Aqui Se Faz... Aqui Se Paga
Robson Pinheiro Cruz
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 05/07/25 19:04
Editado: 06/07/25 16:49
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 27min a 36min
Apreciadores: 0
Comentários: 0
Total de Visualizações: 26
Usuários que Visualizaram: 2
Palavras: 4341
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Título:aqui Se Faz... Aqui Se Paga

Autor:Robson Pinheiro Cruz

Data:06/042024

Capítulo Único Aqui Se Faz... Aqui Se Paga

No século XVII, na sombria cidade costeira de Salém, no Condado de Essex, durante os dias turbulentos do período colonial de Massachusetts, as regras do Tribunal da Santa Inquisição eram severas e implacáveis, espalhando medo e desconfiança por onde passavam. Qualquer pessoa suspeita de bruxaria enfrentava um destino terrível: era submetida a torturas e levada a julgamento, onde a condenação frequentemente resultava em uma morte trágica, com a pena de ser queimada em praça pública. Os chefes das igrejas, juntamente com a aristocracia da época, aproveitaram a ocasião para se apoderarem das propriedades de famílias inocentes. Essas terras, fruto de muitos sacrifícios e trabalho árduo de humildes fazendeiros e suas famílias, tornaram-se alvo de ambição desmedida.

Na realidade, as verdadeiras bruxas não foram pegas, pois eram astutas demais para se deixarem capturar por impostores e aproveitadores em meio à histeria.

Nesse período, o rei Arnold já era casado com Amália, com a qual teve dois filhos, Mirna e Josuha, que foram criados com muito amor e liberdade, permitindo que fizessem suas próprias escolhas. Porém, Arnold tinha muitos inimigos que desejavam usurpar seu trono. O rei mantinha um romance "secreto" com Jesabele, uma jovem bela de lábios carnudos, olhos cor de mel, seios fartos, cabelos ruivos e corpo escultural. Jesabele tinha postura de nobre, amava Arnold por seus ideais, não por suas posses. Amália sabia do romance do rei com Jesabele, fazendo-se de alheia, contudo respeitava a decisão do soberano.

A jovem Jesabele vivia com sua avó, uma curandeira que ajudava os mais necessitados. O inquisidor da ocasião, Dom Gerard, não via com bons olhos o romance entre Arnold e Jesabele e, com certeza, encontraria uma forma de acusar a jovem de bruxaria. Nicanor, um dos nobres do reino, próximo ao rei e amigo do inquisidor, invejava o soberano e era apaixonado por sua filha, a princesa Mirna. No entanto, como Arnold sempre permitiu que seus filhos tomassem suas próprias decisões, Mirna não desejava se casar tão jovem, preferindo escolher seu consorte no momento certo. Já Josuha, o filho mais novo de Arnold, tinha um romance secreto com o capitão da guarda, Aaron. Todas as noites, Aaron visitava os aposentos de Josuha, e ambos viviam uma paixão avassaladora.

O valente Josuha tinha dezoito anos, possuía feição semelhante à de um anjo, cabelos dourados como raios de sol e olhos azuis e corpo escultural devido aos treinamentos. Aaron, por outro lado, era um homem alto e forte e viril com cavanhaque e barba por fazer, olhos expressivos e cabelos negros. Um homem garboso na casa dos trinta, que arrancava suspiros de muitos rapazes e damas da corte. A rainha Amália era uma mulher de virtudes e sabedoria, profundamente preocupada com o futuro de seu reino. Desde a infância humilde, ela havia testemunhado barbáries que a marcaram para sempre. Amália se opunha à Inquisição, pois havia visto, em sua própria linhagem, mulheres inocentes terem suas cabeças raspadas, idosas serem queimadas vivas e jovens sendo brutalmente violentadas por homens do clero.

