Ela abriu os olhos com certa dificuldade. Seu pescoço formigava e sua nuca parecia estar achatada, toda a anatomia de sua cabeça doía enquanto ela tremia de frio. A mocinha se levantou e assentou-se, ao olhar para ambos os lados, se deu por conta de que estava em um corredor longo e acinzentado que ecoava tanto que apenas um simples batimento cardíaco podia virar um barulharão lascado.
"Aonde diabos eu estou?" - ela pensou por um milésimo.
Foi quando seus olhos desceram para seus pulsos - pingando - suas calças brancas estavam encharcadas de sangue, com certo temor e agonia, ela enfiou seu dedo mínimo dentro de um dos cortes e o primeiro gomo do dedinho afundou inteiro.
"É, foi fundo desta vez..." - Suzane Troyen refletiu enquanto fitava seu mais novo fracasso - "Mas... Se foi tão fundo e eu não paro de sangrar... Por que continuo me sentindo forte? Era para eu ter morrido..." - uma ligeira onda de fúria a tomou por completo - infernos! ERA A DÉCIMA QUARTA TENTATIVA FALHA!
Ela mal podia acreditar... Como podia ser tão inútil! Não podia aceitar que não havia morrido... E amanhã... Droga... Amanhã o aluguel vence... Oh Deus... Por que a odeia tanto?
Passado o choque inicial de ainda estar viva, ela se pôs de pé e começou a desbravar os corredores; não se lembrava de ter estado ali nunca em toda a vida, por mais que tentasse abrir as portas, elas estavam muito bem trancadas e como eram pesadas, de ferro grosso e sem ferrugem, era praticamente impossível arrombar.
"Socorro!" - ela gritou - "Eu fui internada de novo?!" - ela imaginava estar em algum hospital, mas, mesmo assim, não fazia sentido algum não terem contido o sangramento.
A moça olhou para trás e já não sabia identificar que havia seguido o rastro do sangue no chão, ou se o sangue era mesmo dela. Estava tudo tão abafado, tão apertado de repente... Era como se tudo estivesse encolhendo ao redor de seu pescoço, as paredes, o piso, o sangue, os cheiros, a dor... MINHA NOSSA, A DOR! Começou a ficar insuportável... Ela sentia, sentia que seria agora... Era agora que ela finalmente cessaria... Vai... Um, dois...
Viva.
Ainda.
Decepcionante. Que sensação é essa?! Agora ela já se arrependia de ter cortado tão fundo seus pulsos já bem retalhados por causa de toda a vida de merda que ela havia tido.
Tão merda assim?
"Quem disse isso?!" - sua voz saltou junto com o coração.
Qual a diferença entre morrer e estar vivo?
"Pare com isso! Se está aqui para me assustar, se mostre! Covarde!!!" - ela estava se esgoelando de joelhos, estava apertado, apertado... "Ah, que gola apertada! Meu Deus!" - e quanto mais ela tentava tirar a blusa, mais sangue jorrava de suas veias e mais a gola apertava em volta de seu pescoço, como um nó sem fim.
Suzane Troyen começou a entrar em pânico, enquanto a voz aveludada ainda ressoava em todos os corredores, se misturando com os sons das batidas do coração da jovem e seus gritos.
Qual a diferença entre morrer e estar vivo?
- a voz indagou pela milésima vez.
"Eu não sei! Me ajude, não brinque comigo... Eu vou... Morrer..." - ambiguidade e um suspiro de reprovação. Era tudo que ela queria não? Findar aquela miserável vida, então... Qual a razão do hesitar insaciável?
Qual a diferença entre morrer e estar vivo?
- a voz persistia assim como os gritos da menina
como se fosse uma zombaria sem fim.
"Você não vai me ajudar até eu responder? Pelo amor de Deus... Me ajude..." - teimosa que era, não querendo ver o óbvio, continuava arranhando seu próprio pescoço, a medida que suas unhas arrancavam a carne, mais quente e mais insuportável as feridas em seus pulsos e agora, em seu pescoço ficavam.
Até que, ela assentiu.
"Quando você morre, a dor cessa..." - junto com as palavras dela, uma nova onda de angústia se apropriou de cada junta de seu corpo.
Se morrer fosse assim, era para você não estar sentido dor agora.
O quê?
Uma luz.
Um zumbido no ouvido.
Num piscar de olhos, Suzane estava em outro espaço aonde tudo era maior que ela, e toda a claridade cegava-lhe os olhos.
Você está nua Suzane.
"Eu morri?" - não sabia ao certo se sentia-se feliz ou triste por isso.
Qualquer tolo saberia, mas como a senhorita se acha tão sábia,
nós sempre soubemos que seria mais difícil
essa sua aceitação...
"Eu estou morta? Eu consegui? Eu consegui mesmo?!" - ela estava arfando de excitação, como se duzentos orgasmos percorressem seus nervos e seus órgãos.
Sim Suzane, não há mais fôlego de vida em seus pulmões.
"Eu não posso acreditar... Estou morta! Morta mesmo! Adeus problemas! Estou morta!!!" - os orgasmos se acumulavam, como pessoas que não respeitam o aviso do metrô de "antes de entrar, deixe sair", as sensações se acotovelavam, fazendo-a ajoelhar mais uma vez, sem mais hesitar, adentrando os próprios dedos na vagina, com movimentos agressivos, ferozes, vazios.
"Oh...A-a-ahh" - ela se sentia escravizada - "Eu não consi-si-sigo mais pa-rar... Ohh..." - num segundo mais devastador, como se um vento tivesse soprado e levado o prazer, ela começou a se contorcer, os dedos de suas mãos agora trabalhavam unidos, arrancando sua carne, perfurando seu útero, Suzane não sabia se era correto gritar de dor ou duvidar de que aquilo tudo era real mesmo... As sensações todas vinham mixadas sem qualquer cuidado em deixá-la apavorada.
