Cartas do Vovô Pedro (Em Andamento)
Holzwarth
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Tipo: Romance ou Novela
Postado: 30/05/21 17:10
Editado: 19/05/22 11:37
Qtd. de Capítulos: 7
Cap. Postado: 10/06/21 16:31
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 11min a 14min
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Não recomendado para menores de dezoito anos
Cartas do Vovô Pedro
Capítulo 3 Barra do Piraí, 30 de maio de 2009

Barra do Piraí, 30 de maio de 2009

Querida Beatriz,

Que bom que achou as fotos! Sim, é exatamente como eu me lembrava! Se você pudesse ver, acho que iria gostar. A fachada era bonita, de pedregulho de rio e o gramado aonde a gente jogava bola era bem grande, bem extenso, cercado por árvores e com o Rio Paraíba correndo no fundo, bem longe. Eu me lembro muito bem. Quando fazia sol, as irmãs deixavam a gente sair e trepar nas árvores, correr pela grama e jogar amarelinha. Hoje em dia, lá deve ser tudo cidade.

Passei muito bem esses dias, mas ando um pouco tonto, especialmente quando me levanto da cama, depois da sesta. Deve ser a idade… Não comentei com ninguém sobre isso, porque não quero tomar mais remédios do que normalmente tomo. Acho que vai fazer mal para o estômago, então isso fica entre nós. Não deve ser nada grave, então nem comece a se preocupar!

Uma pena que Fátima não queira me ver. Entendo que ela precisa se dedicar ao trabalho, mas saudade é algo que quando aperta o coração, não tem o que resolva a não ser um abraço. Bom que tenho você para conversar, Bia, nem que seja por meio de correspondência, como fazíamos lá atrás. Aliás, conhece um moço chamado Camilo? Ele veio até aqui no asilo perguntando por mim, mas eu estava dormindo, e ele não quis esperar e acabou indo embora. O que será que ele queria comigo? Não estou devendo nada no banco, e sequer tenho posses! De qualquer forma, irei falar com ele quando vier novamente (se vier, é claro), porque não sou inadimplente.

Ah, é claro que existem mais memórias guardadas na minha cabeça, aqui comigo. Posso ser velho, mas digo e repito: minha memória está intacta, e minha mente, mais ainda! Acho que já contei a você e ao Guiga sobre esse evento, mas vocês eram muito pequenos. De qualquer forma, irei contar novamente. Deve ser dessa história cabulosa que você me diz se lembrar.

Aconteceu alguns meses depois do falecimento do Jorge, em uma tarde clara e fria de inverno. Na fazenda, não fazia muito calor, ainda mais no inverno. As árvores em volta faziam bastante sombra e o vento vinha sempre da mata, então o orfanato era sempre fresco. Estávamos todos do lado de dentro, porque apesar de estar sol lá fora, estava muito frio e a brincadeira estava acontecendo lá dentro.

Eu, meus amigos e mais alguns meninos estávamos brincando de pique-esconde, fazendo silêncio para que nenhuma irmã pudesse desconfiar, já que era proibido brincar de correr e de se esconder do lado de dentro. Valia no casarão inteiro, e quem fosse achado por último podia bater o pique e salvar todos, para que o que procurava fosse procurar todo mundo outra vez. Se fosse batido, então o primeiro que foi achado iria contar, e assim sucessivamente. Eu era muito bom nessa brincadeira, porque era magro e cabia nos locais mais estreitos e difíceis de se enfiar, aonde ninguém procurava.

Era Cora quem estava contando, e eu fui correndo me esconder no andar de cima. O Santa Edwiges era um casarão grande, tinha quatro andares, sendo o último onde ficavam os quartos das freiras, onde nós não podíamos ir. No entanto, no pique-esconde, valia se esconder lá, e era para lá que eu estava indo. Me escondi e fiquei, fiquei, fiquei. Escutei todo mundo ser achado, e estava na hora de fazer a Cora contar mais uma vez. Desci de lá, tão sorrateiro quanto subi, e fui para o pique. A disputa foi acirrada, éramos os dois muito rápidos, corremos, velozes, até o pique. Foi uma corrida como a dos atletas das Olimpíadas, com plateia e tudo! Ninguém torceu muito alto, porque, como eu disse, tínhamos que fazer o máximo de silêncio possível para que nossa brincadeira não terminasse ali, com todo mundo ganhando castigo. Foi por muito pouco, mas Cora acabou chegando primeiro, e seria a vez do que foi encontrado primeiro de contar. Ou era o que eu pensava, porque faltava um menino chamado José Augusto ser achado.

Eu não sabia aonde ele podia ter se escondido, e fiquei junto dos outros meninos, perto do sofá da sala de estar, de estofado castanho e aveludado, com três lugares e várias almofadas também de veludo que o enfeitavam. A sala estava vazia, por isso podíamos ficar lá. Eu e os meninos que tinham sido achados estávamos esperando a Cora procurar o José Augusto em cada canto que ela podia pensar. Dentro dos armários, atrás da cristaleira, debaixo das mesas e debaixo da escada. Não havia sinal daquele menino. Nós ficamos quietos, mas ansiosos: era proibido avisar que ele devia bater o pique para salvar todos. Ele tinha de ser esperto e perceber que poderia (e deveria!) nos salvar. Mas isso não aconteceu.

