Era quase fim de tarde e o céu antes azul acinzentado agora adquirira um tom vermelho que aos poucos ia se esvaindo para tornar-se apenas breu.
Admito que fiquei perdida com esta confusão de cores, árvores e terreno escorregadio, não havia neve na floresta, mas tudo estava úmido e o cheiro amadeirado ficava cada vez mais forte.
Minha cabeça de dez anos de idade, sabia que tinha ido muito além da minha rua.
Entre toda a distração visual de cores e segredos naturais, uma parte da minha consciência estava tentando me fazer voltar pra casa, mas outra grande parte dela, estava muito entretida para ter pressa…
Então eu só pude concordar.
Me recordo do barulho dos meus sapatos novinhos esguichando lama nas pedras e arbustos, eles faziam um barulho tão engraçado que não pude evitar de gargalhar sozinha e começar a correr para fazer ainda mais sujeira.
Foi quando minha testa bateu em algo que não era uma árvore e todos os sentimentos divertidos se tornaram apenas um grande susto.
Eu gritei a princípio, e depois encarei aquilo…
Eu só não tinha ideia de que em poucos minutos, eu jamais seria a mesma. E saberia de coisas que nenhuma criança deve saber.
Aquilo disse olá, timidamente.
E por impulso… Eu corri, pois aquilo parecia um grande, enorme, esguio e gosmento rato, ao mesmo tempo em que parecia apenas uma das fantasias do desfile de Natal que todo ano ocorria no centro da cidade.
Bom, ao pensar que poderia apenas ser um dos artistas do desfile, cessei minha corrida e me virei lentamente para trás... Animada e cheia de perguntas engatilhadas na ponta da língua, como... Quais das crianças iriam ser escolhidas para andar no trenó, aquele ano?
Foi quando o rato gigante foi chegando muito rápido e muito perto.
Esqueci o que ia perguntar... Então ele falou comigo, tinha uma voz grave e sedosa.
Riu baixinho e disse que eu era uma criança que se assustava fácil, mas que eu era corajosa de ter ficado.
Já eu, estava paralisada e fascinada. Não pude responder nada.
Apenas acompanhar os acontecimentos...
Ele começou a dançar entre as árvores, rodopiando, era bem hipnotizante e me chamava com as mãos para acompanhá-lo.
Balancei a cabeça negativamente… Estava ficando bem escuro, eu tinha de ir para casa...
Então...
Ele estalou os dedos esguios e disse que tinha algo que ia me animar e que eu nunca iria esquecer...Num piscar de olhos, a figura gigante e orelhuda tirou de seu bolso um objeto que eu nunca vi antes e nem consegui ver de verdade naquele momento, por causa da escuridão.
Era o presente. Mas não deveria ser.
Só fui saber tarde demais...
A neblina começou a subir da lama, como fantasmas tímidos e o frio começou a estremecer meu corpo miúdo… Todos já deveriam estar em casa me esperando para irmos ao desfile, como em todo ano...
Ele colocou o presente em minhas mãos, a textura era tão estranha, mole e grudenta que larguei-o imediatamente, limpei as mãos no vestido novo, espero que não manche, minha mãe me mataria.
Eu disse que precisava ir e fechei a cara, por fim dei de costas para começar a correr de novo.
Foi então que o rato, o presente sombrio, os fantasmas, a fantasia de Natal, as árvores, o céu e a neblina arrepiante - todos juntos - entraram dentro de mim.
Queimaram minhas pernas, queimaram meu peito, meu rosto, meus braços, minha boca e tudo que sou. Fiquei em carne viva.
Mais tarde me olhei no espelho quando cheguei em casa, eu era a imagem cuspida de um pequeno demônio vermelho, sem mais olhos, sem mais voz, sem mais eu.
Enquanto eu queimei em três camadas do inferno, o rato não disse uma só palavra, apenas me compenetrou com seus olhos falsos e pintados de tinta preta.