Você sabe que não há mais volta.
"Eu não tenho opção de voltar, não?" - sussurrou enquanto seus dedos já se travavam após moer cada molécula de sua vagina - "Mesmo se eu tivesse, eu não quero... Não quero."
Não quer?
- a voz indagou num tom malicioso.
O corpo dilacerado dela, o espírito e a alma foram puxados e depositados diante a grandes visões.
Parentes chorando, amigos todos protestando contra aquele destino injusto, amores passados todos na beirada de seu caixão, beijando-lhe os pés, os pulsos e as mãos. A mãe passando mal, o tio que desmaiou, a irmã colocando os rins para fora de tanto chorar a perda de Suzane, todo aquele choro e aquele barulho e aquele sofrimento, todas as lágrimas que molhavam seu rosto morto como se chovessem em cima dela, lavando todo o sangue e fazendo arder as cicatrizes.
"Pare com isso! Pare com isso! É mentira! Eles não se importavam comigo! Ninguém se importava comigo!" - Suzane começou a esbofetar o ar, na esperança de que aquelas visões sumissem... Era impossível, impossível! - "Nããããããããããããããõ!" - estrondou na esperança de acabar com a dor que a esbofetava de todos os lados.
Não há como parar.
Você está morta. Aceite.
"Eu aceito... Aceito, mas... Não consigo...".
Você está no inferno, Suzane, e assim será
pelo resto de sua eternidade.
"Não estou no inferno! Eu vim para o lugar errado! Eu sou uma pessoa boa! Eu sou uma filha boa! Eu nunca fiz nada de errado!!!"
Você é a pior daqui.
"Algo me diz de que... Você, voz... Diz o mesmo para todos!"
Todos aqui são os piores.
"Cale-se! Eu não pertenço a este lugar, eu morri para ter paz! Me perdoe!"
Não cabe a mim perdoar-te
mentirosa, ladra, corrupta
pessoa odiosa e avarenta
blasfemadora e ingrata
ciumenta e viciada,
Não cabe a mim te deixar em paz
Falsa, desumana e suja
depravada sem escrúpulos
suicida imunda
Não cabe a mim devolver-te a vida
da qual desistiu por capricho,
estupradora de inocentes
língua maldita
"Não sou isso!!!" - ela cuspiu sangue ao rebater.
Não sabes quem és!
Não ouse contrariar-me
Eu que te dei o dom da maldade.
Estás no inferno, e eu te aceito
Como és.
"Não faço isso!!!" - Suzane voltou a recusar suas memórias.
Ela arfava, já sem forças, escorrendo por todos os buracos, ela via o fogo.
Não, era impossível.
"Não estou morta, eu não pertenço ao inferno, não estuprei ninguém e você não é o diabo!"
Ousa usar se tua pseudo-coragem
para desafiar as forças do submundo?
Não se volte contra os seus,
aceite este espaço,
sua cadeira em nossa sauna,
sua forca de espinhos,
seus desejos mais profanos.
Aqui, você é pior que todos,
e melhor do que ninguém.
"Eu não fiz essas coisas, isso é um engano! Não fiz!"
Ainda ousa mentir para si...
Suzane Troyen, o inferno aceita a todos
bem como eles são
não é preciso mudar
ou procurar redenção,
aqui você encontra o que sempre procurou
ser compreendida...
Bem vinda.
"Nãããão" - ela se recusou a abrir os olhos, no entanto, dedos flamejantes lhe queimaram as pálpebras e ela as abriu para ver a pior cena que alguém poderia ver.
Pessoas espetadas, enforcadas pelas genitais sendo devoradas por cobras e sendo costuradas às traseiras dos animais, gritos, gemidos de horror, montanhas de peles queimadas, carcaças encharcadas de suor fétido, paredes infinitas, preenchidas por todo o tipo de gente, recém nascidos, abortados, crianças pequenas, adolescentes e velhos, todos nus, mutilados, sem os dentes, putrefazendo-se e roendo uns aos outros, luxúria dolorosa e perversa, um eterno suicídio - eram tantas pessoas se atirando no eterno, que o buraco estava praticamente se auto-consumindo, se engolindo, vermes adentrando cada mente, coroas flamejantes, todo o tipo de maldade e tortura jamais imaginados, ninguém ali se envergonhava, ninguém ali hesitava... Era a mais plena e... Bom, não há um só adjetivo para descrever o que ela via e veria pelo resto do início do findar de cada tempo.
O inferno aceita a todos.
Se enturme.
"Não, eu não estou aqui... Isso é um sonho, eu nem sequer morri..." - grandes pelotas feitas de pernas e dentes humanos vieram rolando até ela - "O que é isso...?" - ela não cansaria jamais de chorar.
É a sua carruagem.
Bom passeio, não tenha pressa,
você tem literalmente, todo o tempo.
"É MENTIRA!!! NÃO! EU NÃO MORRI! EU NÃO MORRI!!!"
Levem-na daqui.
Inúmeras pernas necrotizadas a agarraram com as unhas dos dedões e a depositaram dentro de uma das bolas nauseantes e agoniantes.
E por mais que ela gritasse, implorasse, clamasse por Jesus, por arrependimento, tentasse acordar, reconectar suas veias partidas, ou simplesmente se acalmar, a bola não parou de girar, sua nuca se chocava e seus ossos se descolavam, logo ela se tornou apenas mais uma peça daquela obra demoníaca; e, por mais que ela não aceitasse, ou acreditasse, todos os seus órgãos separados estariam destinados a suplicar, ali, transportando novos convidados de milésimo em milésimo de segundo, para sempre.