Cora procurou por mais de uma hora, e eu comecei a ficar irritado. Sugeri, torcendo e não torcendo ao mesmo tempo, para que ela procurasse no dormitório das freiras, no quarto andar, na esperança de ouvir passos apressados descendo as escadas e de sentir a emoção de uma corrida até o pique. Os meninos queriam começar de novo, sem o José Augusto, mas a Cora insistia que iria encontrá-lo. Naquele ponto, ninguém estava mais querendo continuar a brincadeira com o José Augusto, havia perdido a graça. Vimos Cora ir de um lado a outro, vasculhando tudo que era canto do casarão, subindo as escadas até o quarto andar e descer, sem nada. Ele não estava em lugar nenhum.

Cora se sentou no sofá e perguntou o que nós achávamos de entregá-lo. Eu e João Pintor trocamos olhares, e Isabel disse que o problema era que ninguém sabia aonde o José Augusto tinha se escondido. Até que um menino que nós chamávamos de Mané disse ter visto o José subir as escadas para o terceiro andar e virar no corredor aonde ficava uma série de quartos trancados. Cora disse, sem medo de estar com medo, que não iria lá sozinha, de jeito nenhum, e que lá era o lugar onde ela não tinha procurado ainda. Juntos, todos nós fomos até o terceiro andar, chamando, aos sussurros, pelo nome de José Augusto.

Lembro que o terceiro andar era pouco visitado, quase ninguém ia até lá a não ser para falar com Irmã Odete, que também era enfermeira. Ela cuidava de cerca de meia dúzia de quartos, todos destinados para quando estivéssemos doentes. Eu raramente adoecia e nunca cheguei a dormir por lá, mas Isabel havia me dito que os quartos eram todos ligados, sem paredes para separá-los, exatamente como um hospital de verdade. Conforme subíamos as escadas, Isabel nos dizia que o corredor em que Mané havia visto José Augusto entrar era muito escuro e que ele só podia estar no banheiro.

Estranhei por um momento. Em todo o tempo que passei no Santa Edwiges, nunca soube da existência de um banheiro no terceiro andar, num corredor repleto de quartos trancados, de acesso proibido. No entanto, fiquei quieto, e chegamos ao tal corredor. Estava escuro, com as luzes apagadas, e as muitas portas trancadas, uma ao lado da outra, eram exatamente como os quartos das freiras no andar de cima. João tentou acender o interruptor, mas a lâmpada estava queimada. Tivemos que seguir no escuro, e conforme nos aproximávamos da porta do banheiro (uma porta alta e dupla, de madeira), ouvíamos um som de água corrente.

Chamamos pelo nome de José, um de cada vez, dizendo que ele havia ganhado a brincadeira e que poderia sair. Ninguém respondia. Cora bateu na porta, Mané, João e Isabel também, mas não tivemos resposta. Quem tomou uma atitude fui eu, que abri a porta e entrei, de uma vez só.

A luz estava acesa. José estava agachado no chão, no fundo do banheiro, completamente nu. As roupas dele estavam espalhadas, e as torneiras das pias, ligadas. Os ralos estavam bloqueados; a água escorria pelo granito e molhava o chão liso. Eu o vi de frente para a parede, mas quando o chamei pelo nome, ele não me respondeu. Fiquei confuso e dei mais um passo dentro do banheiro. Ouvi João me chamar, do lado de fora, e num instante veio atrás de mim. Assim que entrou no banheiro, me pegou pelo braço e quis me arrastar para fora. Só percebi o que tinha ali quando olhei para cima, para a parede que o José estava olhando.

João conseguiu me puxar para fora, mas eu vi. Era como um coração exposto, batendo dentro da parede, vermelho como uma romã, grande como o coração de um boi. Estava afundado no azulejo português, como se fosse parte daquela parede do banheiro. Em volta dele, enfiados nas rachaduras fundas dos azulejos, havia braços compridos e delgados como os tentáculos de um polvo, pulsando conforme o coração pulsava…

Eu saí do banheiro, arrastado pelo João Pintor, e ouvi os passos de Madre Cláudia chegando até nós. Ela, sozinha, entrou no banheiro e fechou a porta, sem dizer nada. Os meninos estavam eufóricos e curiosos, enchendo-nos de perguntas e mais perguntas. Eu estava me sentindo tonto. Fora acometido por uma forte vertigem e com certeza estava branco como papel. Foi o medo. O medo me tirou o ar. João falou por nós dois, falou do coração e dos tentáculos de polvo, gritando fino a cada palavra, apavorado.

Sei que Madre Cláudia abriu a porta logo em seguida e mandou que Sofia chamasse o padre, mandasse um telefonema urgente para ele. Ela nos enxotou de lá muito depressa, e eu fui para o dormitório. Não jantei no dia, tampouco dormi. No dia seguinte, eu e o Clube nos reunimos atrás do orfanato para conversar sobre o José, e pela primeira vez, ao lembrar de algo, senti medo.

O menino desapareceu depois que o padre chegou no Santa Edwiges, algumas horas depois do telefonema de Sofia. Não sei para onde levaram ele ou qual o destino dele, sei que o banheiro, a partir daquele dia, passou a ficar trancado com chave e teve a porta lacrada com um par de tábuas. Depois, Madre Cláudia disse a mim e a João que aquilo tinha sido um pesadelo, porque comemos muito arroz-doce no dia anterior. Eu gostaria que tivesse sido.

Deve ser essa história que você diz se lembrar, Bia, aquela do banheiro. Posso assegurar a você: sim, já contei-a uma vez antes, mas, como disse anteriormente, você e o Guiga eram muito pequenos. Pelo o que eu me lembro, gostavam bastante de escutar as histórias do Clube, e é muito bom poder contá-las novamente a você. Poderia dar um abraço no Guiga por mim? Diga que o Vô está com saudades!

Abraços carinhosos,

Vovô Pedro

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