Era para ser uma mais uma noite rotineira emTyrian, um povoado discreto a cerca de um dia de viagem à cavalo, seguindo pelo sul do reino de Nolkeb. O local era uma aglomerado de casebres quadrados feitos de madeira e sapé, bem como alguns estabelecimentos tais como uma fazenda que gerava boa parte da renda do lugar graças aos rebanhos de ovelhas, uma ferraria e uma modesta igreja dedicada a Vitæ, o Regente da Vida, dentre uns poucos outros. Cercada pela mata fechada e pelo Rio dos Sonhos, não seria uma região muito visitada ou mesmo conhecida se não fossem o seu mini-porto, parada obrigatória para quem quisesse navegar em segurança por aquelas águas traiçoeiras em uma embarcação decente e pela sua arena na Taverna do Miltão.
O imóvel era até grande para os padrões das terras onde se encontrava, também feito em madeira só que utilizando toras de árvore em posição vertical ao invés das costumeiras tábuas estreitas das demais construções. Outro diferencial era o fato de fazer parte da simplória estalagem, tendo sido construída bem ao lado da mesma. O lugar fedia a suor, álcool, carne assada e pão; vivia cheio de gente comendo, bebendo, cantando e fazendo apostas, pois no centro do recinto havia sido feito uma espécie de palco amadeirado redondo, medindo quatro metros e meio de diâmetro e circundado por grades compostas por linhas metálicas entrelaçadas. A clientela fica em volta também, degustando seus pedidos enquanto apreciava os valentões de plantão se degladiando por algumas moedas.
Naquela área em questão, duelos no melhor estilo mano-a-mano eram permitidos e até mesmo encorajados, pois significavam dinheiro aos apostadores. As regras eram bem simples: sem armas ou armaduras, sem golpes baixos e sem mortes. As lutas vencidas por nocaute ou desistência e as apostas era feitas com uma taxa mínima de três moedas de prata, sendo que no final da luta o taverneiro ficava com um terço de valor arrecadado e restante distribuído entre os apostadores e o vencedor.
A rotina foi rechaçada de modo impressionante quando um forasteiro cruzou a porta da taverna e declarou em alto e bom som que iria pagar o triplo do que fosse apostado para quem conseguisse derrubá-lo em uma briga limpa e justa. O misterioso visitante era novo, com não mais que vinte primaveras de idade. Tinha feições bonitas e tranquilas, sendo detentor de cabelos curtos e avermelhados. Seus olhos verdes eram bem chamativos, assim como o corpo atlético que revelou possuir ao remover sua cota de malha cinzenta e deixar tanto ela e sua espada embainhada aos cuidados do taverneiro antes de se dirigir para a zona de combate.
Ele começou a dar breves saltos parado aonde estava para movimentar e aquecer seu corpo quando o primeiro oponente, um homem gordo, grande e sujo, aceitou o desafio. Era hora de se divertir!
— Ei, grandalhão! Meu nome é Logan! — revelou de modo corriqueiro enquanto fechava os punhos e exibia um sorriso de plena confiança ao encarar o oponente. — Quantas moedas você vai dar para mim e para o tal do Miltão ali?
***
Ninguém podia acreditar: era a sexta vitória consecutiva daquele rapaz ruivo! O pobre Edgurd, assim como todos os outros, foram derrubados com uma facilidade tal que os clientes começaram a crer que o jovem não fosse um ser humano! Como um homem tão novo podia ser tão forte, tão hábil, tão... Imbatível?
— Ei, pessoal! Pessoal! — exclamou Logan, arremessando o corpo desmaiado do oponente acima das grades como se fosse um brinquedo quebrado. — Será que tem alguém aqui nessa taverna... Não, nesse vilarejo que pode me mostrar o que é a derrota?
Um burburinho irritado e ao mesmo tempo assustado percorreu a taverna. Após alguns instantes, uma gargalhada insidiosa se fez presente advinda da entrada do imóvel. Um segundo forasteiro, desta vez um rapaz de cabelos pretos, olhar feroz e sorriso destemido abria caminho apressadamente entre as pessoas, seu físico um tanto robusto para a idade sendo exibido enquanto removia seu corselete preto e nada menos que cinco armas brancas diferentes, deixando-as cair ruidosamente conforme seguia rumo à arena. Todos imediatamente reconheceram tal peculiaridade como o símbolo de que estavam perante de um Filho da Peleja, uma das Trilhas Sacras mais temidas e poderosas de todo o continente.
— Logan, Logan... — disse o imponente novo desafiante com um tom de voz quase amistoso. — Não sabe o quanto ficarei satisfeito em atender o seu pedido, aspirante a Tribuno!
Uma nova e acalorada onda de espanto tomou conta de todos os frequentadores da Taverna: então aquele rapaz tão jovem era um candidato a membro dos Tribunos, que compunham a Trilha Sacra com mais prestígio e influência de todas, conhecida pelo seus valores e princípios elevados e disposição absoluta em combater injustiças e ameaças malignas... Além da rivalidade atemporal com os Filhos da Peleja! Aquilo seria muito mais do que uma simples briga: era um desafio de supremacia!
