Capítulo 1 – Assombrações do passado
Como vai, meu amigo? Você deve estar se perguntando: O que aconteceu com o Roberto? Será que ele ainda está vivo? Pois bem, eu sei que há muitas dúvidas em relação ao meu atual paradeiro e, por este motivo, decidi lhe escrever. Espero que você leia com atenção o conteúdo desta carta. Quando terminar de lê-la, eu lhe garanto: suas dúvidas serão sanadas.
Naquele dia, a casa se desenhava diante de mim, imóvel, imutável, como uma pintura fora do tempo e do espaço, ela me encarava. Pelo que se pareceram horas, eu apenas devolvi o seu olhar e, após um longo tempo, dei o primeiro passo em sua direção.
A cada passo dado, os meus cinco sentidos se tornavam cada vez mais entorpecidos. Pouco a pouco, eles foram substituídos pelas velhas lembranças de um passado antigo. Em minha mente, somente as memórias aparentavam ser reais e a realidade se assemelhava a um sonho, não… um pesadelo.
Quando, finalmente, cheguei à porta de entrada, coloquei minha mão sobre a velha e enferrujada maçaneta, dei um longo suspiro e a girei.
O que eu vi no interior daquela velha casa, caindo aos pedaços, foi a visão mais divina que eu já tive o prazer de presenciar. Neste momento, você deve estar se indagando: O que o Roberto viu exatamente? Que visão divina foi essa que, aparentemente, abalou tanto seu ser? Para que tais perguntas possam ser respondidas, da melhor forma possível, nós precisamos voltar no tempo; para a época em que os sonhos começaram.
Capítulo 2 – Sonhos do passado
Como você sabe, eu nunca me apeguei ao passado e nunca me deixei levar pela minha própria imaginação. Nunca tive sonhos. Quando me deitava, a única visão que tinha era a da escuridão. No entanto, tudo isso mudou no dia do funeral.
Não sei se você ainda se lembra do Bruno. Nem dá para acreditar que já se passou um ano desde o seu falecimento. Se não me falha a memória, você estava lá, no funeral; a gente até trocou algumas palavras sobre os velhos tempos. Enfim, foi ali, no momento em que o corpo do Bruno estava sendo sepultado, que eu ouvi, pela primeira vez, o chamado vindo dos tempos primevos. Naquela noite, eu sonhei.
Em meu sonho, a escuridão se desvanecia em imagens da nossa infância e o sentimento carregado por este quadro de recordações era o de completude. Quando acordei, comecei a sentir algo, ou melhor, a não sentir nada. Os meus sentimentos haviam se tornado, assim como os meus antigos sonhos, um vazio, uma escuridão sem significado.
Nos dias seguintes, este vazio se apoderou do meu ser. Como um buraco negro, ele sugou todas as emoções, boas ou ruins, para dentro de si e as dissolveu em seu oceano de indiferença. Meu único alívio deste tormento era o sonho, ele era a única partícula de luz que brilhava sobre esta escuridão. Eu até tentei preencher este vácuo de sentimentos com as recordações oníricas, mas, para o meu desprazer, elas apenas traziam consigo um alento temporário, no fim, a escuridão sempre retornava.
Fiquei seis meses vivendo desta maneira desumana, até que, uma noite, ele falou comigo. Sei que o que escrevo nesta carta vai soar como loucura para você, mas o Bruno falou comigo! Em meu sonho!
No sonho, a gente estava brincando no quintal, até que minha mãe chamou. Eu e você corremos para dentro, mas o Bruno não correu, ele se virou para mim e me encarou com uma expressão de pena em seu rosto. Tudo o que consegui fazer foi lhe devolver o olhar, conforme ele se aproximava, dizendo:
— Roberto? O que você tá fazendo aqui? — disse Bruno suavemente.
— Eu não sei. — respondi, finalmente, após alguns segundos de silêncio.
— Sua mãe acabou de chamar, é melhor a gente entrar. — disse Bruno, estendendo sua mão em minha direção.
Eu o observei em silêncio por algum tempo e, por fim, peguei sua mão. Ainda não sei por que o fiz; talvez o tenha feito pelo sentimento que o ato carregava consigo, era um sentimento aconchegante como o de um abraço.
Ao pegar minha mão, Bruno a apertou fortemente e apontou para a casa. Ele não precisou dizer nada; o seu corpo, as suas feições, falavam por si só, e eu o entendia: ele queria voltar para casa, voltar para os velhos tempos. Conforme andávamos em direção à casa, pela primeira vez em meses, eu comecei a sentir algo; uma estranha sensação de pertencimento, que se intensificava a cada passo que dávamos.
Quando chegamos à porta de entrada, uma estranha paranoia se abateu sobre mim. Ao senti-la, eu instintivamente soltei a mão do Bruno e abri a porta em um movimento rápido e preciso. Eu esperava encontrar o meu antigo lar, mas, para minha surpresa, tudo o que vi foi um clarão de luz que arrebatou a minha consciência, despertando-me instantaneamente.