Ela também presenciou a crueldade que se abatia sobre homens, proprietários de terras, que eram acusados de feitiçaria e tratados como servos de Satã. Esses homens viam seus garotos adolescentes serem forçados a servir sexualmente seus algozes, e muitos deles acabavam mutilados, com o falo e os dentes arrancados. Enquanto isso, o rei, que viera de linhagem nobre, embora bem-intencionado, apenas ouvira relatos sobre a humilhação e a covardia que assolavam seu povo. Ele estava sendo manipulado pelo clero, sem perceber as terríveis consequências que se aproximavam para seu reino e para sua amada família. Amália vivia angustiada, como se pressentisse o mal pairar sobre seu lar.

Ao redor do majestoso castelo e da imponente catedral, distante da vila, estendia-se a Floresta Negra, um lugar onde ninguém se atrevia a entrar, nem mesmo os caçadores de bruxas. No entanto, por trás desse cenário de sofrimento e ambição, forças ocultas observavam atentamente, onde residia o verdadeiro mal. Essas entidades primevas não intervinham diretamente, mas uma coisa era certa: "Aqui se faz, aqui se paga." Sombras e névoas pairavam sobre a floresta densa e quase impenetrável, ecos, uivos e gargalhadas se espalhavam pelo ar. Os mais antigos afirmavam que ali habitava um conhecimento milenar, uma força que jamais deveria ser violada. "O mal precisa existir para que haja equilíbrio na balança da vida", assim diziam.

Em uma manhã sombria, Arnold partiu para uma campanha de caça, acompanhado de seus homens, ele se distanciou até o bosque, até que uma figura encapuzada, envolta em um manto negro, cruzou seu caminho. O corcel branco do rei relinchou e se debateu, quase derrubando o monarca.

"É preciso alertá-lo, meu rei, me acompanhe. Algo terrível está prestes a acontecer", proclamou a figura encapuzada.

"Não precisava se cobrir da cabeça aos pés, Jesabele. Não a reconheci", indagou Arnold, surpreso.

"Eu não queria lhe expor." ‘Venha comigo’, explicou a bela jovem, levando-o até sua avó, uma senhora curvada, aura emanando sabedoria milenar, feição adorável e longos cabelos brancos, trajando um vestido desbotado e um chale negro.

O interior da modesta tapera estava repleto de ervas aromáticas, animais empalhados e antigos livros. O rei ficou surpreso, pois não era permitido que mulheres lessem, nem mesmo escrevessem naquela época.

"A covardia que estão cometendo contra as pessoas inocentes terá um preço, vossa majestade. Aqui se faz, aqui se paga."

Reconheço que, no fundo, o senhor não acompanhou de perto, mas assina embaixo, dominado pelos chefes das igrejas. Uma praga se aproximará do reino, e a desgraça chegará à sua casa.

"O que posso fazer para evitar isso, senhora?", questionou o rei, angustiado.

"Aceitar com sabedoria e humildade, no momento certo, poderá abrir um caminho para salvar a si mesmo e a seu reino e, quem sabe, vingar-se dos verdadeiros causadores de sua desgraça", declarou a velha senhora em tom sombrio, e suas palavras ressoavam como um eco em sua mente.

Nos arredores do castelo, Mirna saía sozinha em busca de um refresco quando foi abordada por Nicanor. "Solte meu braço ou o delatarei ao rei!", ordenou a jovem, sua voz carregada de ameaça.

"Não entendo por que me rejeitas, Mirna. Sou rico e jovem, um ótimo partido", proferiu Nicanor, tentando se aproximar para beijá-la. Em um movimento rápido, Mirna arrancou uma lâmina de seu vestido e a cravou na coxa do homem. Ele gritou de dor.

"Da próxima vez, vou acertar o lugar certo", sentenciou ela, com uma frieza que o deixou enfurecido. Nicanor saiu em fúria e encontrou Dom Gerard a caminho, que o auxiliou, levando-o na garupa de seu cavalo. Juntos, foram até o curandeiro, que aplicou um emplastro de ervas e enfaixou.

