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Havia uma garrafa de vidro quebrada ao lado de uma cadeira de plástico, perto do bar, na qual havia um homem adormecido. Esse homem tinha as mãos sujas de tinta azul, e de seu cabelo desarrumado pingava tinta vermelha. Seus olhos estavam fechados, mas por trás daquelas pálpebras repousavam os globos óculares com as irises mais belas e inocentes daquela cidade.
Na frente da cadeira havia uma confusão de pedaços de madeira que antes formavam uma mesa, e dezenas de cacos de vidro encharcados de cerveja. Pequenas gotas de sangue eram visíveis pela calçada, as manchas maiores foram lavadas pela bebida que continuava escorrendo ao longo da rua.
O homem franziu os lábios, sentindo dor na maior parte do corpo. A cabeça pendia contra o encosto desconfortável, e os fios louros manchados estavam endurecidos com o sangue, incomodando-o. Os cílios tremeram devagar, acostumando-se com a consciência que lhe vinha vagarosa.
Ele abriu os olhos.
A sua frente havia uma criança.
Ela tinha asas de borboleta.
O homem, versado em cultura, contemplou-a como uma deusa, a forma infantil de Isis, Maria ou Íris, o centro da Teoria do Caos, como a personificação da delicadeza, fragilidade, feminilidade, pureza.
A criança não tinha pupila, seus olhos eram negros assim como os do inseto o qual se parecia. Suas asas translúcidas e iridescentes balançavam suavemente com a brisa noturna, esplendidamente harmônica. Ela tinha um cabelo curto e o rosto andrógeno, vestia uma túnica cor de creme e calças justas igualmente claras. Os pés descalços eram cobertos de pelos marrons, úmidos por estarem pisando na calçada encharcada.
Sem compreender o que acontecia, o homem tentou definir como deveria se prostrar diante daquela figura. Ela o encarava inquisidora, curiosa e ameaçadora. Ao abrir a boca pequena, seus dentes uniformes se moveram, o que desconcertou aquele que a observava.
- Você encontra sua inspiração na miséria, escritor. – Disse com voz madura. O homem não acreditou no que escutara, então decidiu ignorar o tom que não condizia com a aparência daquela criatura e focou no título que a mesma o dera.
- Não sou escritor, pequena dama, sou um galanteador sem sorte. – “Ou vergonha”, pensou em completar, mas não queria soar ambíguo.
- É um azarado com gosto por números. – Se números significassem “dinheiro” naquele contexto, o pseudo-escritor discutiria sem hesitação, mesmo que fosse com uma criança. Sua mente dissipava a névoa da embriaguez e dor lentamente; no entanto, não era o bastante para ele se considerar “louco”.
- Tenho origem humilde, minha criança, não fale do que desconhece. – A pequena meneou a cabeça, balançando para a frente e para trás como se o homem continuasse falando.
- Vejo seu passado, eu sou seu passado. – Naquele momento, o adulto não sabia dizer se estava alucinado, o olhar profundo da borboleta antropomorfa o capturava. – Desde pequeno brinca com o fogo, gosta da sensação das chamas tomando dos outros seus bens preciosos, assim como tirou de si mesmo o que mais amava em prol de algo pelo qual escrever.
- Não fale do que desconhece. - Balbuciou o homem. Lembranças arrebatavam-no, ele queria levantar da cadeira e voltar para o conforto de um isqueiro e copos de cachaça para esquentar o corpo e perder a mente.
- Não entende como queimou a própria vida. – Aquela criança parecia cada vez menos humana a cada palavra pronunciada.
- Você não sabe de nada, jovenzinha! – Logo o homem se pulou do assento, ainda cambaleante e com a visão turva do movimento súbito. Cada passo que dava para longe da bagunça de madeira quebrada e vidros estilhaçados era cheio de força e inquietação.
O homem não soube exatamente como, mas sem aviso, se viu cercado por chamas fantasmagóricas que se espalhavam pela bebida alcóolica derramada no calçamento. Ele gritou, pois, não havia saída daquele círculo de fogo.
- Você não pode negar o passado, aceite-o em vez disso. – A criatura flutuava acima das labaredas, o laranja vívido era refletido em seus olhos sem emoção. – É um escritor que não valoriza sua história, inventa uma vida para fingir se adequar a quem odeia. – Seu tom de chacota incitava o adulto a se encolher e chorar, ao mesmo tempo que frustrava suas tentativas de terminar aquele pesadelo consciente.
- Falso! Falso! Falso! Quantas vidas já tomou para construir a sua própria? Quanto amor você já destruiu para se sentir melhor por não ter sido amado?
A borboleta disfarçada de criança só se aquietou ao ver homem cair de joelhos no chão, a culpa inundando-o assim como as chamas que queimavam sua pele, sem realmente doer.
- Farei qualquer coisa, eu juro, desde que me livre desse tormento.
- Aceite o passado, escritor, ele não será mudado ou ignorado.
O homem se levantou e fitou com horror aquela criatura que o atormentara. Qualquer vestígio do endeusamento anterior se fora, e agora estava cada a cara com os traumas de infância. E ele disse:
- Dê-me um pedido de desculpas e o reconhecimento que mereço.
Com isso se dissolveu em cinzas como os das mariposas que o escritor costumava aprisionar quando criança.
Este acordou no tapete puído de seu apartamento, resquícios de lembranças iam e vinham e ele não saberia dizer o que era real. Sem querer abusar da sorte, levantou-se, estalando os ossos, e se acomodou na escrivaninha velha que o acompanhava desde o início de sua fracassada carreira.
À luz de uma lamparina e perto de garrafas vazias, pôs seu coração de tinta nos papéis amarelos. As últimas palavras do escritor foram seu pedido de desculpas a um devaneio que lhe custara a vida.
E assim disse ele:
“Você, querida infância,
É o que pedimos para voltar
Com mala e tudo que tiver
Sem receios, sem rancor
Me desculpa se fui mau
É que esse é meu jeito
De lidar com algumas coisas”