Olhos Brancos
Maquina de Contos
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 31/10/20 19:18
Avaliação: 9.53
Tempo de Leitura: 7min a 9min
Apreciadores: 4
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Palavras: 1140
Não recomendado para menores de dezoito anos
Notas de Cabeçalho

Bom... Feliz dia das Bruxas.

Capítulo Único Olhos Brancos

Eu gostaria de dizer que sinto muito, mas não sinto. Tentei permanecer apático diante de sua presença, mas era impossível... algo nela me incomodava. Depois de um longo tempo observando-a do outro lado da rua pude pude perceber que aquela garota me causaria problemas, não somente pelas suas roupas pagãs, com o seu turbante, seu top e sua saia comprida estampada com aqueles símbolos africanos, mas por causa daqueles grandes olhos brancos que viam muito além da minha aparência, me expondo aos meus pecados... me julgando dia após dia.... eu precisava dar um basta nisso. Muito traquina, muito faceira, enganou a todos com o seu jeitinho tímido de quem acabou de se mudar. Jeito de alguém que precisa de ajuda para andar. A princípio você pode até negar como todos os outros fizeram, mas depois que eu der meu testemunho vai entender o que digo.

Mesmo que houvesse sempre aquela sensação de alerta quando mantinha meus olhos no dela, como se eu estivesse à beira de um imenso penhasco, era meu dever defender os bons costumes e encará-los de frente. Uma vez que foi eu quem purificou a casa do senhor Ramos de suas perversões noturnas ateando fogo nela, e quem expulsou a força os pecados de Lisa com minhas sementes, quer dizer... seria hipócrita da minha parte dizer que não houve um certo prazer envolvido em meus atos, mas gosto de pensar que foi um caso clássico de causa e consequência: o prazer foi uma consequência de fazer o que era certo e a dor que eles sentiram eram os pecados queimando. Definitivamente não seriam os olhos malditos de uma adolescente de 15 anos que me impediriam agora.

Esperei bem depois das luzes do seu quarto apagarem. Fiquei observando muito além disso, até o meio da madrugada, quando não havia nenhuma alma viva para espiar meus atos. Atravessei a rua deserta, pulei o portão e quebrei o cadeado da porta – uma vez que a casa era antiga e precisava de algumas reformas ainda era preciso cadeado para trancar o lugar – passei pela sala acompanhado somente pelo tiquetaquear do relógio de parede. Ao entrar na cozinha me deparei com as escadas que levavam para o segundo andar no lado esquerdo. Antes de subir passei o dedo pelo faqueiro no canto da pia a procura de uma boa faca que faria jus ao trabalho desta noite... “Hu!” Senti uma pontada forte no dedo e percebi pela pequena gota de sangue que tínhamos nosso vencedor.

Subi as escadas tomando cuidado com o som dos meus passos, toda a casa se encontrava numa penumbra. Eu somente conseguia me orientar pelos poucos feixes de luz que passavam pela janela vindo dos postes de luz da rua.

Ao chegar no segundo andar pude ouvir uma música que me ajudou a achar a bruxa, do quarto dela eu podia ouvir Opposite People de Fela Kuti. Passei direto pelo quarto dos pais dela e abri bem devagar a sua porta de modo a fazer com que o ranger das dobradiças fizessem parte do som ambiente. Olhei em volta e pela pouca luminosidade do ambiente pude perceber vários outros seres na estante me observando com seus olhos de vidro, me julgando tão semelhante quanto ela me julga. Me senti vulnerável e baixei a guarda por tempo suficiente para não perceber que ela havia aberto os olhos... aqueles olhos grandes e brancos me amaldiçoando pelo o que estava prestes a fazer.

- Nunca mais! – Gritei enquanto, no ímpeto, fincava a faca no seu globo ocular esquerdo e sem hesitar, desferi uma segunda facada dessa vez no seu olho globo ocular direito. Sangue jorrava dos orifícios pintando aqueles grandes olhos brancos de um vermelho intenso. Permaneci observando-a até que parasse de fazer movimentos involuntários. Confesso que fiquei decepcionado em não ouvir um grito sair de sua boca, mas posso dizer que voltei para casa com certa satisfação - com um forte senso de dever cumprido - me ajeitei em minha cama e adormeci acreditando que era a última vez que veria aqueles olhos, mas sua maldição ainda nem havia começado...

