Somos impelidos um contra o outro como uma sístole. Ba-dum. Treme o coração na região central-superior da sua caixa torácica, um pouco acelerado por conta da proximidade que minha mão está da sua e dos olhares sutis que trocamos enquanto devoramos nosso jantar de fast-food. Tem ketchup no seu rosto, mas eu não digo nada, e você provavelmente também não dirá se tenho um pedaço do tomate murcho entre meus dentes.
Eu digo que somos muito novos para nos preocuparmos com faculdade, mas é só uma desculpa para esconder meu fascínio por Oceanografia e preservação de baleias. Você diria que é irônico uma pseudo-ambientalista se empanturrar de batatas industrializadas e carne de boi triturada, e assim eu seria obrigada a dizer que um futuro médico não devia consumir um produto tão cancerígeno como Coca-cola, e assim você retrucaria dizendo que meu Mountain Dew é produto químico puro, e assim desviamo-nos do assunto “faculdade” para “quem consegue dar o melhor ponto final”.
Acabará sendo você, porque nossas mãos estão muito próximas nessa mesa minúscula no canto do estabelecimento, o que faz com que eu me distraia e acabe observando-o com o tomate entre meus dentes e admiração nos olhos castanhos sem graça, enquanto ouço seu discurso sobre como uma garota tão nova não deveria carregar cigarros por aí. É incrível como conseguimos mudar tão rápido de assunto à medida que comemos gordura processada e carboidratos que obstruirão nossas veias e vilosidades intestinais.
Ninguém se importa, porém, porque meu coração está batendo forte acompanhando o ritmo do seu. O cantor de rock alternativo na caixa de som está falando algo sobre maus hábitos e estamos aqui voltando ao assunto de baleias e minha falta de preocupação ambiental para alguém tão fissurada no oceano. Veja bem, é sua culpa eu estar preocupada com minha pressão sanguínea, meus pulmões comprometidos e ainda ficar fascinada pela massa de água que cobre mais de três quartos do planeta.
Seus olhos são de um azul discreto, os quais, para quem olha rápido, parece cinza; cor que, por sua vez, é confundida com o comum castanho. O azul se mistura com o preto da sua pupila e forma um anel violeta que só é visto caso se olhe muito atentamente, a uma distância aproximada dos nossos rostos nesse momento, separados por um hambúrguer de carne e outro de peixe. A faixa da íris mais próxima da esclerótica é negra, contribuindo para escurecer a cor do seu olho como um todo, por isso tantos pensam que é cinza-acastanhado quando na verdade é azul.
Desperdicei um tempo imenso falando dos seus olhos, quando minha intenção era compará-lo com o mar na Praia do Canto de tardinha, quando o céu está lilás e laranja pálido, fazendo com que a água fique da cor exata de sua íris. Eu sou apaixonada por seus olhos, portanto, inevitavelmente apaixonada pelo mar, e essa paixão me rendeu um aumento na nota de Geografia e Biologia. Graças aos seus olhos, salvei-me de uma possível recuperação no oitavo ano, além de descobrir a magia desse animal chamado baleia.
Às vezes penso que meu espírito animal é uma baleia. Elas são exímias dançarinas aquáticas, carinhosas, tímidas e, ao mesmo, exibicionistas. Elas cantam, ressoam e usam biosonar, são animais perfeitos para se abraçar (como a minha pelúcia) ou admirar – mas não aquelas treinadas da Disney, refiro-me àquelas do mar aberto que volta e meia encalham na baía brasileira.
Agora você está rindo da minha reflexão sobre espíritos animais, e essa mancha de ketchup no canto da sua boca está começando a me incomodar tanto quanto a quantidade de maionese que colocaram no seu hambúrguer de peixe. Está nojento, parecem as vísceras, mas é claro que eu não disse em voz alta, apontei apenas para a marca vermelha no seu rosto e tentei ignorar o grupo de jovens um pouco mais velhos que nós adentrando no estabelecimento alimentício.
Eles, contudo, não nos ignoraram, então antes que decidissem encontrar motivo para apontarem os punhos enfaixados para nós, agarrei meu refrigerante e seu cotovelo para sairmos pela porta mais próxima. A noite estava fria, meus braços se arrepiaram e você continuou comendo inabalável seu peixe encharcado de maionese sem nem oferecer seu casaco.
Às vezes eu reflito se gosto seletivamente de você ou se gosto de você por inteiro.
Você termina de engolir o último pedaço enquanto faço aquele barulho irritante com o canudo no copo vazio que tira qualquer um do sério. Estamos andando pela avenida principal em direção ao prédio de um amigo nosso, onde dormiríamos somente oito horas da manhã do dia seguinte após uma maratona de filmes de ação. O copo plástico continua na minha mão, é a única coisa que impede a minha esquerda de agarrar a sua mão direita para aplacar o frio (e a fibrilação cardíaca).
As ruas estão vazias, à certa hora da noite a cidade parece o fundo do mar: silenciosa, densa e escura. Os predadores estão à espreita e as presas se recolhem em suas moradias com falsa sensação de segurança. Somos presas disfarçadas de predadores, minha arma é meu canudo listrado e a sua são seus tênis de marca que têm defeito no bico, os quais machucam bastante caso alguém receba um chute.
Seus olhos brilham à luz do luar, e a luz refletida é tão pura que dá para discernir perfeitamente o azul do anel violeta e a faixa negra na borda da íris. Seu rosto se contorce em desgosto quando anuncio que preciso fazer meu ritual, já que não o fiz por duas semanas e meia. Dou uma de Augustus Waters e penduro o cigarro na boca, sentindo-me no controle da minha vida e morte pela primeira vez em meses.
Veja bem, eu estava ali, com tomate nos dentes, um cigarro que nunca se acenderá nos lábios, caminhando ao seu lado e pensando se nosso colega teria lembrado de pegar a baleia de pelúcia quando ele foi namorar minha prima. Eu estava ali, naquela noite fria, sentindo-me a nadar no mar noturno, entre tubarões e arraias à espreita com o intuito devorar um de nós. Eu estava ali, e você estava junto, conversando após meses de recusa sobre faculdades e mercado de trabalho, e nunca me senti tão viva quanto no momento em que joguei o copo de plástico ainda com gelo no lixo e cobri minha mão gelada com a sua mão morna.
Às vezes me pergunto se gosto de partes seletas suas ou de você por completo, mas hoje cheguei à conclusão de que há coisas que gostamos e outras não nas pessoas. Por exemplo, você admira o fato de eu planejar fazer algo pelas baleias em extinção, contudo, odeia o fato de que eu me preocupo mais com um animal que com minha própria saúde, porque também odeia minhas metáforas.
Eu tenho algumas ideias bizarras, mas espero que isso não impeça seu coração de acompanhar o meu na melodia das sístoles descompassadas.