Um conto de outro mundo
As coisas corriam fáceis na vida de Mercedes, todo dia ela saia de casa para o seu trabalho e gostava do que fazia.
No caminho, ficava olhando o calçamento de paralelepípedos, imaginava o trabalho para colocar pedra sob pedra, em todas as ruas da cidade. Quantos escravos foram utilizados e morreram no sol escaldante de Penedo no Estado de Alagoas.
Em cada passo que dava ela de certo modo agradecia ao trabalho dos milhares de negros, que deram a vida para o passeio tranquilo de todos os moradores.
Se encantava ao ver a arquitetura diferenciada do lugar onde vivia, com um casario marcante das diversas épocas da História do Brasil.
Diferentes sobrados do período colonial, pertencentes as famílias tradicionais penedense, de propriedades de coronéis ligados ao comércio fluvial do Rio São Francisco, ou da produção da cana de açúcar.
Prédios religiosos como igrejas e conventos da época do barroco, que demonstram até hoje, a forte religiosidade católica da cidade.
Uma característica comum ligava todos esses prédios uns aos outros. Diferente de outras cidades mais modernas, em Penedo, no centro Histórico, as casas eram geminadas, na sua maioria construídas com antigos adobes e madeiras centenárias. Uma bela aula da história da arquitetura do nosso País.
Pelo caminho ia cumprimentado gente, gato e cachorro, pois conhecia cada milímetro por onde ia e sabia a vida de cada um.
Tinha um prédio na cidade que passava sempre, embora não fosse seu caminho mais curto, passava por ele com passos bem curtinhos, para observar seus ocupantes. Era o do Tiro de Guerra, e com seus soldados formados por rapazes com corpos esculturais, fazia a alegria de Mercedes, que se amarrava numa farda.
Ao chegar no trabalho, já imaginava o que tinha que fazer. Trabalhava de cozinheira, pois tinha herdado este dom da mãe, cozinheira de mão cheia, como se dizia na época. Era a quarta filha de um total de seis. Alguns trabalhavam no restaurante da família, outros se aventuraram por outras profissões. Ela gostava do que fazia e tinha total apoio dos pais.
Logo que chegava olhava se estava tudo em ordem e logo em seguida esperava a charrete da verdura, que passava cedinho puxado pelo paciente jumento Chico e seu dono, seu Jorge das Candongas.
Pensava no cardápio do dia e em seguida verificava se tinha os ingredientes da rabada para o cardápio, sua comida era famosa na cidade, por ser suculenta e muito apetitosa. Mercedes tinha um dom e ele estava em suas mãos trabalhando na cozinha. Ela sabia disso e fazia com gosto, sendo muito elogiada por todos.
Muita gente famosa frequentava o restaurante de propriedade de seus pais. Políticos, artistas e até pessoas de outras cidades queriam experimentar seus quitutes.
Mas Mercedes era uma pessoa simples, não se importava com a fama e todo dia ia para sua cozinha e pensava como ia fazer de melhor para o dia seguinte. Seu caldo de mocotó, atraia as mulheres devido ao colágeno, os homens pela cura da ressaca, mas a todos, pelo melhor tempero que continha.
Não se importava muito com o dinheiro, aliás era muito desligada desses valores monetários. O que mais gostava de ver era a satisfação dos clientes com o que preparava para eles. De segunda a sábado trabalhava com vontade e agradecia a Deus pelo que fazia.
Tinha origem baiana e tinha um pé na igreja e outro no candomblé, na sexta feira, depois do trabalho, ia agradecer aos deuses pelo que tinha e baixava no terreiro de Tia Nena, uma macumbeira famosa em Penedo. Estava bem desenvolvida no espaço dos Orixás, já era Cambona, recebendo alguns espíritos, entre eles Pomba Gira.
Após agradecer aos santos, chegava em casa e, muito animada tomava um banho rápido indo direto para o forró na casa de festa do Zé Catonho. Sua semana se completava com a diversão da música, da dança e de muita cerveja.