— Há! Se foi para eu rir, vai ter que melhorar a piada, meu caro Darks! — desdenhou o ruivo, sentindo finalmente o sangue ferver com a inusitada aparição do impensável "aliado".
— VAMOS VER SE VOCÊ CONSEGUE SORRIR SEM SEUS DENTES ENTÃO, RUIVO! — vociferou o recém-chegado à plenos pulmões ao empreender uma brutal arremetida em direção ao detestável rapaz diante dele, arrebentando o gradil como se o metal fosse na verdade madeira podre.
"Finalmente!"
O pensamento do pré-Tribuno e o do sacerdote bélico ironicamente foram idênticos, tanto em palavras quanto em furor. Afinal, fazia algum tempo que Darks queria esmurrar aquele seu aliado para arrancar-lhe o sorriso convencido e irritante do rosto. Por sua vez, Logan nutria uma certa antipatia pelas atitudes inconsequentes do seu oponente quando uma situação pendia para a batalha. Era a oportunidade perfeita de resolverem essa questão "amigavelmente".
Pressentindo o nível da ameaça que se aproximava, o rapaz de cabelos vermelhos não perdeu tempo: após Darks invadir a singela arena arrancando as diversas hastes metálicas com um brutal encontrão, o jovem ruivo que se encontrava diante dele o recepcionou com um potente chute no ventre, afundando o quanto pôde a sola de seu pé direito ali tentando encerrar a investida do oponente. Duas coisas foram imediatamente notadas por Logan: a relativa resistência oferecida pela musculatura da região atingida e a força anormal de Darks, que prosseguia com a arrancada e armou um soco certeiro contra a detestável face de seu alvo. Entretanto, o mesmo se aproveitou do apoio ao seu dispor e se impulsionou para cima, improvisando uma joelhada para bloquear o murro que iria receber.
Sem perder tempo e ainda no ar, o jovem de olhos verdes guiou o punho direito com pujança em direção à face agressiva do Filho da Peleja, mas a trajetória do golpe foi cessada pelo antebraço do mesmo, que torceu o pulso de forma a poder apanhar o braço do atacante e, com um giro feroz de corpo, tentar arremessar o desafeto rumo ao lado intacto do gradil. Todavia, o adepto de Caminho do Meio não era tolo e imitou o gesto, prendendo-se ao adversário enquanto o restante do corpo sofria uma enorme força centrífuga até seus pés regressarem ao piso em meio a uma brusca retração por parte da vítima.
Os ruídos enervantes do atrito entre o couro de suas botas e o chão preencheram a taverna até que ele pudesse, com relativo esforço, anular o movimento forçando suas pernas no sentido contrário. A dupla se defrontou por um instante, unidos em uma vigorosa e dolorosa compressão mútua de antebraços, ato que normalmente simbolizaria uma versão caricata do cumprimento de saudação entre irmãos-de-armas. Nada podia ser mais inapropriado do que aquilo. Um intenso burburinho se iniciou entre os impressionados frequentadores da taverna, que nunca sequer imaginaram tal cena de combate em suas pacatas vidas.
— Até que você é alguma coisa, ruivo. — exclamou o jovem de cabelos escuros com uma expressão facial curiosa, seus olhos castanhos repletos de entusiasmo. — Ao menos, um pouco melhor do que os pobres coitados que pisaram aqui antes de mim. — ironizou enquanto movia o pescoço para os lados, estalando-os.
"O desgraçado é mesmo bom... Pelo Sagrado Armamento! Essa luta vai ser bem divertida!"
— E eu achando que você era o piorzinho da manada... — devolveu Logan suavizando as feições e sorrindo para ocultar o incômodo que sentia devido à pressão tenaz em seu pulso. — Apesar que não mudou muita coisa não. — sua voz soou com uma tranquilidade que não condizia com a situação e seu sorriso só aumentou ao notar tal paradoxo.
"Pelo Equilíbrio, que força é essa que esse imbecil tem?! Isso está ficando realmente emocionante!"
Naquele breve momento em que ambos se defrontavam e trocavam provocações, os clientes da taverna puderam observar melhor o sétimo desafiante de Logan, que para eles era um completo desconhecido até então. O rapaz era da mesma altura do lutador de cabelos carmesim, mas sua cabeleira era preta como piche e igualmente repicada, quase desgrenhada. Enquanto os olhos de Logan ostentavam belas e plácidas íris esverdeadas, os olhos de Darks eram de um castanho-escuro cujo brilho evidenciava a coragem e convicção que só os que seguiam a Trilha das Armas possuíam. A musculatura de seu tronco e braços era sutilmente mais robusta se comparada com a do jovem a quem desafiara, aleatoriamente marcada por algumas cicatrizes que lembravam cortes mal curados. De fato, sua presença era bem mais imponente e ameaçadora do que a de todos os demais adversários anteriores juntos. Por fim, todos silenciosamente chegaram à mesma conclusão: só o início da luta já deixara claro que ele não seria derrotado tão fácil nem tão rápido como os seus antecessores no ringue.
