As Paredes Falam (Em Andamento)
Roberto Rezende
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Tipo: Romance ou Novela
Postado: 07/11/25 10:41
Qtd. de Capítulos: 1
Cap. Postado: 07/11/25 10:41
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 16min a 21min
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As Paredes Falam
As Paredes Falam Terra

As paredes falam

I

Que dia é hoje? É a pergunta que me faço mais uma vez antes de ouvir o cantar do pássaro. Volto os olhos na direção da árvore e lá está ele me encarando com aquele olhar desafiador de quem tudo sabe. Toda vez que resolve aparecer por aqui é sinal de que algo está prestes a acontecer. É o pássaro branco e preto sempre me fitando. Quando me aproximo, o danado voa para longe.

O prédio colonial é de um amarelo forte e vívido, tal como a casca do melão maduro. As janelas e portas verdes e grandes ajudam a compor a beleza do presídio psiquiátrico. Do lado de dentro, bem ao centro para onde convergem todas as entradas de seus três andares com varandas generosas de piso de cerâmica vermelha em formato hexagonal, vê-se um amplo jardim retangular. A vegetação tropical se rende em reverências ao ipê amarelo de treze metros plantado no centro do terreno. Bancos de madeira espalhados em suas extremidades convidam os detentos de uniformes igualmente amarelos a se sentarem e apreciarem a paisagem, embora não raro estejam desocupados.

Aos pés da árvore fecho os olhos e, como numa súplica, peço ao vento afastar de mim o suor do meu corpo. Abandono o diário em que registro as minhas memórias, ao tempo de ouvir a sinfonia das folhas aleatoriamente desarranjadas. De repente, o instante de paz é interrompido pela voz que anuncia: você tem visita! Uma jovem de vestido estampado, pele morena clara e longos cabelos castanhos caminha com urgência ao meu encontro. Ela se aproxima, me olha com ternura, pega na minha mão direita, leva-a à barriga. De sua boca trêmula saem palavras entrecortadas: ele é nosso... Renato!

II

Terra

Hesitante, veio o primeiro passo. Depois outro, e mais outro, deixando um rastro. O barro amorfo ganha vida, à imagem e semelhança de quem cria. A semente agora plantada; raízes crescem em direção ao infinito. O ciclo interminável da vida: o primordial sustento. Sua grandiosidade está no impulso, no grão que se revela na simplicidade do divino.

Na cidade histórica encravada no coração do país, caminho por entre ruas de pedras desnivelas desde a origem. Rochas centenárias, assentadas uma a uma por escravos num trabalho duro e artesanal. Ante a dificuldade de correr sobre elas, provo, outra vez mais, de seu veneno. As pedras não nos deixam esquecer de que nesse lugar é prudente sair mais cedo. Elas ditam um ritmo vagaroso, numa espécie de desacelerar forçosamente constante. Avançar pelas ruas é como um sacrifício involuntário. O sino da igreja toca me alertando de que os portões em breve serão fechados. Se ao menos soubesse voar, me anteciparia ao trabalho dos cadeados. Mas voar, assim como correr, é uma impossibilidade. Em sendo assim, aceito as regras impostas pelas pedras. É a vingança delas, um lembrete eterno de que ali não deveriam estar. Talvez jamais tenham sido feitas para calçar ruas. Tirar-lhes à força da pedreira para serem pisoteadas ao longo dos séculos – quanta afronta e crueldade! Mas o ser humano tem disso: normalizar o inatural. O homem subverte a natureza para maximizar o prazer; uma troca desigual em que só um dos lados sai ganhador. Se aprisiona uma ave é porque interessa-lhe privatizar seu canto, o talento conquistado a duras penas ao longo da trajetória evolutiva. Mas o tempo do pássaro, para o homem, é irrelevante. Assim como pouco importa se a rocha deveria ou não servir de calçamento para as ruas. Pois Deus privilegiou o gozo humano: “domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves do céu, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre toda a criatura que rasteja sobre a terra”. Por isso ao homem lhe é supostamente permitido dominar, e insaciável, macular a obra divina. Tudo em nome do gozo. Mas à água, por seu turno, é conferido o poder de suplantar a rigidez. Por entre as frestas das pedras o líquido penetra o solo à vontade; assim como o sangue ou qualquer outro fluido. No entanto, a carne humana, embora feita de água e sangue, jamais terá vida fácil por aqui.