O dia seguinte foi um borrão de acontecimentos, que confesso nem me lembrar direito, pois a minha mente estava fixada na casa, nas memórias, nas lembranças do passado.
Naquela noite, eu não jantei, eu nem sequer tomei banho; a primeira coisa que fiz ao chegar em meu apartamento foi me deitar. Buscando os sonhos, buscando aquele sentimento aconchegante, eu fechei os olhos. Infelizmente, não houve lembranças e o sentimento de aconchego foi substituído pelo do mais puro horror. Aquilo se certificou disto.
Capítulo 3 – Pesadelos Do Passado
O que veio a seguir não foi a doce ilusão dos velhos tempos, mas sim a manifestação sombria de algo inconcebível.
A casa não era a mesma, ou melhor, ela era a mesma, porém, o seu interior estava diferente: as suas paredes estavam cobertas por um bolor preto que se espalhava por todas as direções, corrompendo tudo em seu caminho, como um câncer.
Confesso que, ao ver o estado deplorável em que minha antiga morada se encontrava, o meu corpo se paralisou. Até que uma voz se fez presente no breu e me tirou de meu estado catatônico.
— Vamos, Roberto, seus pais estão esperando. — disse a voz misteriosa, vinda da cozinha, em um tom rouco e baixo que cortava o ar como navalhas.
Ao ouvir este som inumano, eu me virei para sua direção, mas, para minha surpresa, não havia nada lá, além da luz fraca e vacilante da cozinha. Intrigado, eu relutantemente comecei a me mover.
Quando cheguei à cozinha, uma brisa gélida, como a pele de um defunto, soprou sobre mim. Foi então que eu vi quatro figuras: A primeira foi Bruno. Ele se encontrava sentado à mesa, na cadeira em frente à entrada. O seu corpo apresentava uma estranha cor arroxeada e os seus cabelos caíam sobre sua cabeça em finos fios brancos. Mesmo que sua aparência fosse aterrorizante, o que mais me atormentou foram os seus olhos, ou melhor, a ausência dos mesmos. Em seu lugar, havia apenas dois longos e desfigurados buracos ocos, que me fitavam. Os outros dois seres eram os meus pais, ou melhor, o que assumi serem os meus pais, pois aquelas coisas mal se pareciam com um ser humano. A carne em seus corpos havia se tornado podre e, como um punhado de tinta, a pele escorria pelos seus ossos, expondo partes de seus esqueletos. O meu pai estava sentado ao lado daquela coisa e a minha mãe estava na frente do fogão velho e enferrujado, mexendo em uma panela vazia. Ao perceber a minha presença, ambos se voltaram para mim e eu vi o que deveria ter sido as suas faces. Não havia carne em seus rostos, não havia cabelo em suas cabeças, tudo que havia restado de suas frontes fora um crânio de ossos amarelados e bolorentos. A última figura que compunha esta pintura horrenda era uma coisa, um amontoado de carne podre e pus que pulsava como as batidas descompassadas de um coração moribundo.
Ao me deparar com esta cena dantesca, eu comecei a contorcer a minha face em um misto de nojo e terror. Logo em seguida, a brisa gélida soprou novamente e empesteou o ambiente com o cheiro da morte e da podridão, me fazendo curvar e vomitar um líquido preto e viscoso. Quando a minha mãe percebeu o meu estado, ela parou os seus afazeres e disse:
— Roberto! Onde você estava? Bem, isso não importa. Temos uma visita! A gente só estava esperando você chegar para começarmos o jantar… — dizia minha mãe, em um tom baixo e trêmulo, com um ar de indiferença.
Após alguns segundos, eu recuperei a minha compostura e a minha mãe se calou. Um silêncio ensurdecedor tomou o ambiente e, por fim, os três seres, que anteriormente haviam sido os meus entes queridos, disseram em comunhão:
— Por que não se senta?
Tremendo, assustado e atormentado, eu fui para à mesa e me sentei na cadeira oposta à criatura amorfa, ao lado de Bruno. Ambos, meu pai e minha mãe, se sentaram ao lado do ser gelatinoso. Somente após todos se sentarem, suas vozes, novamente, ecoaram:
— Nosso encontro era esperado, porém, não achei que demoraria tanto. — disseram as vozes, conforme a criatura se contorcia. Ao ouvir aquela combinação inumana de vozes, eu soube, de alguma forma, que aquelas não eram as palavras dos meus entes queridos, mas sim a manifestação das intenções daquele que se sentava à minha frente.
— Quem… O que é você? O que estes sonhos signi… — comecei a questionar o monstro diante de mim. No entanto, antes que pudesse finalizar os meus questionamentos, eu fui abruptamente interrompido.