De súbito, Darks emitiu algo semelhante a um rosnado enquanto puxava Logan de forma bruta rumo ao seu punho em devastador movimento. Logan se deixou levar, apenas para desviar do ataque e desferir um fortíssimo soco no rosto do adversário, arrancando-lhe sangue das narinas e uma ovação coletiva dos demais. Então foi a vez de Darks se aproveitar da proximidade e efetuar uma tremenda cabeçada na face do rival, estourando-lhe os lábios e fazendo-o cambalear dois passos para trás, fazendo alguns espectadores levarem a mão à boca como se eles próprios tivessem sido golpeados.
Com um brado hostil, o Portador das Armas lançou-se contra o jovem diante de si com tal ímpeto que impossibilitou-lhe uma eventual esquiva. Os olhos verdes de Logan faíscaram de contentamento quando prensou o crânio de seu oponente em uma pancada simultânea com as mãos fechadas. O baque seco ensurdeceu momentaneamente o rapaz de cabeleira preta, assim como a dor aguda invadiu-lhe as têmporas como se sua cabeça fosse assolada por aríetes. Isso só o motivou ainda mais a agarrar a cara de seu adversário e arremeter a ambos gradil afora. O tapa foi tão forte que o alvo sentiu sua pirâmide nasal ser excessivamente pressionada junto com o entorno de sua face surpresa. O aperto era tão ou mais terrível que o do pulso na medida em que as falanges se afundavam na pele, amassando a carne de modo excruciante.
O pouco que restava da estrutura de contenção na arena se retorceu e despedaçou perante a manobra e a dupla literalmente voou pela taverna, colidindo contra uma mesa que igualmente se espatifou. Canecas de madeira cheias de cerveja barata ganharam o ar, espalhando tanto o odor alcoólico quanto seu conteúdo amargo sobre os corpos dos lutadores antes de caírem e se fenderem. Alguns clientes por pouco não foram atingidos, saltando para os lados como lebres assustadas perante uma rinha entre leões. Mais gritos de entusiasmo foram emitidos e a algazarra logo se alastrou pelo recinto.
Cheio de adrenalina nas veias, Logan tornou a esmurrar o Filho da Peleja, que por sua vez efetuou duas homéricas cotoveladas no peitoral desnudo do seu oponente, permeando-lhe os pulmões com muita dor enquanto espremia o detestável rosto dele. De repente, uma pontada lancinante afligiu de modo exagerado as costas ligeiramente musculosas de Darks: eram os joelhos do futuro Tribuno a lhe golpear com tamanha potência que literalmente o expurgaram de cima do ruivo, lançando Darks de cara contra o balcão de madeira, que afundou com o irrefreável impacto. Logan rapida e sofridamente transformou a manobra em um diminuto salto mortal de costas, visando colocar-se de pé. Virou-se apenas para ter uma cadeira brutalmente estourada em sua cabeça, o brado triunfante de Darks se misturando aos berros da platéia ao redor de ambos. Os estilhaços ainda estavam pairando no ar quando o jovem complementou o ataque com um homérico chute bem no meio da face dele, fazendo seu desafeto afundar na parede de barro, rachando-a em uma impressionante e irregular cavidade onde as costas de seu desafeto se instalaram à força.
Para a mais sincera surpresa de Darks, Logan não só permanecia consciente como ainda tinha, por puro reflexo, lhe dado uma maldita pancada acima da cintura enquanto seu ombro esmagava-lhe o peitoral, deixando um inchaço roxo e ardido como retribuição. Por outro lado, o rapaz de olhos verdes sentiu sua caixa torácica como um todo queimando devido aos impiedosos golpes que recebera. Fazia muito tempo desde a última vez em que alguém o fizera sentir algo parecido. Contudo, o que o deixara mais ressentido foi a cadeirada que levou, ao seu ver uma clara e desnecessária violação do que ele considerava até então uma briga limpa.
— Maldito seja, Darks! Você não tem honra! — acusou o seguidor do Caminho do Meio, limpando os pedaços de madeira em seus cabelos avermelhados e suados. — Você já percebeu que não consegue me derrotar só com os punhos, não é?! — seu olhar era tão intenso quanto suas palavras ao caminhar enraivecido na direção do desleal oponente.
— Me avise quando parar de choramingar. — zombou o sacerdote bélico, imune ao queixume do adversário. — Se só aquilo te derrubasse, você seria mais fraco do que já é! — enquanto falava e igualmente caminhava, ele apanhou e arrebentou outro banco na própria cabeça, como prova de que aquilo nada significava para ele.
Os poucos corajosos o suficiente para permanecer dentro do local gritavam, assoviavam e até arriscavam fazer palpites ou apostas, incapazes de perder uma luta tão acirrada e violenta. Os outros fugiram ou se esconderam, temendo pela própria segurança.
Era brutalidade demais para ser verdade... E parecia longe de acabar.