***

Acordei quando ainda era noite. Uma breve sensação de pânico me acometeu. Estava com a respiração pesada e lenta, não conseguia mexer nada a não ser os meus olhos que pelo desespero tinham somente o ponto fixo do teto. “paralisia do sono” constatei. Olhei em volta, tentando me manter calmo apesar do incômodo, procurando alguma referência de quanto tempo eu já havia dormido e acabei depositando meus olhos numa sombra em formato de gente – por um momento pensei que era a garotinha com o seu turbante – tentei não temer pela possibilidade, mas quando fechei os olhos tentando afastar este pensamento...

- Abra os olhos, não vai querer perder esses preciosos últimos minutos.

Abri novamente os meus olhos e lá estava ela: com o seu turbante, seu vestido de estampa africana e os sinistros olhos brancos. Tentei gritar, mas minha boca nem se mexeu, nem minha expressão mudava, era como se eu estivesse vendo tudo nos bastidores, pela janela dos meus próprios olhos.

- Eu posso ser cega, mas consigo ver que fez muita coisa errada a quem não merecia, sei que destila seu preconceito, escondendo seus atos malignos por trás de ato religioso... teria um futuro promissor nisso se tivesse me ignorado, mas não pôde, não é?

“Eu sabia! Você é uma bruxa” – pensei de maneira equivocada

- Estou muito além disso... – ela respondeu para minha surpresa – a definição mais próxima que sua existência conseguiria chegar é que eu sou uma deusa.

“Não! Impossível! ” – Fechei meus olhos novamente, tentando com todas as minhas forças me mexer, mas foi em vão.

- Ainda dúvida? Mas eu vou te provar: Olhe nos meus olhos.

Eu simplesmente obedeci, sem qualquer chance de resistência e a sensação era que eu mergulhava fundo no branco dos seus olhos. Quando ela me libertou do estado de transe, ainda estava deitado e imobilizado, porém tanto a cama quanto o quarto eram os dela. Opposite People estava no seu auge, como antes.

“O que vai fazer comigo? ”

- O que eu vou fazer? Não... o que você vai fazer a si mesmo.

A garota recuou até sua estante de ursinhos de pelúcia, quase se camuflando no ambiente, enquanto eu observava paralisado, o meu “eu” de momentos atrás adentrar com muita cautela no quarto, parar alguns segundos para observar os ursinhos e de súbito, com um sorriso mórbido, direcionar a faca com toda a força em meus próprios olhos enquanto gritava “nunca mais! ”... Envolvendo minha visão em uma piscina de sangue. Tentava gritar e me debater, pois ainda podia sentir tudo, mas fui privado até de qualquer reação, tudo que pude fazer foi esperar em lenta agonia a minha morte e mesmo me afogando nela, ainda era possível enxergar os grandes olhos brancos da garotinha no imenso mar de escuridão que é a cegueira.

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Apreciadores (4)
Comentários (4)
Postado 02/11/20 14:13

Texto extremamente criativo e original! E que belíssimo fim, meus senhores; satisfatório e certamente bem merecido ao protagonista. Parabéns pela escrita, espero ler mais coisas nessa vibe no futuro! ♡

Postado 07/11/20 14:15

Foi realmente assustador. Um dos piores monstros que amaldiçoa o ser humano: racismo.

Sua narrativa foi forte e muito bem escrita. Parabéns pelo texto. E bem, mais do que justo o fim do protagonista. Até a próxima.v

Postado 02/01/21 22:14

Que narrativa incrível e banhada de crítica! Amo como suas obras de ficção transmitem com destreza e maestria a realidade cruel que cerca nosso mundo.

Obrigada por compartilhar conosco!

Parabéns ♥

Postado 13/10/21 15:01

Que obra perfeita!

Eu amei a narrativa, o desenvolvimento dos personagem, do enredo, das conversas; eu amei a sua obra.

Foi uma leitura magnífica que me deixou presa a toda situação até o fim como me fez odiar e adorar os personagens, principalmente o personagem que mais temos contato, o homem sem nome, mas cheio de preconceitos... Não é preciso dizer o quanto é uma criatura odiosa.

Mas a forma como o matou foi incrível! O colocando em um ciclo onde ele mesmo se mata... Genial.

Agradeço por ter compartilhado sua obra, eu amei!! Foi um prazer ler~~

Assinado uma pequena vampira,<3