Com os pés cansados e doloridos me apresento à classe no momento justo. Rostos familiares, a maioria conheço antes de aprender a falar. Tamanha intimidade me perturba, confesso. Sabe quando nada mais é preciso ser dito, quando olhares falam por si mesmos e palavras servem como uma gota d’água a derramar discórdia e ressentimento para além da prudência silenciosa? É esse tipo de relacionamento que cultivo com diversos de meus colegas. A intimidade me é inconveniente, ainda mais por não ter sido uma escolha consciente; fruto das decisões de meus pais ou um capricho do destino. Fui matriculado nessa escola quando tinha menos de um ano de idade, e se foram outros dezessete. O meu desejo mais sincero, mesmo contraditório, é pelo anonimato. Na cidade grande somos todos velhos desconhecidos, e é precisamente isso que eu busco: a liberdade anônima. A liberdade incondicional do homem das cavernas a agir conforme a sua natureza, sem a necessidade de nomear o que quer que seja; sem se preocupar com nada além de viver espontaneamente. Sem roupa, sem pudor, sem máscaras. O homem pré-histórico não vestia fantasias. É essa obscuridade selvagem que me fascina; e somente numa autêntica selva de pedras eu poderei alcançá-la: ser um ninguém, um nada. Me livrar do rótulo de filho dos professores universitários e me transmutar num qualquer: um vazio pleno de mim mesmo. Pois será a partir do primordial que me edificarei distante de pré-julgamentos e olhares dos que tudo pretensamente sabem. Quero falar porque o silêncio me sufoca. É algo que está entalado na garganta: o indizível, o inominável. O monstro que habita em mim. O meu autêntico eu primitivo e pulsante; desnudo e leve. Leve como uma pena. A leveza dos que foram absolvidos de todos os pecados. Uma redenção que traz consigo a possibilidade do recomeço. Não desejo entrar para a vida adulta repetindo as mesmas ruas de pedras conformadas à força bruta. Quero mais da vida: não menos que a liberdade. Pode ser a utopia de quem ainda é jovem demais e sabe pouco da existência. Desejo ser livre para acertar e errar. Para viver, enfim.

Mais uma manhã de simulado. Ser aprovado em medicina na federal não será tarefa simples, mas confio na minha dedicação. Abdiquei de quase tudo, o celular agora é usado como despertador e cronômetro para estudos e resolução de questões; nada de redes sociais nem séries. O meu foco é total e irrenunciável. Sei o que quero e não posso me desviar dos meus objetivos. Volto para casa pelos mesmos caminhos de pedras, agora sem a pressão do relógio.

Oi, mãe. Cheguei.

Olá, filho. Como foi a aula? O almoço já está quase pronto.

O simulado não estava moleza, mas acho que consegui os 80%. Agora à tarde sai o gabarito. Cadê o pai?

Está no escritório.

Oi, pai. Tô subindo, vou tomar uma ducha rápida.

Fala, filhão. Tudo bem? E o simulado?

Acho que fui bem. Daqui a pouco sai o resultado.

Subo para o quarto e, enquanto me banho, volta à lembrança algumas das questões da prova de hoje. Logo após deixar a sala de aula e talvez devido a um relaxamento natural do corpo e sobretudo da mente, a despreocupação com a pressão do tempo, então, o conhecimento flui mais facilmente. Errei o que sabia, e como isso me irrita! Durante o almoço, toco no assunto.

Você não precisa gabaritar, disse o pai.

Tem que conseguir os pontos suficientes para ser aprovado, complementou a mãe.