"Precisamos agir, Vossa Santidade. As coisas não podem continuar assim", sugeriu Nicanor, ainda sentindo a dor da ferida.

"Pois bem, o que me sugere, meu nobre duque?" perguntou Dom Gerard, interessado.

"Não sei se o senhor está ciente, mas a rainha Amália vem de uma família modesta. Conheço suas duas tias que vivem em um vilarejo próximo. Podemos torturá-las e forçá-las a afirmar que a rainha Amália é uma bruxa, assim como Mirna, e acusaríamos Josuha de sodomia, condenando-o juntamente com o chefe da guarda à fogueira", articulou Nicanor, com um brilho maligno nos olhos.

"Mas o rei tomará partido...", questionou o inquisidor, hesitante.

"Se não nos apressarmos, o rei costuma levar cerca de três dias em suas caçadas, ou melhor, em seus encontros "secretos" com a plebéia. E se conseguirmos provas de que foram flagrados, o rei não poderá intervir", disse Nicanor, exibindo um sorriso astuto.

"Excelente ideia, Nicanor! Vamos agir logo!", concordou Dom Gerard, animado.

"Ah, meu amor, eu esperava por este momento", suspirou Jesabele, com os olhos brilhando.

"Eu também, minha doce donzela. Sinto-me seguro em seus braços", respondeu Arnold, beijando apaixonadamente a jovem de cabelos ruivos, enquanto o futuro se desenhava em sombras ao seu redor. As palavras da velha anciã reverberavam na mente do monarca com uma firmeza impressionante.

Enquanto isso:

"Abram a porta... Estamos aqui sob ordens do rei."

As duas senhoras, tremendo de medo, tentaram se defender.

"Não fizemos nada, somos inocentes..." Mas seus apelos foram ignorados quando os guardas arrombaram a porta, destruindo a mesa do modesto casebre. "Vocês foram acusadas de bruxaria e devem pagar por seus pecados."

"Nós somos tias da rainha; ela nos conhece bem e dirá que somos inocentes!", gritaram em desespero. Um dos guardas, no entanto, apenas assentiu enquanto as amarrava e amordaçava. O pânico se espalhou pela vila ao verem um dos soldados chicoteando as senhoras até que o sangue jorrasse, uma cena horrenda que deixou todos em choque.

De repente, um vento frio soprou sobre o vilarejo, vindo da densa floresta, trazendo uma sensação de mal-estar. Ratos começaram a aparecer do nada, e o medo tomou conta da população, pois todos sabiam que era um mau presságio. As palavras de Nereyda estavam se concretizando; uma grande calamidade se aproximava: a peste negra.

Ao chegarem a Salém, o inquisidor as aguardava, acompanhado de Nicanor, prontos para levarem as duas senhoras ensanguentadas à sala de tortura. "Nós somos tias da rainha; ela confirmará que não somos bruxas!", afirmaram em coro, desesperadas. O inquisidor, com um olhar acusador, respondeu:

"Justamente, quem garante que a rainha Amália também não seja bruxa, herdando a maldição familiar?"

"Raspem a cabeça delas, arranquem esses trapos de roupas e joguem água fria!", ordenou o inquisidor aos torturadores.

"Vocês afirmam que a rainha Amália é uma bruxa?" questionou ele, com um sorriso cruel nos lábios.

"Não somos bruxas, nem ela!", tentaram se defender em vão.

"Então cortem as mãos dessas bruacas!", gritou o Inquisidor. O torturador, sem hesitar, arrancou as mãos de uma das senhoras, enquanto a outra desabava em lágrimas.

"A rainha é bruxa, nós somos bruxas! Matem-nos de uma vez, se é isso que querem saber!", gritou a outra, em um acesso de desespero.

"Não, vocês vão sangrar até a morte aqui ou na fogueira", sentenciou Dom Gerard ironicamente.