— Eu? Você me conhece muito bem! Eu sempre o acompanhei, no princípio, de forma discreta, quase imperceptível, no entanto, eu sempre estive lá; no fundo da sua mente, esperando e esperando. Por anos esperei pelo momento em que as suas lembranças do passado, amontoadas em seu subconsciente, viessem à tona. Agora aqui estou! Suas lembranças se amontoaram em uma massa, um amálgama de memórias desconexas, uma mistura de fato e fantasia, de sentimentos genuínos e de sentimentos fabricados pelo passar do tempo. Eu sou esta massa, Roberto. Eu sou aquele que nasce quando as memórias transbordam o oceano do pensamento, e eu possuo apenas um objetivo: guiar aqueles atormentados pelo passado em direção ao seu renascimento. — disseram as vozes. Conforme este ser abominável discursava, as peles, os músculos e a carne, ainda presentes nos corpos de meus amados, se tornavam cada vez mais podres. Os meus pais foram os primeiros a se tornarem esqueletos e, ao fim de seu discurso, Bruno se juntou a eles.
— Guiar? Eu não entendo! Para onde, exatamente, você deveria me guiar? À Terra do Nunca? Bem, isso não importa! Receio ter que lhe informar isso… — disse para o ser, levantando-me. — Mas, eu não preciso dos seus serviços! — disse, batendo fortemente com as palmas das minhas mãos sobre a mesa.
Quando tentei me levantar, percebi que estava preso. Uma gosma, vinda do corpo da criatura, havia se arrastado pela superfície da mesa e se enrolado sobre os meus punhos. Em um fino fio, esta gosma começou a se mover, pouco a pouco, pelo meu corpo. Eu tentei me livrar dela, eu me debati, lutei com todas as minhas forças, mas de nada adiantou. Aquele monstro havia me capturado.
— Ah, Roberto! Sinto lhe informar isso, mas você não tem escolha! — disse a criatura, conforme o seu corpo amorfo começava a se expandir. — Sua passagem para a cidade de Neon já foi comprada. — disse a criatura, o seu corpo já havia devorado os esqueletos dos meus pais e metade da mesa. — Desde a erupção de suas lembranças, você… já… havia… se… tornado… um… d… e… n… ó… s… — disse a voz solitária de Bruno, conforme a criatura o consumia.
A esta altura, a gosma já havia se alastrado por quase todo o meu corpo, somente os meus ouvidos e os meus olhos permaneciam intactos. Por fim, a gosma cobriu os meus olhos e eu vi a escuridão primordial. Fiquei um longo tempo contemplando este abismo da alma, até que a gosma adentrou os meus ouvidos, invocando uma voz perturbadora nas trevas, que dizia:
— Seja bem-vindo à cidade de Neon!
Foi nesse momento que eu acordei, pouco antes de ser completamente digerido pela criatura. Com um grito, eu me ergui da cama e lá permaneci, sentado, por horas, com o suor frio escorrendo pelo meu corpo.
Os dias seguintes foram os mais difíceis da minha vida, pois o pesadelo havia se apoderado da minha mente. Não importava para onde eu fosse, a sua lembrança sempre estava comigo, me perseguindo, como um fantasma em uma mansão mal-assombrada. Mesmo atormentado, eu ainda conseguia enxergar uma luz no fim do túnel, havia um sentimento que ainda me mantinha de pé, um sentimento trazido pelo pesadelo, ou melhor, um desejo, um desejo de rever a velha casa.
Quando os sonhos pararam? Foi pouco tempo depois do pesadelo. Nos primeiros seis dias após ele ter ocorrido, eu ainda sonhava, porém, estes sonhos não eram sobre as antigas memórias do passado, mas sim sobre uma luz em meio à escuridão que, como um farol, me guiava para a terra firme. Infelizmente, no sétimo dia, até este sonho me deixou.
Quando um mês se passou desde o fim dos meus sonhos, eu já não tinha mais forças para continuar vivendo naquela realidade envolta em trevas e, para preservar a minha vida, eu decidi ouvir os chamados advindos do meu desejo mais íntimo. Sem pensar duas vezes, eu peguei o meu carro e fui até a antiga casa da nossa infância.
Capítulo 4 – Horrores Do Presente
Finalmente, o Roberto vai falar o que diabos ele viu no interior daquela casa. Você pensou, não é? Pois bem, mesmo que eu te contasse o que eu vi, você não acreditaria em mim.
Veja bem, meu amigo, eu encontrei o que eu estava procurando! Na casa, eu encontrei a luz, a terra firme, um local tão belo e reluzente quanto as memórias dos velhos tempos. É deste lugar que eu lhe escrevo; a cidade de Neon.
Não há motivos para você se preocupar comigo, eu estou bem! Enfim, além de esclarecer as dúvidas que surgiram em relação à minha pessoa, esta carta tem outra função, a de lhe informar: o guia me avisou que as suas memórias, assim como as minhas, eclodiram. Logo ele irá lhe visitar. Não se preocupe! Admito que o processo de conversão pode ser um pouco… duro. Mas você pode ficar tranquilo! Logo você se juntará a mim.
Até mais, meu amigo, eu o espero na cidade sobre o abismo!
Créditos
Texto original, por: E.R.Rock
Desenho de capa, por: E.R.Rock
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Composição Da Capa (Créditos)
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