Aceito as ponderações como um enfermo que não pode negar o remédio. Horas depois, saem as respostas e o desempenho veio acima das expectativas: 87% de acertos. À medida que a data da prova se aproxima, mais confiante eu fico; um ano de estudos intensos tem de ser recompensado. No meio da tarde, caio no sono; acordo com o celular tocando. É um amigo me convidando para o futebol de quarta-feira. Faz semanas que não apareço, por isso digo sim; preciso me divertir um pouco. Mais tarde, em casa, me aproximo da janela do meu quarto e me pergunto: o que o futuro me reserva? Não há dúvidas do que desejo, mas reconheço o medo do porvir. Olho para a cama e me entrego à sua sedução; cansado, decido dormir. Acordo com o despertador às cinco e meia com a estranha sensação de ouvir alguém me chamar. Levanto-me indo em direção ao retrato na estante do quarto: sou eu dez anos mais novo. Apesar de todas as transformações, ainda reconheço aquele menino. De sorriso largo e honesto, como qualquer garoto, sonhava em ser jogador de futebol. Mas agora, quem diria, esforço-me por entrar na faculdade de medicina. A mesa do café posta, os meus pais sentados à minha espera; o silêncio é interrompido pelo barulho discreto da louça. Despeço-me, ganhando a rua.

O casario histórico me faz pensar: gerações por ele passaram. No entanto, sua resiliência frente às intempéries salta aos olhos. Afinal, o que é resistir? Seria a virtude de não mudar frente a pressões externas? Por fora, as construções permanecem inalteradas: paredes brancas, portas e janelas de madeira azuis e telhas de barro. Por dentro, porém, a realidade é bem diferente. Como não poderia deixar de ser, os habitantes do século XXI não são os mesmos dos de trezentos anos atrás. E ainda que fossem contemporâneos, não necessariamente pensariam e compartilhariam de valores e crenças idênticos. No interior de uma casa, tudo muda à medida que os moradores se renovam. E ainda que uma casa tenha sido habitada pelos mesmos inquilinos, ainda assim, a permanência não está garantida. Nada como o tempo para mudar as pessoas. O menino do retrato não é mais o mesmo. E ao contrário do casario tombado, mudei por fora e principalmente por dentro.

A cidade possui o título de Patrimônio da Humanidade, o que, convenhamos, a posiciona acima da média. Paisagens naturais de tirar o fôlego, com montanhas e cachoeiras, além de um importante polo universitário, completam sua lista de atrações. Nacionalmente conhecida, recebe turistas e estudantes vindos de todo o país. Foi aqui que no início dos anos dois mil os meus pais se conheceram. O meu pai graduou-se em direito e hoje é professor na universidade. A minha mãe é psicóloga clínica, além de lecionar na mesma instituição de ensino. Ele é um ano mais velho. Estão juntos, entre namoro, noivado e casamento, há vinte e cinco anos de um relacionamento aparentemente feliz. Sou o filho único que cresceu num ambiente cercado por adultos e livros.

