O Canto da Sereia
Robson Pinheiro Cruz
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 31/08/25 20:05
Editado: 31/08/25 20:51
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 5min a 6min
Apreciadores: 0
Comentários: 0
Total de Visualizações: 18
Usuários que Visualizaram: 1
Palavras: 830
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Título: O Canto da Sereia

Autor: Robson Pinheiro Cruz

Data:31/08/2025

Capítulo Único O Canto da Sereia

Dizem que o mar guarda segredos que jamais deveriam ser ouvidos. E entre os sussurros das ondas e o silêncio das profundezas, vive uma lenda que poucos ousam repetir em voz alta: a história de Parthenope, a sereia que um dia foi luz — e se tornou sombra.

Com sua pele alva como a espuma do mar, olhos azuis como as águas mais cristalinas e cabelos dourados que irradiavam luz nas profundezas, Parthenope era considerada a mais bela de todas as sereias.

Mas sua beleza, tão divina quanto perigosa, desafiou a própria deusa dos mares. Num ato de vaidade e egocentrismo, brincou com os destinos dos navegantes, encantando embarcações e desviando rotas com seu canto sedutor. A punição veio como uma tempestade silenciosa: a deusa amaldiçoou sua essência, transformando-a em predadora. O canto que antes prometia amor, agora anunciava morte.

Nas noites de lua cheia, em que o céu se vestia com a neblina e o mar se calava, Parthenope emergia. Seus olhos tornavam-se fendas serpenteantes, os cabelos se convertiam em serpentes vivas, e sua boca revelava dentes de tubarão. A ilha onde habitava, envolta em névoa e mistério, era o palco de sua caçada.

— Essa era uma lenda contada há séculos, que perdura até atualmente marujos. Assim dizia o capitão Jorge à pequena tripulação. Os mais jovens riam, zombando da história, mas os mais velhos a escutavam com respeito — e um certo medo nos olhos.

O céu estava enevoado, e a lua jazia solitária no firmamento escuro. Enquanto isso, Erick, um jovem espanhol de olhos cor de mel, cabelos castanhos, barba por fazer e corpo esculpido, sentava-se na proa do barco, próximo ao farol. Era um belo rapaz de alma inquieta, exímio pescador com arpões, embora cético quanto às lendas que rondavam o mar.

Acendeu seu cigarro de palha enquanto conectava os fones de ouvido ao velho walkman. Foi então que presenciou uma cena inusitada.

Do outro lado, na areia, Manoel — o cozinheiro — caminhava em direção a um complexo rochoso. O jovem parecia hipnotizado, imóvel, como se atraído por uma força invisível. Ao chegar ao local, deparou-se com uma bela donzela: cabelos dourados, olhos azuis encantadores, entoando uma melodia hipnotizante.

Manoel se aproximou. A mulher o envolveu num abraço, beijando-o com intensidade e sussurrando algo em seu ouvido. Nesse instante, seus olhos assumiram a forma de olhos de uma cobra peçonhenta, sua pele tornou-se coberta por escamas ásperas, e os cabelos se transformaram em serpentes vivas.

A criatura híbrida — agora meio réptil, meio humano, meio peixe — abriu uma boca imensa, repleta de dentes de tubarão, e mordeu o pescoço do rapaz, sugando-lhe todo o sangue. Manoel caiu inerte ao chão, entre outros cadáveres apodrecidos que jaziam ali, esquecidos pela luz e pela esperança.

Erick ficou intrigado ao avistar, mais uma vez, outro dos marujos se aproximando do rochedo. Dessa vez, era seu amigo Saldanha — um homem negro, bem gordo, de meia-idade. O jovem assoviou, tentando chamar sua atenção, mas o homem sequer reagiu e continuou caminhando rumo ao complexo rochoso.

— Saldanha! Saldanha!... Caramba, esse caboclo tá surdo?

Prevenido como era, Erick levou consigo um arpão enferrujado. Ao se aproximar do local, sentiu um odor putrefato — uma mistura de carne podre e peixes em decomposição. Ao adentrar o recinto, arrepios tomaram seu corpo, como se a própria morte se fizesse presente.