A princesa e sua mãe tomavam chá no jardim quando foram abordadas pelos guardas. "Vocês estão presas, foram acusadas de bruxaria; não resistam."

"Que despropósito é esse?", questionou Amália.

"A ordem foi dada para prender vossa alteza, juntamente com a princesa, sob a acusação de bruxaria."

O amado de Aaron ansiava pelo momento em que poderiam finalmente ficar juntos, mesmo que um dia ele se tornasse rei.

Com um beijo ardente, ambos se entregaram ao desejo incontrolável que os consumia. No entanto, esse momento de paixão foi abruptamente interrompido quando a porta do quarto foi arremessada ao chão, revelando Nicanor e alguns guardas. Não havia como negar o que estavam fazendo; foram pegos consumando o ato libidinoso. "Estamos aqui sob ordens do inquisidor. Prendam esses hereges, adoradores do diabo," ordenou Nicanor aos guardas.

Com um movimento rápido, Aaron se levantou e, em um só impulso, empunhou sua espada. Joshua fez o mesmo, determinado a lutar até o último instante. Durante o confronto, Joshua conseguiu atingir um dos guardas na barriga, mas, apesar de sua bravura, foram rapidamente dominados.

Ratos e mais ratos surgiam do nada, infestando a vila, os calabouços e o castelo.

Já exausta, Nereyda havia conseguido alcançar o rei antes, mas temia que fosse tarde demais. "Soberano, não parta! Se o fizer, será o seu fim!", gritou a anciã, seu olhar aterrorizado fixo em Jesabele. O rei não ignorou o pedido e seguiram em direção à tapera. "A grande praga se aproxima! Se o senhor for, irão matá-lo!", advertiu a anciã, com a voz trêmula de preocupação. "Traga água neste pote de barro, minha neta. Pegue da fonte..." Jesabele correu, obedecendo à avó.

Arnold franziu o cenho, ponderando. "Vou seguir suas instruções. Espero que esteja certa, anciã," concluiu o rei, sua voz carregada de incerteza. Em um ambiente imerso em espiritualidade, com ervas queimando e súplicas aos ancestrais, Nereyda, Jesabele e Arnold uniram suas forças em busca de visões. "Na água límpida como um espelho, no pote de barro..." As imagens começaram a surgir aleatoriamente, revelando o inquisidor Gerard, Nicanor, a rainha, seu filho, um aviso sombrio do que estava por vir.

No vilarejo, a peste negra devastava vidas, ceifando pessoas à mercê da doença que se espalhava, trazida pelos ratos. Muitos sucumbiam a febre alta, sangravam pelos poros e vomitavam, criando uma cena de caos absoluto.

No calabouço, Mirna encontrava-se em prantos ao ver a mãe, o irmão, as tias mortas e o chefe da guarda naquela situação.

"Não meu irmão também, o que estão fazendo? Meu pai ordenará que sejam enforcados, esses monstros!" exclamou a princesa, com a voz carregada de desespero. O príncipe e seu consorte estavam acorrentados e nus, suas bocas tapadas, mas a angústia que os consumia era evidente.

Apesar de sua cabeça raspada e de estar seminua, a rainha mantinha-se firme e serena. Sentia que o soberano tomaria providências; ele não deixaria a situação por menos, ela podia sentir isso em cada fibra de seu ser.

" Ahaha, Kkkkk, haaaa... Agora a família está toda reunida, só falta o rei e sua concubina", ironizou Nicanor, com um sorriso cruel. "Se você me aceitar como esposo, eu te livrarei deste suplício, Mirna", prometeu Nicanor, com um tom que misturava ironia e manipulação.

"Jamais, seu demônio, porco traidor!" gritou a princesa, repleta de ódio e amargura, as palavras cortantes como lâminas.

A rainha permanecia firme, mas lágrimas escorriam por seu rosto resoluto.

