Cordélia olhava ao redor buscando encontrar um corpo composto de alma, apesar da aglomeração humana em sua casa. Seus olhos azuis e asiaticamente puxados, constataram que existiam dois grandes grupos naquele lugar: o primeiro era composto pelos forçados a estarem lá, contemplado pela maioria dos netos tecnológicos que interagiam mais com o celular do que com aqueles ao redor; o segundo, formado pelos filhos e agregados, possuíam os cumpridores de obrigação, que estavam lá somente para mostrar à sociedade que eram bons.
Todos que desejavam feliz aniversário, ouviam-na murmurar um ríspido:
— De feliz não há nada.
A senhora que estava completando noventa anos naquela pacata tarde de sexta-feira 13, se sentia furiosa e azarada, para não dizer angustiada. Furiosa, pois não pediu a presença de ninguém que não queria estar ali. Azarada, porque era sexta 13 e nada de bom acontece em um dia assim, mas ainda não havia vindo o sinal de azar. Angustiada, porque a única pessoa que ela queria ver não estava lá. Tratava-se de sua neta, Cordélia Anne, batizada em sua homenagem e filha de seu falecido filho mais novo. A jovem de 28 anos havia ido para o Canadá concluir o seu doutorado em psicologia, o que enchia a avó coruja de orgulho, mas, ao mesmo tempo, de saudade. Se ela estivesse presente, a atmosfera seria outra; provavelmente ácida. A senhora soltou uma baixa risada, lembrando-se que no último aniversário em que a neta esteve presente, ela disse que a tia, Victória, era uma grande rabugenta.
Cordélia realmente amava a todos os presentes, apesar de suas irritantes falhas, mas possuía um carinho, uma conexão — ou seja lá como denominam isso — com a sua homônima não presente. Não era algo que podia ser denominado como amor somente, pois em seu coração era um sentimento que ardia, iluminava e transformava. Quando ela segurou a neta nos braços pela primeira vez e a pequenina de olhos azuis encarou-a como se soubesse exatamente o que estava acontecendo e, possivelmente, sobre álgebra avançada, algo mudou no coração da mulher amarga que Cordélia havia se tornado por conta da morte marido. Nem mesmo com o falecido digníssimo tivera um amor à primeira vista, mas com aquela garotinha de 1 mês, de alguma maneira, havia acontecido. Após segurar nos braços todos os 10 netos, aquela parecia a primeira vez que ela sentiu uma conexão de alma; ela sentiu um amor tão grande em seu coração que não se fez necessária a presença de palavras.
A hora de cantar parabéns havia chegado, quebrando os devaneios de Cordélia. Todos estavam mais à vontade, pois sabiam que iam poder ir embora em breve com a barriga cheia de bolo de… morango? Com trinta demônios, quem havia trazido aquele bolo maldito? Aquilo era a gota d’água, o sinal de azar da sexta 13, contudo, antes que ela pudesse protestar a respeito, uma voz disse no meio da multidão familiar:
— Eu dou trinta segundos para que a pessoa que trouxe o bolo de morango se retire da casa. Vocês sabem que a vovó é alérgica a morango! Mas é claro que eu sabia disso, por isso trouxe um enorme bolo de creme para a nossa velha favorita!
Todos os familiares gritaram em uníssono “surpresa”, enquanto fitas coloridas voavam para todos os lados. Cordélia Anne ia na direção da aniversariante com um gigante bolo de creme que continha noventa velas. A senhora, que fora enganada o tempo inteiro por caras feias e pensamentos de saudade, acabara de ser surpreendida por toda a família. Por isso, foi impossível conter as lágrimas.
— Você não é de chorar. — Disse a neta se aproximando, após deixar o bolo na mesa, e abraçando a avó.
— Não estou chorando. Foi o Ted que jogou fita no meu olho. — Respondeu a senhora, retribuindo o abraço.
— Vó, o Ted é um cachorro!
— Ele é muito sagaz.
As duas permaneceram abraçadas por mais alguns segundos, mas antes de se separarem para que a neta contasse à avó cada minúcia de seu ultra plano familiar, a senhora disse chorosamente:
— Pensei que você não viria…
Soltando a avó e encarando-a com muito afeto, sua homônima respondeu:
— Eu sempre vou vir por você.