se levanta da cadeira, um pouco confuso, vai até à sala, tempo o suficiente de eu colocar a mistura de substâncias no prato e bebida dele.
O tempo parece passar lentamente quando algo que você nunca imaginou acontece na sua frente. Ele levanta, leva os pratos para a pia, mas antes de ligar a torneira, um grunhido estranho sai da sua boca, mas o que me assusta é o sangue. Ele se vira e vejo os olhos deles, implorando por ajuda ou apenas me analisando. O mesmo tenta caminhar na minha direção, mas a bancada o impede e em alguns minutos ele cai.
A figura inerte deitada na poça de sangue a minha frente com os olhos abertos me assusta, não porque eu o vejo ali, mas sim porque quando fecho os meus olhos e o abro novamente é a minha imagem que vejo sobre o ladrilho branco da cozinha.