"Vocês dois foram acusados de sodomia e bruxaria, juntamente com a rainha e a princesa", acusou o inquisidor, sua voz ressoando com um eco de autoridade e crueldade. Tiraram a faixa que cobria a boca dos jovens, aguardando suas confissões.

"Papai tomará providências, esperem e verão!" ameaçou o príncipe, sua bravura contrastando com o desespero.

"Confesse, ou seremos obrigados a... Peguem a pera e introduzam no ânus do ex-chefe da guarda", ordenou o inquisidor, sua frieza fazendo o terror ecoar pelo ambiente sombrio da sala de tortura. As quatro folhas de metal se abriram, o parafuso foi entortado, e a pera começou a expandir-se, arrancando a pele e mutilando o orifício do jovem Aaron, que lutava para conter o choro e a dor, enquanto o sangue minava de suas entranhas. O método era conhecido apenas por 'abrir' a sequência de torturas.

Josuha, tomado pelo desespero, se derramava em lágrimas e súplicas, até que, por fim, confessou que praticava bruxaria e sodomia para satisfazer a Satã. O calabouço era um verdadeiro espetáculo de horrores.

"Pois bem, a única intacta aqui é você, princesa Mirna. Você será obrigada a se casar com o Duque," concluiu o inquisidor, com um sorriso cruel que deixava claro que não havia escapatória.

O rei Arnold, Nereyda e Jesabele buscavam forças ocultas para contornar a situação, a fim de salvar o reino e evitar uma catástrofe maior. A tensão estava no ar quando, em um momento de desespero, Arnold esmurrou a mesa, derrubando um pote de barro com água. "Me diga, feiticeira, o que devo fazer para libertar minha família? Pagarei o preço que for necessário; estou determinado a salvar meu povo!" implorou o rei, com a voz carregada de desespero.

Um vento gelado soprou pela tapera, quase como se sussurrasse segredos antigos. A anciã, com um olhar enigmático, respondeu: "Vossa Alteza, existe um preço a ser pago, porém, é bastante alto e pode não haver retorno."

"Que assim seja! Não posso deixar meu reino nem minha família em apuros!" exclamou o rei, com uma determinação inabalável.

"Precisamos ir até a Floresta Negra. Lá encontraremos a solução," sentenciou a anciã, com um tom sombrio.

"Mas, vovó, ninguém jamais voltou daquele lugar. Dizem que o mal habita lá."

"Nas trevas, encontrarei a luz, Jesabele," contrapôs o soberano, com sua confiança renovada.

Os três chegaram à entrada da floresta, mas apenas o rei deveria atravessar a escuridão. Como que guiado por uma força invisível, Arnold se embrenhou na densa mata, ouvindo uivos, piados de corujas e sentindo um frio que penetrava até a alma. Serpentes se contorciam nas árvores, e sombras correndo em meio a folhagem densa, por fim, ele chegou a uma lareira sombria, cercada por mulheres de todas as idades. A cena era impressionante, capaz de gelar os ossos e deixar os cabelos em pé.

"Vocês são..." o rei balbuciou, sem tempo para concluir a frase.

"Sim, nós somos as verdadeiras bruxas e nunca nos deixaríamos aprisionar por aqueles que não compreendem nosso propósito. Não fazemos o mal, mas sim o que é necessário para manter o equilíbrio. A natureza é nossa mãe, e não, como muitos acreditam. O mal está nos olhos de quem vê, e de quem o pratica", respondeu uma mulher altiva, porte imponente.

Ela parecia ser a porta-voz, a mais antiga de todas. Alta a figura enigmática, tinha uma voz sedutora e firme, cabelos longos que caíam como cascatas negras, vestida com um manto de pele de carneiro e uma veste escura que combinava com um chapéu igualmente sombrio. Embora sua aparência sugerisse que estava na casa dos vinte anos, seu olhar carregava a sabedoria primeva. Núbia era seu nome, era a líder do grupo.

