Ainda que não pretendesse vê-la, assistia piamente à televisão. Não pelo programa, não pelas notícias ou pelo consolo de um ruído no fundo, mas por algo que envolvia o girar do botão com os dedos, como se alguma coisa precisasse da resposta mecânica da máquina. A tela se acendia com um estalo e eu permanecia imóvel diante daquela luz, sem coragem de apagá-la. Era como trair um pacto antigo. Havia nisso um sentimento de lealdade obscura. A solidão era muito semelhante a esse botão duro que girava com esforço.
Naquela noite, sem qualquer aviso no jornal ou cartaz na vitrine da banca, anunciaram um filme. Disseram ser o mais insólito do ano. Eu não soube explicar, depois, como todos pareciam já saber. Mas, a meia-noite na Cinematocasa, diziam, haveria de ser diferente. E eu, presa no interno do interior, no entroncamento entre Parma e Piacenza, tive que me contentar com a pequena televisão da sala, com um som vagaroso, cheio de ruídos de vizinhos que tossiam, andavam, moviam cadeiras, e, eventualmente, gritavam todas estas coisas em dialeto.
O filme começava com uma mulher alemã. Diziam que era tão bonita que um homem mataria por ela. Mas o que vi, por trás do vidro grosso da tela, foi algo opaco, que não sabia se era beleza ou destrato. Meu rosto inclinado, pois o som só vinha do lado direito, e o coração apertado, pois aquela mulher me causava uma sensação de desgosto que me envergonhava. Reconheci a melodia da voz. Se assemelhava a minha antiga cuidadora, Paula, provavelmente, a mãe da mulher, me cantava L’anno nuovo quando eu era criança. Era impossível que fosse a mesma mulher, e no entanto, era como se tudo se reencarnasse dentro da televisão. Como se o passado não cessasse de me invadir sob novas formas, ridículas e ferozes.
Diziam que estávamos em 1971, mas nossa casa ainda era 1953. O sofá onde sentei era o mesmo da primeira safra de tomates, comprado por meu pai com orgulho, e transportado no velho Fiat. Dario dormia encostado no meu joelho, o corpo quente de febre, como sempre que o tempo mudava. A chuva começara na tarde anterior e nos fazia sentir doentes sem nome. Roberto folheava pela terceira vez a nossa contabilidade e dizia que os impostos tinham baixado e, nas palavras do governo, que por si só isso já era agradabilíssimo. Apenas assenti, sem entender, presa no lampejo da tela.
Não era só a televisão que me prendia. Era a certeza de que havia, naquela figura feminina que descia pela tela, algo que eu odiava. Algo que se não parecia comigo e nunca seria eu. Nunca fui para Roma. Nunca fui para Londres. Nunca nem pensei em fazer as malas. Mas alguma coisa se dobrava toda vez que via uma mulher como aquela — idiota ou não — caminhar seguramente entre homens que não a compreendiam. Ela já havia sentido algo verdadeiramente feminino? Parecia isto o que estava errado com ela. Eu via um mundo de homens. Éramos apenas homens e homens mulheres. Ela não era como nós. Aquilo me corroía. Era como se ela encarnasse uma liberdade que jamais seria minha, uma liberdade que era como uma doença. Me fazia mal.
O mundo acabava, pensei, e nós, aqui, no meio da bota, não fazíamos parte do fim. Estávamos fora do tempo. Nossas vidas eram restos de uma Itália antes da guerra, e a morte nunca havia mudado um país na história e não seríamos tão vanguardistas. Quando meus irmãos foram para Milão, fiquei. Fiquei como todas as outras. E cada dia que passava, me parecia mais natural ter ficado. Nunca fui infeliz. Tive sorte. Mas havia noites, essas noites insuspeitas, em que uma espécie de via outra se insinuava. E eu me via no meio da linha do trem, com uma mala pequena e um casaco de couro que nunca possuí.
O filme, com sua beleza áspera, me arruinou por instantes. E enquanto Dario chorava, febril, recitei para ele versos de Gianni Rodari, errando alguns pronomes e a ordem das rimas. Ele me olhou confuso e adormeceu de novo. E eu soube, com clareza, que tudo o que dissera a ele naquele instante já era mentira. Minha língua, como a do pai dele, se dissolvia. Como se o que nos ligasse ao mundo estivesse ruindo de forma lenta e cotidiana.
Voltei à saleta e forcei o botão da televisão. Na tela, a mulher cantava. Dublada. A boca dela se movia como se não precisasse da voz. Como se sua verdade estivesse no corpo, não na fala. Nela havia a espécie lenta do ódio — era visível —, mas não sabia do quê. Odiava-se, talvez. Odiava aquele mundo que lhe conferia apenas a bela escolha. E me perguntei se, quando minha mãe dizia que algumas flores estavam “maduras demais” para serem colhidas, ela falava de nós. Flores quase vivas, que ninguém queria tocar.
O botão da televisão emperrava, como se me pedisse mais um pouco de resistência. Vi a mulher descer escadas com um revólver de brinquedo e tudo ali era teatro e infância misturados. Senti uma dor antiga. Me atacava a lembrança de quando, aos nove anos, me escondia atrás do armário ouvindo meus pais brigarem. A origem estava ali, pensei. No modo como ouvimos, antes de saber o que significa.
Na manhã seguinte, Roberto me chamou a sala. Disse sobre tratores, incentivos do governo, descontos que agora permitiriam cultivar mais com menos esforço. A voz dele era tranquila, até satisfeita, como se o mundo, enfim, tivesse se tornado um pouco mais justo. Sorri. O dinheiro era um vício masculino. Por dentro, só me existia a escada mal iluminada, o revólver de brinquedo oscilando na mão dela, e o rosto de mulher que não queria ser italiana e, mesmo assim, poderia ter sido. Pensei que se chamasse Anitta. Pensei que éramos irmãs de um tipo incompleto. E, nesse pensamento meio sujo, me senti acompanhada.
Talvez estivéssemos todas esperando apenas isto. E eu, que nunca fui infeliz, que nunca fugi, que fiquei onde todos disseram que era o meu lugar, percebi, naquele instante, o quanto desejava desaparecer.