Na semana passada, George recebera uma daquelas penas. Disse que uma das garotas de Rogers encaixou a plumagem em seu casaco e nada mais esboçou, apenas seguiu o seu caminho para casa em um daqueles olhares acusatórios que sempre faziam quando se deparavam com um homem fora de seu uniforme. No momento do acontecido, ele lhe relatou, em nada pensou, só sentiu as bochechas esquentarem e o coração bater mais rápido, depois, contudo, revelou o arrependimento de não a esganiçar logo depois. Quem aquela puta achava que era? Esbravejava sobre a mesa, lembrando-se até mesmo de como as veias lhe saltavam pelo pescoço e da própria risada, assegurando-lhe de que não deveria levar aquelas coisas tão a sério... Suspiro, suspiro, o quão certo desejava estar, pois hoje recebia a notícia de seu alistamento como um soco.
Ele não foi o primeiro, tudo acontecia tal como um contágio e pelos meandros dos mesmos padrões: as moças te viam à toa pela cidade – afinal de nada lhe importavam caso estivesse trabalhando ou arrumando a encanação de um vizinho -, as mais ousadas te inquiriam sobre o porquê de não estar em uniforme ou se voluntariando, mas o mais comum vinha na entrega da pena e mais nada, só o silêncio ensurdecedor. Você, como homem, sentiria raiva e se perguntaria quem aquela feiosa achava que era para te acusar daquele jeito, mas assim que a raiva morresse, dando lugar ao cobertor sujo, desconfortável e febril da vergonha, a pior das realizações viria. Uma que atingiu metade dos rapazes que conhecia.
Piscou, recordando-se então das histórias dos feridos que conseguiram voltar. Muitos alegavam que o próprio Diabo veio para uma visita enquanto sangravam ante a lama, e um deles em específico, um tal de Watkins, não deixou nenhuma palavra sair de sua garganta desde que chegara; em certos pontos do dia, simplesmente sorria, expondo a abertura esponjosa da gengiva sem os dentes da frente... E assim permanecia por horas, molhando toda a roupa de saliva caso a mãe não viesse para ajudá-lo.
Teve pesadelos com ele, e em alguma das cenas disformes que sua mente produzia, era ele.
Jogou o antigo jornal que anunciava a morte do arquiduque para baixo da cama novamente, estava úmido e encardido tal como a memória de quando o leu pela primeira vez, e não se deixaria levar por ela.
Na sala, o bilhete que sua mãe deixou pedia para que não esquecesse de alimentar as galinhas, os porcos e de arrumar a janela de cima. Que seu pai já havia deixado a escada fora do depósito, e que só lhe faltava o martelo e alguns pregos. O veria depois... Quando chegasse da feira.
Thomas apressou o passo pela trilha que o levava para o depósito embutido à casa de dois andares. Ali, o pai guardava todas as ferramentas necessárias para arrumá-la ou emprestar aos Rogers, que sempre estavam com alguma parte da cerca derrubada. Um local escuro, mas seu tato o conhecia tão bem que de nem poucos minutos necessitou para achar o que precisava. O malho pesou contra a mão, com ambas extremidades redondas e largas, e o pequeno saco de pregos tilintou quando o balançou perante a face jovial. Lembrou-se, rapidamente, do pai dizendo que precisaria do martelo de unha quando os braços fortes levantaram a escada, mas as palavras dele dissiparam-se tão rápido quanto a maneira como a carregou pelo gramado, posicionando-a diante a janela quebrada enquanto os animais (principalmente as galinhas) soavam atrás de si. Pareciam desesperados.
Mediu a distância dali do chão, com uma mão cobrindo os olhos para afastar a ardência do sol. Seis metros, talvez? Por aí; ainda bem que, medo de altura, nunca teve. Assim, com o malho pendurado em sua cintura e o saco de pregos na mão esquerda, passou a escalar até o seu dever. Lentamente, em antecipação e tremores nas pernas. Os animais aumentaram em seu reclamar.
No topo, diante da janela poeirenta, viu o quarto de seus pais. Daquela direção, podia visualizar vagamente, através do vidro obscurecido, o retrato de toda a família. Ainda era um bebê nos braços da mãe, e sua irmã... Bom, apenas um gnomo de vestido.
Riu daquele pensamento, mas logo estendeu o braço e virou o saco aberto para o gramado, espalhando os pregos em direções contrárias. Não podia vê-los dali, claro que não, e isso fez com que mordesse os lábios fortemente. Sem chorar pelo leite derramado.
