As telas um dia foram seu refúgio. Pouco importavam os barulhos da TV alta do vizinho, dos carros apressados na Avenida e dos trens que passavam tão próximos do pequeno apartamento que o prédio tremia um pouco. As pressões, as opressões e as oposições diárias de tudo e todos em sua volta sumiam; Yuna mergulhava para dentro do linho e era rodeada por todas as cores de tintas, todas as espécies de formas e por todos os traços que um dia já havia feito. Ali, tornava-se seu espaço particular, um reino secreto onde não poderia ser encontrada e não poderia ser abalada.
Traço vem, traço vai ela conseguiu boas telas e boas pessoas nelas interessadas. Tela vem, tela vai, conseguiu interesse de repórteres e deu entrevistas que adorava assistir, pois a faziam se sentir especial. Entrevista vem, entrevista vai, conseguiu o interesse de lugares onde poderia expor suas obras ao mundo. Exposição vem, exposição vai, ela conseguiu perder o interesse.
Holofotes a iluminavam sempre que pisava naqueles corredores cheios de quadros que não poderia apreciar, manchetes animadas e matérias de exaltação eram escritas a cada quadro que ela apresentava ao mundo, línguas que falavam todas as línguas do mundo a elogiavam, mas ela não sentia mais nada. Nenhuma pincelada a fazia voltar para seu refúgio, pois ela estava presa lá fora.
Quem sabe isso tenha sido resultado da briga com o linho, ou de quando arremessou as tintas na parede. Pode ser que as formas tenham ficado chateadas quando resolveu muda-las, ou que os traços, já muito diferentes, não a reconhecessem e não a deixassem entrar mais em seu reino. Yuna tornou-se uma rainha destronada, destituída por si mesma. Havia pintado sabe-se lá o que em cima de sua coroa de tinta, pois nem se lembrava mais do que pintava ou deixava de pintar.
Quando pisava em galerias, não reconhecia seus quadros, soltando um ou outro elogio para quem pintou que viravam piada nas matérias, como se Yuna estivesse brincando. Não brincava, e já era a terceira ou quinta vez que acontecia.
Desolada e sem abrigo, implorava que abrissem as portas do linho e a levassem de volta a seu reino, pois as terras onde estava lhe dava arrepios. Talvez o linho tenha entendido errado, pois quando voltou a mergulhar nele, encontrou-se num abismo com todas as coisas horrendas que pintara. Correu e correu, mas não conseguiu sair até que jogasse a tela, preenchida por figuras temíveis, ao chão.
Quando tomou coragem novamente, mergulhou na tela em branco, mas encontrou-se afogando-se em um mar de vazio. O vazio encheu seus pulmões e, depois de seu último suspiro, caiu ao chão em lágrimas.
Desde então tem sido assim, um pesadelo atrás do outro todas as vezes que tomava um pincel nas mãos. Os elementos que antes a saudavam, agora a perseguiam, o gozo havia virado temor; o refúgio havia virado exílio.
Não sabia por que continuava, mas desta vez tentou reconectar-se com suas origens. Rabisco de grafite aqui e ali e logo o rascunho de pôr do sol estava pronto para as tintas, mas Yuna não. Desta vez, encontrou-se presa num labirinto em que corria e corria, mas não sabia se tinha saída. Não terminado, interminável. E, quando encurralou-se, voltou a fugir.
O pôr do sol não terminado, interminável, encarava-a sem olhos da tela. Então, antes do pôr do sol, resolveu-se pôr-se na cama.
Um dramin para o estômago que revirava, um travesseiro para a cabeça pesada. A tinta que a água não lavara continuava a manchar os dedos, mas logo sairia. As telas, os seus pesadelos mais pesados, amanhã estariam na caçamba de lixo mais próxima, e à manhã Yuna não teria mais de encarar aquela Yuna que havia se tornado. De certa, não voltaria a ser sua antiga eu, mas não encararia mais uma estranha que lhe dava arrepios no espelho e, sobretudo, nas telas. Aliás, desde que nunca mais encarasse uma tela, estaria tudo bem.
Quando o pôr do sol que nunca chegou ao quadro chegou ao céu, Yuna já sonhava com quebrar pincéis e assim quebrou-se junto, com tudo que já estava quebrado. Nem uma pincelada a mais, nem a menos, pois tudo que era interminável havia terminado agora.