"Prosta-te diante do altar de pedras, soberano", sugeriu a bruxa. As pedras se erguiam, formando um pedestal lunar, enquanto as feiticeiras se reuniam ao redor dele, em um círculo que emanava grande poder. O rei Arnold, ajoelhado, estava disposto a pagar qualquer preço pelo poder que lhe permitiria salvar seu reino e sua família.

"Despai-se mortal", ordenou a bruxa. "Você não precisará delas neste momento. Despeça-se de si mesmo. Escute as vozes do vento, o som da floresta, aspire o aroma das ervas. Sinta a energia da lua cheia." Todas, unidas de mãos dadas, entoaram um coro uníssono, e uma névoa densa e fria tomou conta do lugar.

"Desperte o poder milenar, o irracional. Deixe sua natureza selvagem falar mais alto. Nós o guiaremos", pronunciaram numa só voz. "Mai i cennas, an i naur rennas, i faen i narn, i gormad a hîr." ("Do pó veio, agora a fera renasce. O lobo ancestral, o animal que domina o homem.")

A lua cheia despontou no céu em toda a sua plenitude, banhando o corpo do rei, o pedestal e as damas da noite, em uma luz mística e poderosa. A pele e o corpo ardentes do homem começavam a se desintegrar, enquanto um fogo interior emergia em toda sua essência. A epiderme se rompia, sangrando, e pelos negros surgiam em meio à dor intensa. Seus olhos, antes humanos, tornaram-se de um amarelo intenso, brilhando na escuridão. A boca e o nariz se alongaram, assumindo a forma de um focinho feroz, com mandíbulas que se expandiam, revelando dentes afiados, prontos para estraçalhar.

Os gritos agonizantes transformaram-se em uivos primitivos, ecoando pela floresta. Os ossos e músculos se reconfiguravam em uma metamorfose brutal, criando uma figura imponente. O homem, agora preso a essa transformação, abandonava sua humanidade, surgindo como uma criatura humanóide, uma aterrorizante fusão de homem e lobo. A besta-lobo pulsava de energia, com sentidos aguçados, preparada para aceitar sua nova identidade.

Diante de onde estava o homem, uma majestosa criatura se erguia, coberta por um manto de pelos negros, unindo a força de um predador à inteligência humana. O luar iluminava sua forma feroz, enquanto soltava um rugido que reverberava por toda floresta, um chamado à natureza, um grito de guerra. A transformação tornara-se completa, trazendo um novo propósito e uma vida marcada pela dança primal entre humanidade e selvageria. Arnold agora era um lobisomem que seria guiado pelo poder da magia, para trazer equilíbrio àquela situação. A fera seguiu em direção ao seu castelo e ao vilarejo.

Nicanor aproximou-se de Mirna, tentando acariciá-la, mesmo estando presa às correntes, em resposta, cuspiu em seu rosto, e ele, furioso, retribuiu com uma bofetada que a fez cair no chão úmido do calabouço, com o sangue escorrendo de sua boca.

O inquisidor se aproximava da rainha, que, embora abatida, mantinha-se serena e firme.

"Você é forte, Amália, admito. Contudo, veremos se você realmente aguenta a tortura", declarou ele, com um olhar que transparecia tanto desafio quanto desdém. Os torturadores cercavam a rainha, figuras sombrias vestidas com trajes escuros que refletiam a brutalidade de suas intenções. Um deles, um homem robusto com um olhar penetrante, aproximou-se de Amália, segurando uma vara de ferro entortada.

Ele a observou por um momento, como se ponderasse o melhor método para forçá-la a confessar. O silêncio do ambiente era interrompido apenas pelo som do fogo crepitando nas tochas. Ele começou a interrogar Amália, suas palavras carregadas de desprezo e acusações. Ao perceber a recusa dela ao falar, levantou a vara e a utilizou para aplicar uma pressão dolorosa em seu braço, forçando-a a gritar.