Virou-se repentinamente para a escada, agarrando-se em seus lados ao fechar os olhos com força.
Deus, por favor.
Se alguém estivesse vindo pela distância, seguindo os arredores laterais da grande cerca branca que rodeava a fazenda, veria uma linha larga, de tronco branco e pernas pretas, caindo do lugar de onde se apoiava, e no lugar do som do choque de seu corpo encontrando o chão, apenas um grito agoniado, meio choroso.
Mas ninguém viria tão cedo, e apenas os cães e as galinhas esboçaram a reação que deveria pertencer a este fictício visitante – estridente, insuportável, unindo-se ao zumbido que tomou toda sua cabeça.
Os pregos uniram-se ao braço direito e uma parte das costas num beijo doloroso e vermelho. Naquele momento, não pôde agradecer ao seu Deus por não terem atingido sua cabeça ou o pescoço... Mas aconteceria, momentaneamente.
O peito subia e descia junto dos resmungos de dor, e o salgado de suas lágrimas mesclaram-se ao gosto de ferro do sangue que se espalhou internamente por sua boca. Em sua clavícula, um osso deslocado, mas estava longe de terminar.
Moveu-se, agora mais como um corpo ressuscitado, e tentou se sentar, mas a lembrança da tortura atingiu-lhe em mais um grito. Caralho. Caralho! E ao levantar, de maneira extremamente trêmula e lenta, um dos braços que não estava molenga, deparou-se com dois, três... Seis (?) pregos dentro de sua carne, e quando tentou tocar os que haviam tocado suas costas, notou que aquele braço molenga não se moveria tão cedo.
Esforçou-se, grunhiu até o rosto ficar completamente vermelho, e pôde testemunhar que algo muito maior fez com que conseguisse se sentar, pois todas as partes que lhe formavam como um todo separaram-se assim que se esparramou no chão.
Não. Sem pensar demais. Tu é homem ou não é?
Com o braço em pregos, retirou o malho pendurado em seu cinto e, torto como o Quasimodo, levantou-o até a altura de sua cabeça – lá dentro de sua carne, sentiu as pontas metálicas mexerem-se, brincando com sua dor.
Em um grito de prelúdio, acertou sua própria canela.
A visão nublou-se em pontos pretos, turva, e as lágrimas só faziam piorar... Mas não foi o suficiente.
O rosto parecia ter envelhecido uns cinquenta anos, e mais alguns na segunda vez. Mas não foi o suficiente.
Sentia a fratura, só não na mesma intensidade de seu corpo querendo desistir. Não iria.
THUMP! Pôde ouvir quando acertou a tíbia pela terceira vez, ao jogar a cabeça para trás e quase cair novamente. Segurou-se ao malho, pressionando-o contra o chão, e ao se deparar com sua perna inflamada, os olhos se abriram como nunca antes, em horror.
Mas não foi o suficiente.
“Filho da puta”, foi o que tentou exprimir, entretanto, apenas barulhos desproporcionados tentando simular uma maldição soaram de sua garganta em chamas.
Numa respiração irregular e sons que jamais imaginou que seu corpo podia fazer, deu-se por cansado: iria terminar o que começou.
O próximo grito foi de raiva, e a mesma entidade que lhe concedeu a força para conseguir estar naquela posição, decidiu que merecia uma segunda bênção, então quando violentamente acertou a sua perna pela quarta vez, pôde ver o osso deslocando-se lá dentro, pressionando-se para fugir e perfurar a tez de uma vez só.
Se isso aconteceu ou não, não pôde dizer, já que no minuto em que fez sua última declaração, jogou-se ao chão novamente.
No início, tinha planejado jogar o malho para longe, contudo, especialmente naquele momento, não sabia mais pensar, e deixou ferramenta descansar ao seu lado, o auxílio que o transformou naquela figura disforme e quebrada, disseminada pela grama como um espantalho que não aguentou uma rajada de vento.
Doía. Doía tanto...
Mas Thomas nunca se sentiu tão bem.
E sorriu como pôde, entre o sangue que contaminava as aberturas de seus dentes amarelos.
Era bom.
Era muito bom.
Sua mãe, quando o visse naquele estado, gritaria assim como as galinhas. Seu pai tentaria carregá-lo como os cachorros que o lambiam; mas, ainda assim...
Era tão bom.