Tudo corria bem em sua vida, mas de repente ao chegar no trabalho se deparou com uma tragédia.
Deparou-se com seu pai morto. Teve seu Argonauta Sucupira um ataque cardíaco e morreu instantaneamente. Ele era o esteio da família, o guardião do lar e todos ficaram sem saber o que fazer. A morte traiçoeira lapidou sua vida tranquila e calma e iniciou um turbilhão de dúvida para o futuro.
Depois da morte do pai, sua mãe relatou a situação financeira da família. Estavam quebrados e com dívidas sem condições de pagá-las. O desespero abateu-se sobre todos.
De uma hora para outra sua vida sofreu uma reviravolta e ela poderia deixar de fazer o que mais gostava, cozinhar.
O resto da família que tocava o restaurante tentou juntar suas economias, mas as dívidas eram astronômicas e sem condições de pagá-las. O que fazer. O desespero pegou geral em todos.
Dona Rebeca, a matriarca da família entrou em depressão imediata e o restaurante fechou em luto.
De repente, a matriarca lembrou de algo que podia salvar o restaurante e as finanças da família. Por confiar muito em Mercedes, ela entregou a muito tempo atrás, um saco de meia contendo dentro um monte de joias com ouro e diamante.
Onde estaria a salvação da família naquele momento, e onde Mercedes escondeu as joias?
Dona Rebeca chamou num Canto Mercedes e, perguntou de imediato, cadê a meia com as joias? O mundo caiu para Mercedes. Fazia tanto tempo que ela não sabia precisar onde deixou as preciosidades. Revirou a casa inteira e não encontrou, foi até o restaurante e só faltou destelhá-lo e nada das joias.
E agora? A salvação estava naquele objeto que para ela não tinha valor nenhum, mas naquele momento salvaria a todos da família.
Mercedes desolada ficou matutando e não sabia onde deixou aquela enorme riqueza que salvaria sua família das dívidas deixadas pelo pai. Mas sua amnésia era geral, ficou decepcionada e desconfiava que sua família não acreditava na sua palavra.
Foi para casa, tomou um banho e foi direto para a capela, onde o pai estava sendo velado. Estavam todos os amigos da família no velório, ao chegar foi direto ver o pai no caixão. Ao vê-lo deu um pulo para trás e começou a gritar e a chorar copiosamente.
A mãe vendo o escândalo tirou Mercedes dali imediatamente, e Mercedes falou no ouvido da mãe que tinha lembrado onde estavam as joias.
Para espanto de Dona Rebeca, as joias estavam no bolso interno nos fundos do paletó do ilustre defunto.
E agora? A poucas horas do enterro, como retirar aquele objeto sem chamar a atenção dos presentes?
O enterro era um misto de alegria e tristeza. Perto do defunto as carpideiras choravam e rezavam ao mesmo tempo, mais ao longe outros contavam piada e tomavam sua pinguinha disfarçada. Outros lembravam dos tempos vividos do Defunto Argonauta Sucupira, desde o tempo que ele chegou da Bahia, nos anos 60 do século XX.
De repente Mercedes voltou ao caixão do pai e aos prantos gritava de o porquê do pai ter ido tão cedo e enquanto isso apalpava o paletó em busca das joias. Diante do desespero todo, o povo tirava ela do caixão e a levava de volta para outra sala.
Era só se descuidarem e Mercedes de volta aos prantos remexia o caixão do pai e cutucava sua vestimenta. Não foi uma, nem duas vezes que se repetiu a cena bizarra, até que ela depois de revirar todo o paletó, chegou à conclusão que a riqueza que sua mãe lhe tinha dado, tinha misteriosamente sumido.
Duas desgraças se abateram na família e desolada foi tentar dormir após o enterro do pai.
No dia seguinte, depois de uma noite mal dormida, ouviu um barulho de alguém batendo a porta. Ao abrir, viu o coveiro que tinha vestido seu pai para o enterro e, mostrando o saco de meia disse: Isto lhe pertence?
O sol brilhou forte no rosto de Mercedes!
Pedro Felix