Ficou escuro como nunca antes esteve, então e quando voltei a enxergar, a floresta já havia parado de fritar, no entanto eu ainda me sentia dentro de um fogo fátuo, impossível de ser consumido.
Também não sei em qual ponto do incêndio minhas roupas desapareceram, naquele instante, pensei qje haviam simplesmente queimado, era lógico... Talvez eu possa ter desmaiado... Só que agora, não conseguia achá-las de nenhuma maneira!
Enquanto eu tateava o chão lamaçento, em prantos e com medo, o rato foi embora com sua grande fantasia e seu grande rosto feito de máscara de papel machê que aos poucos derretia.
Eu o assisti desaparecer com os fantasmas, deixando para trás um silêncio eterno e sangrento, que eu sentia que não poderia falar para ninguém, como uma maldição.
Mas ao menos, o rato havia ido embora fisicamente, e com ele, muito mais se foi...
Tanto que nunca consegui recuperar as partes queimadas da minha alma, elas devem estar por aí...
O problema, é que sei que ele ainda está aqui, eu sinto. Está por toda parte, por mais que ninguém o possa ver.
Apesar do desespero de ter queimado viva por tantos minutos e depois tudo parecer apenas uma visão assombrosa, por não haver mais pistas do incêndio e nem da aparição, consegui achar meu vestido que estava encardido atrás de uma árvore, o vesti molhado e apenas caminhei poucos passos, até avistar o muro de casa.
A casa estava cheia de luzes, a árvore lá dentro era enorme e colorida, me distraí enquanto a olhava até avistar meus pais na porta com suas expressões que me diziam que eu estava encrencada.
Neste momento, eu também soube que incêndios bem piores estariam por vir, logo que, algo a partir desta noite, nunca mais cessou de me fazer queimar por dentro, passou a nunca parar de doer, eu apenas nunca soube explicar o quê, como, por quê…
Levei uns tabefes por ter demorado tanto a ir recolher lenha para voltar de mãos vazias… Eu nem me lembrava mais a razão de ter ido em um lugar tão demoníaco... Que na próxima vez, a lenha tratasse de se recolher sozinha, ao contrário de mim, ela foi feita para queimar!
Mas nada disso importava mais.
Fiquei sem sobremesa pelo vestido novo estar arruinado e durante toda a noite, tive de ouvir como minha prima Maria, era muito mais comportada, esperta e agradável.
Será que a Maria já sobreviveu a um incêndio como eu? Essa questão ainda me assombra, às vezes.
Me perguntei mais tarde, reparando nos traços da tragédia que agora estava estruturada em minha pele, se é que eu ainda tinha um corpo depois do que houve...
Me perguntei se eu deveria contar sobre o rato, demônio, Papai Noel estranho, ou seja lá o que fosse - para alguém, mas todos estavam tão preocupados com o Natal, que não perceberam que eu não estava bem, ou talvez, ninguém de fato se importasse.
Me pergunto até hoje se deveria estar relatando para eu mesma, dentro da minha cabeça… Repercutindo estas cenas de novo, de novo e de novo até enlouquecer.
Depois daquele Natal, há doze anos atrás, nunca mais me senti digna de ganhar presentes, talvez eu tenha me esforçado muito para nunca mais permitir que me dessem algo inesperado e tão assustador.
Passei a fugir de todas as apresentações natalinas, nunca mais juntei lenha, nem pinhas e nem amoras silvestres. Passei doze noites de Natal perseguindo ratos pela vizinhança e os exterminando, para que não tivessem chance de se tornarem gigantes e machucar mais alguém.
Algum dia, eu juro, terei coragem de adentrar a floresta novamente, mas desta vez estarei armada até os dentes, para que se por infortúnio o rato aparecer em minha frente, eu poder rasgá-lo e destruí-lo completamente.
Assim como ele fez comigo, da última vez que ganhei um presente.