Mesmo com os fones de ouvido, ouviu gritos abafados. Tinha certeza: eram de Saldanha. Apressou os passos, lançou o feixe da lanterna à frente e se deparou com uma cena aterradora — uma criatura horrenda segurava o coração de Saldanha nas mãos, enquanto seu corpo inerte jazia ao lado de outros cadáveres disformes.

O jovem marinheiro não fora seduzido pela melodia da sereia, graças aos fones que abafavam o canto hipnótico. A criatura avançou em sua direção, mas Erick não hesitou: lançou o arpão com precisão, transpassando o peito da entidade.

O que viu a seguir o deixou incrédulo. O monstro começou a se transformar, revelando sua verdadeira forma: uma bela jovem de olhos azuis e cabelos dourados, com uma longa cauda de peixe. Entre lágrimas, a sereia o agradeceu:

— Você me libertou, belo pescador...

Erick não compreendia.

— Há milênios fui amaldiçoada pela deusa Anfitrite, esposa de Poseidon. Por minha vaidade e ego, fui condenada a me tornar um demônio dos mares.

Comovido, o rapaz se aproximou.

— Talvez eu possa lhe ajudar... — sussurrou Erick.

— Apenas tire meu coração, para que eu possa descansar em paz.

O marinheiro, pesaroso, atendeu ao último pedido da sereia. Arrancou seu coração e o lançou ao mar. No mesmo instante, os céus se abriram em trovões e relâmpagos, como se o universo testemunhasse o fim de uma maldição ancestral.

O antes cético marinheiro agora sabia: as histórias do velho capitão Jorge tinham, sim, um fundo de verdade.

E assim, Parthenope foi imortalizada nas lendas do mar — e nas memórias do velho marinheiro Erick, que, mesmo após tantos anos, ainda sonhava com os olhos azuis da sereia e os sussurros de um amor impossível, embalado pelas ondas.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Parthenope — Nome de origem grega, associado a uma das sereias da mitologia que tentou seduzir Ulisses com seu canto. Seu nome significa “voz virgem” ou “canto puro”, o que contrasta com sua transformação sombria no conto.

Anfitrite — Deusa do mar na mitologia grega, esposa de Poseidon. Embora menos conhecida que seu marido, Anfitrite é frequentemente retratada como uma figura implacável e misteriosa, guardiã dos segredos abissais.

Sereias na mitologia — Tradicionalmente representadas como criaturas híbridas (meio mulher, meio peixe ou ave), as sereias simbolizam o perigo da sedução e o poder destrutivo da beleza. Seu canto é descrito como irresistível, levando marinheiros à perdição.

Transformação monstruosa — A metamorfose de Parthenope em criatura reptiliana remete ao arquétipo da punição divina por vaidade, presente em mitos como o de Medusa, que também teve seus cabelos transformados em serpentes.

Erick e os fones de ouvido — Um detalhe moderno que funciona como proteção simbólica contra o encantamento. O walkman age como um escudo auditivo, rompendo a tradição dos marinheiros vulneráveis ao canto das sereias.

O coração como símbolo — Ao pedir que seu coração seja arrancado, Parthenope busca libertação. O coração representa tanto a fonte do amor quanto da maldição — um gesto de redenção e fim do tormento.

A ilha envolta em névoa — Espaço liminar entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre realidade e mito. A névoa reforça o mistério e a ideia de que ali o tempo e a lógica humana não se aplicam.

Capitão Jorge — Figura arquetípica do contador de histórias, guardião da tradição oral. Sua presença dá legitimidade à lenda e conecta o passado ao presente.

Saldanha e Manoel — Personagens secundários que reforçam o poder da sereia e a vulnerabilidade humana diante do desconhecido. Suas mortes servem como alerta e catalisador para a ação de Erick.

O trovão final — Elemento simbólico que marca o fim da maldição. Na tradição literária, tempestades costumam acompanhar momentos de revelação, transformação ou libertação.

Apreciadores (0) Nenhum usuário apreciou este texto ainda.
Comentários (0) Ninguém comentou este texto ainda. Seja o primeiro a deixar um comentário!

Outras obras de Robson Pinheiro Cruz

Outras obras do gênero Ação

Outras obras do gênero Drama

Outras obras do gênero Fantasia

Outras obras do gênero Ficção Científica