A dor era intensa, e, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto de Amália, ela se negava a ceder. Os torturadores, então, mudaram de tática. Um deles trouxe um tonel e, em um ato de tortura psicológica, submergiu o rosto de Amália na água, mantendo-a submersa por longos segundos. Quando finalmente a puxaram para fora, ela ofegou, com a visão turva e a mente confusa.

"Confesse que você é uma bruxa!" ordenou o homem, enquanto Amália, ainda em estado de choque, balançava a cabeça em negação. A tortura prosseguia, alternando entre dor física e a pressão psicológica. Eles a amarraram e a suspenderam em uma posição agonizante, fazendo com que seu corpo clamasse por alívio, mesmo de cabeça para baixo.

O ambiente tornava-se tremendamente opressivo; a atmosfera estava repleta de terror e desespero. Em meio ao sofrimento, Amália tentava se apegar à sua verdade, mas a pressão era insuportável. Após horas de dor e humilhação, a determinação de Amália começou a ruir. A linha entre a realidade e a sobrevivência tornava-se turva. O medo de mais torturas, de perder a vida, fazia com que ela hesitasse.

Contudo, como um lampejo de esperança, ela viu a imagem de Arnold, envolto em luz, dizendo que estava tudo bem. Em um átimo de segundo, ela pronunciou claramente: "Vocês podem ferir meu corpo, mas minha alma está livre, mesmo que seja em outra vida."

Com essas palavras, a mulher deu seu último suspiro e expirou. Mirna começou a chorar, enquanto Josuha entrou em pânico ao ver sua mãe partir.

"Agora restam apenas vocês dois vivos, e irão para a fogueira. O espetáculo continuará na praça do vilarejo, onde vocês serão queimados como exemplo", proclamou Nicanor

Enquanto isso, o povo sofria, vítimas da peste, soldados e serviçais do castelo se dispersavam em meio ao caos.

"Levemo-los às fogueiras, que já estão prontas. E você, princesa, vai assistir de perto", ironizou Nicanor.

A praça estava lotada, com duas piras de madeira armadas e uma estaca onde seriam amarrados os hereges, adoradores do diabo.

"Farei a última oração, e vocês serão queimados em nome de Deus. Que Ele tenha misericórdia de suas almas", pronunciou o reverendo ao lado do inquisidor.

Neste momento, o céu se fechou em nuvens escuras, com trovoadas e raios, e uma névoa densa se apossou da cidade. Todos ficaram aterrorizados.

Uivos ecoavam pelos arredores, ressoando como lamentos de almas perdidas no vilarejo envolto em névoa e escuridão. O dia, que mais parecia noite, era habitado por imensos lobos que atacavam os soldados como se fossem espectros surgidos das profundezas do próprio inferno.

Nicanor, Mirna, o reverendo e o inquisidor se destacavam, sob um palanque improvisado. Foi nesse momento que todos ouviram um uivo ensurdecedor, que soava como um chamado de guerra. De repente, a criatura apareceu, uma fusão aterradora de homem e lobo.

"Taquem fogo nessas fogueiras!" ordenou o inquisidor, e os torturadores, ao acenderem as tochas, foram atacados por quatro lobos negros que surgiram das sombras. A criatura, impiedosa, avançou em direção ao palanque, enquanto o reverendo se benzia, erguendo um crucifixo diante da besta feroz. Porém, suas preces foram em vão; em um movimento ágil, o lobisomem arrancou sua cabeça com uma patada brutal.