Encerrada a aula, nada de incomum acontece. Apenas almoçamos juntos, jogamos conversa fora por alguns minutos e me estico no sofá da sala. Ao acordar, vou até a praça central onde ocorre a feira de artesanato semanalmente. Por aqui se encontra de tudo um pouco, inclusive objetos usados que, ou foram vendidos ou seus antigos donos decidiram, por algum motivo, se desfazer deles. Tem até retratos de uma época em que não havia fotografias coloridas. O que levaria alguém a comprá-los? Rio e sigo em frente. Interrompo o passeio diante da barraca de uma mulher na casa de seus cinquenta anos. Semanas antes, minha mãe comprara um casaco de crochê feito por ela. A artesã também borda e pinta panos de prato. Segundo a senhora, faz isso desde a adolescência. Aprendera com a mãe que aprendera com a avó, isto é, um ofício transmitido ao longo de três gerações. Suas filhas são formadas e não querem saber disso, confessa à compradora sem ocultar a satisfação. Elas estudaram, resume orgulhosa; e emenda deixando claro amar o que faz, apesar da evidente falta de honestidade. De semblante fechado, simulando concentração, com as agulhas de crochê em mãos, habilidosamente tem pressa por concluir a peça sob encomenda. É difícil dizer o que mais lhe causa desgosto: encarar as pessoas na feira ou repetir, como máquina, o que tem feito ao longo de uma vida inteira. Não é incomum as pessoas enganarem a si mesmas: amo o que faço... Como pode ter certeza se nunca fizera outra coisa? Se tem algo que ninguém ou quase ninguém confessa é um fracasso ou erro. Então, se vivemos em um mundo de semideuses, por que há tanta injustiça e sofrimento? Se não fazemos outra coisa senão alimentar os nossos próprios egos, então faz sentido, sob esse ponto de vista, que haja tantos coaches de internet a enfatizarem que o que de fato importa na vida é nada além de nós mesmos. Ora, não há indivíduo mais limitado do que aquele que não consegue superar as paredes de seu próprio umbigo. O meu pensamento é interrompido pela chegada inesperada de um vira-lata caramelo, desses que abana o rabo quase sorrindo. Retribuo o sorriso e é hora de voltar para casa.

As luzes opacas das ruas históricas vão se acendendo como quem pede licença repletas de pudor. As luminárias retrô nos rementem a uma era em que a iluminação artificial pouco avançava sobre a escuridão. À noite, a cidade adquire ainda mais vida: mesas de restaurantes, bares, cafés e confeitarias se enchem de turistas a transbordarem pelas ruas. O burburinho ecoa na minha mente de forma incompreensível: seria alegria verdadeira ou somente euforia fugaz? Causa-me estranhamento essa felicidade exagerada, quase histérica, dos turistas. Sorrisos que mais se assemelham a gargalhadas numa disputa secreta por quem parece mais feliz, por quem consegue ofuscar com mais competência a mesa ao lado. Como se a discrição e o comedimento não fossem suficientes. Aliás, o autocontrole não desperta cobiça nem admiração, mas desconfiança. Não quero falar aqui de mesas silenciadas por celulares; essa discussão sobre a solidão acompanhada dos dias atuais me é por demais tediosa. O que me chama a atenção é essa insistência desesperada pela aparência. Um contentamento com a própria rotina tão falso quanto mentiroso. É um tipo de gente que não só leva a sério as redes sociais, mas faz delas uma extensão temerária de suas pobres vidas. Acreditam no poder da imagem, sem se darem conta de que tudo não passa de projeção. Um autoengano de quem sorri apenas por fora. Acreditam, ainda, na tese rasa de viver intensamente: quero ter histórias para contar aos meus netos, repetem uns aos outros. Porque afinal um jantar cafona sob o luar de uma cidade histórica e famosa rende curtidas; rende visualizações; rende inveja da suposta alegria e divertimento alheios. Mas quando se viaja ao interior de suas entranhas, o frio é polar. A constante nevasca íntima os acompanha, seja na praia ou no deserto. O congelamento interno os torna indiferentes – nem falo em relação ao ambiente que os cerca, o que seria exigir para além das possibilidades de quem tem tão pouco a oferecer. São estrangeiros de si mesmos. No fim das contas mal se suportam. Por isso a projeção lhes cai tão bem.

Na parte mais alta da cidade há uma igreja, e diferente do restante do lugar que se perde numa penumbra, o templo é bem iluminado, servindo como satélite artificial desse microcosmo. Chego em casa e encontro os meus pais rindo alto. Debochavam de um coitado, paciente da minha mãe, cujo melhor amigo de infância era o pé de mangueira da escola. Subo para o quarto e me olho no espelho; depois de tomar banho e escovar os dentes, deito-me na cama. Deixo a janela aberta permitindo a brisa fresca entrar e o sono vem como consequência. No dia seguinte, uma sexta-feira, vou para o colégio corrigir o simulado e tirar as dúvidas com os professores. No final da aula, marco um passeio de bicicleta com um amigo no domingo.

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