Olho pra tudo
e lembro de você, mãe
os milhares de livros,
as exposições de arte
os caminhos diferentes
que a gente tomava
do nada
só pra exercitar o cérebro
mas que sempre
nos levavam para a mesma casa
Olho para as receitas
farinha de feijão
no meio do bolo de chocolate
lasanha de berinjela
mingau
e panquecas de madrugada
roupas para lavar
estantes abarrotadas
camisas orgulhosamente amarrotadas
e cabelos enrolados
e olhos verdes firmes
e pele linda e escura
beijada pelo Sol
abrilhantada pela Lua
Olho pra tudo, mãe
lembro da sua imensidão
sobre ser grandiosa
olho para mulheres
com panturrilhas duras de academia
mas só a gente sabe
que as suas ficaram bombadas
por causa de toda a correria
Mil compromissos em 24 horas apenas
eles nunca tiveram pena
mas sempre sobravam trinta minutinhos
para nos dar uns carinhos
nas pausas das aulas
antes de voltar pra sala
categoria O é foda
mas entre criar três filhos
faculdade de psicologia
e trabalhar em igrejas,
escritórios e escolas
e vender artesanato, bombons,
Tupperwares e rifas
para que nunca faltasse nada,
você corajosamente
deu conta de tudo sozinha
Andanças na Via Expressa
tirar a sorte no Sebo da cidade
histórias eletrizantes na fila
do Supermercado
esperando no caixa do banco
você tirava da bolsa magicamente
papel, caneta e lápis
nunca tinha tédio
em esperar ao seu lado,
nunca tinha vergonha
de deixar algo para trás
caso o cartão não passasse
você nos ensinou
o dom de agradecer
e improvisar
que benção ter
crescido com você
que honra é poder
te celebrar
Olho para as colagens
brinquedos pedagógicos
Bíblias com os versículos
mais bonitos
grifados em colorido
os brechós
sacos de roupa usada
e presentes improvisados
dever no Serasa
empréstimo no banco
para comprar comida
juntar centavos
para ir no cinema
gatos manhosos
musicais e orquestras
Olho pra tudo, mãe
lembro da sua imensidão
os seus poemas secretos de amor e prazer
sua postura e inteligência
e bem querer
sua empatia e paciência
e ligações de uma hora
pra reclamar de algum vagabundo
que trabalha com você
Dentes grandes e branquinhos
seios fartos
e cabelos prateados
óculos retangulares
e unhas afiadas
quase nunca para dar um belisco
mas para retirar cuidadosamente farpas
e fechar colares e brincos
Cremes de pele
batom vermelho
seu cheiro no seu travesseiro
Snoopy, trilha sonora de Tarzan
e blusas de seda
calça social e tênis de corrida
tem a linha de chegada
mas você foi meu ponto de partida
E você nos criou para sermos
inegavelmente nós mesmos,
acho que deu certo com eles,
mas acho que saí da linha
fiquei meio insana, muito ativista
desesperada, ansiosa,
sempre tropeçando
na minha própria língua
Sei que você esperava alguém graciosa
você me chamou de Ana,
não pude manter a promessa do meu nome,
mas sei que você ainda me ama
venho sentindo muita fome,
que só mato quando a saudade acabar
ou quando eu nos ver plenamente prosperar
Mas você, mãe
com suas mãos que criaram
um mundo todo
com seu coração que anseia
paz e justiça e conforto
você com abismos e
corredores de maravilhas
você que salva e abraça tantas vidas
te agradeço pelos perrengues que passou
infernos que enfrentou
pelas balas que pegou nos dentes
para dar a luz
às nossas almas viventes.