Nicanor desceu ao lado de Mirna, mas logo foram cercados pelos animais enfurecidos. O inquisidor, encarando a criatura nos olhos, notou algo familiar. Nesse instante, desembainhou a espada, porém a besta lhe arrancou um braço e devorou seu coração ainda pulsante, como se fosse um mero petisco. A vila estava em polvorosa, mas, estranhamente, nenhum cidadão havia sido atacado. Os rapazes foram soltos, recebendo cuidados urgentes, enquanto a criatura desaparecia na densa floresta negra, e os lobos se dispersavam como sombras na penumbra. O tempo se abriu, como se por um passe de mágica, formando o arco-íris da aliança.

Nicanor foi preso pelos soldados, enquanto Mirna se dedicava a providenciar um enterro digno para sua mãe e as tias.

No caminho, Jesabele e a avó avistaram o lobisomem, mas não se assustaram; o soberano fez sua escolha. Ao regressar à lareira, a criatura subiu novamente ao pedestal, com as bruxas se reunindo em torno dela.

"Cumpriste seu papel, soberano. O equilíbrio foi restaurado, e a praga foi cessada. Retornarás à sua forma humana, mas quando precisarmos novamente, ouvirás o chamado", pronunciou Núbia em um tom solene. O lobisomem se curvou, e sob a luz prateada do luar, passou por uma transformação regressiva, retornando à sua forma humana. Arnold desmaiou, e as bruxas guardiãs o cobriram com um manto de pele de urso, como um símbolo de proteção e respeito.

Ao acordar, Arnold se encontrava em seus aposentos no castelo. Havia dormido por dias, e seus homens o encontraram desacordado na entrada da floresta negra. Um decreto foi promulgado, proibindo qualquer tipo de acusação ou tortura por bruxaria naquele reino, estabelecendo um novo tempo de paz e justiça.

Josuha continuou seu romance com Aaron, e Mirna casou-se com o príncipe do reino vizinho.

Arnold, por sua vez, se casou com Jesabele. E sempre que as bruxas o convocavam, ele se transformava novamente na besta-lobo, não como uma maldição, mas em gratidão pela graça recebida.

Assim, a lenda do lobisomem se perpetuou, um testemunho de que o verdadeiro poder reside não na força bruta, mas na capacidade de restaurar o equilíbrio e proteger aqueles que se ama.

E nas noites em que a lua cheia iluminava o céu, os uivos dos lobos se tornavam um cântico de liberdade e vigilância, ecoando eternamente na memória do reino.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Inquisidor Dom Gerard – Conhecido por usar acusações de bruxaria como ferramenta política. Seus julgamentos raramente resultam em absolvições (exceto se forem de seu interesse).

Duque Nicanor – Um dos nobres mais influentes da corte. Embora publicamente leal ao rei, nos bastidores tramava contra ele e sua família para casar-se com a princesa.

Floresta Negra – Lar da seita de bruxas de verdade, responsáveis pelo equilíbrio ancestral. Diz-se que podem mudar a forma de humanos durante eclipses lunares.

Transformação em lobisomem – Ritual antigo registrado apenas em grimórios perdidos. O sacrifício voluntário real é necessário para ativar a maldição da besta-lobo

. A peste – Segundo as histórias, foram as bruxas que a invocaram. Estavam certos: nada acontece por acaso, senão para trazer equilíbrio e ordem. Obs: A Peste Negra, uma pandemia devastadora do século XIV, e a caça às bruxas, um período de perseguições intensas, estão interligadas na história, embora de formas complexas. A Peste Negra, causada pela bactéria Yersinia pestis, dizimou cerca de um terço da população europeia. O pânico e o medo gerados pela doença levaram a buscas por culpados, e as "bruxas" foram frequentemente apontadas como responsáveis, tanto direta quanto indiretamente, pelo sofrimento.

Apreciadores (0) Nenhum usuário apreciou este texto ainda.
Comentários (0) Ninguém comentou este texto ainda. Seja o primeiro a deixar um comentário!

Outras obras de Robson Pinheiro Cruz

Outras obras do gênero Ação

Outras obras do gênero Aventura

Outras obras do gênero Crítica

Outras obras do gênero Crônica