Um dia iluminado e bonito amanheceu.
– Vamos, Alice, acorde. Hoje você vai para o parque.
Mas a pequena Alice não queria acordar. Seus olhos remelentos e cachos bagunçados denunciavam um domingo preguiçoso. A mãe queria arrumá-la logo.
– Vamos, meu amor, é só um passeio. A mamãe precisa arrumar a casa e sua tia vai levar vocês para brincar. Vai ser legal, por favor, levante.
O irmão já estava pronto, brincando na sala. Alice se levantou, escovou os dentes e colocou sua roupa favorita: uma sainha jeans com florzinhas desenhadas e uma camisa da Hello Kitty – ela adorava essa camisa.
Fez duas maria-chiquinhas e já estava pronta quando sua tia Carmem chegou na porta. Sua mãe saiu, arrastando ela e o irmão para fora. Estava imensa de grávida e ficou feliz por poder ficar sozinha por algumas horas, ter um pouco de sossego enquanto eles se divertiam.
O caminho foi calmo e tranquilo.
O parque estava lindo. As árvores, cheias de flores, celebravam o verão. Crianças corriam e escorregavam no escorregador; mulheres sentadas na grama liam e cuidavam de seus bebês. A tia deixou as crianças brincarem soltas enquanto fazia crochê.
Alice entrou no túnel de brincar e lá ficou com o irmão, contando histórias de terror.
Esses foram muitos dos domingos à tarde de Alice, até que tudo começou a mudar.
A tia não podia mais cuidar deles e a mãe já estava na reta final da gravidez. Alguns meses se passaram e a mãe prometeu que iriam ao parque novamente.
– Vamos, Alice. Hoje é dia de parque!
Ela correu pela casa com seu vestidinho rosa de moranguinhos, pegou sua mochila com brinquedos e ajudou o irmão a se arrumar às pressas.
– A titia vem, mamãe?
– Dessa vez, não, querida. Hoje quem vai levar vocês é seu tio. Mas ele vai conseguir te empurrar alto no balanço. Vai ser muito mais legal!
Alice queria que fosse a tia a levá-los, mas ficou esperançosa pela promessa de voar longe no balanço.
Ela e o irmão estavam em frente de casa quando o tio chegou. Fazia tempo que Alice não o via. Ele estava mais magro, com o olhar fundo. Ela se agarrou no vestido da mãe; algo estava estranho para ela.
– Vamos, Alice. Você se lembra do tio Antônio? Ele é o marido da titia, é ele quem vai levar vocês.
O irmão correu até o tio, que o girou no ar. Alice se aproximou acanhada, e ele a abraçou:
– Como você cresceu, Alice. Já está uma mocinha muito linda.
– Você viu, Antônio? Nem parece aquele bebezinho. Cuide dela, por favor.
– Pode deixar.
O parque estava lotado: crianças corriam por todos os lados, balões voavam no céu. Assim que chegaram, o irmão se juntou a alguns amiguinhos conhecidos e Alice correu para o balanço.
Ela balançava as pernas para cima e para baixo e o balanço ganhava vida. Quando fechou os olhos, sentiu alguém a empurrar devagarinho. Ansiosa, pedia para ir mais alto e mais alto.
– Alice, você quer ir mais alto?
– Por favor, tio! Pode empurrar, não tenho medo. Já sou grande!
– Tudo bem. O tio vai te empurrar mais alto, mas vamos aos poucos, ok?
Ela balançou a cabeça. Sentiu o vento, o friozinho na barriga, e gargalhou alto. A felicidade ganhava vida dentro dela.
Mas então ele parou. Ela olhou em volta: ele não estava mais lá. Desceu do balanço à procura do tio. Queria balançar de novo.
O viu entrando no túnel grande, onde sempre ia com o irmãozinho contar histórias horripilantes. Foi atrás e o chamou uma, duas vezes. Sem resposta. Quando já ia embora, ele apareceu por trás e a assustou:
– BUUUU!
Seu corpo paralisou. Seu rosto avermelhou. Ela estava com medo.
– Tio, por que me assustou? Tenho medo disso.
– Calma, minha pequena. Vamos brincar aqui agora.
Alice o olhou confusa e sentou. Pensou em contar a história do monstro de um olho só, pensou em assustá-lo. Isso a fez sorrir.
– Me mostre seu vestido. Eu achei ele muito lindo.
– São morangos! Eu amo morangos.
Ele a tocou no rosto. Seu corpo se retraiu para trás. Alice percebeu que algo estava errado.
– Vamos brincar de algo diferente, está bem?
Ela o observava atenta. Tentou se levantar. Ele segurou seus pequenos braços.
– Essa brincadeira você vai gostar, pequena.
– Eu quero sair! – esbravejou Alice.
Seu pequeno vestido foi levantado. Seu corpo, desnudo e exposto.
– Para! Para! Não quero brincar!
– Você precisa, Alice. Prometi à sua mãe que iria cuidar de você.
– Alice, você precisa obedecer à mamãe...
Ela o olhou com os olhos marejados, confusos e amedrontados. Seu corpo se debatia, tentando se soltar, mas ele era maior. Era mais forte.
– Vou devagar, está bem?
Ela balançou a cabeça em negação.
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco.
A dor sombreava seu pequeno corpo. O vestido foi abaixado novamente. Ele limpou os dedos com rapidez, olhou ao redor, depositou um beijo em sua testa e se levantou.
– Lembre-se, Alice... O que sua mãe diria se você contasse que foi uma má garota hoje? Não poderá mais vir ao parque.
Ela abriu os olhos e o observou se afastar. Quando olhou para os morangos no vestido, eles pareciam mais vermelhos do que antes. Ela se levantou e deixou o túnel das histórias de terror favoritas.
Sentou-se no balanço. Balançou. Balançou.
O final da tarde chegou. Estavam em casa novamente, os dois sujos de terra, com alguns arranhões.
O irmão passou pela mãe correndo e foi direto para o sofá.
– Meus bebês chegaram! Filho, volta aqui e me dá um abraço!
Ele voltou e a abraçou, contando animado como o passeio foi legal. A mãe sorriu, contente, e olhou para Alice, quieta.
– E você, minha pequena, se divertiu?
Ela respirou. Olhou para o homem ao lado da mãe. Ele abriu um sorriso e a encarou profundamente. O medo novamente percorreu o corpo dela. A sufocou.
– Sim, mamãe.
Seus braços apertaram a mãe e não a soltaram até que ele fosse embora. Quando ouviu a porta se fechar, correu para o banheiro.
A noite caiu. Já de pijama, jantada, Alice ouviu a mãe contar uma história para o irmão. Apenas escutou.
– Vamos, pequena. É sua vez, quer uma história?
Ela balançou a cabeça em negação. A mãe estranhou – ela sempre amava as histórias.
– Filha, aconteceu algo? Está muito quieta.
Ela pensou, repensou, e abriu os lábios, tentando formar palavras.
– Você se comportou hoje? Fez algo de errado? Está escondendo o vestido? Se você sujou ou rasgou, não tem problema. A mamãe conserta, meu amor.
– Os morangos, mamãe...
A mãe a olhou sem entender, passou a mão na barriga já enorme, sentindo os chutes e as dores nas costas.
– Filha, vou deitar. Seu irmãozinho aqui dentro fez muita bagunça. Estou cansada.
Ela tentou segurá-la, mas já era tarde. As luzes estavam apagadas. A porta, fechada.
Alice nunca mais gostou de histórias.
Alice odiava o parque.
Alice tinha medo.
As histórias de terror e o balanço eram frequentes em sua pequena mente.
Até o dia em que Alice esqueceu.