Estávamos na rua, minha mãe nem sonhava que eu estaria na rua naquela hora da noite. Eram duas da manhã e eu estaria encrencada se ela descobrisse, mas valia o risco.
Era uma missão de vida ou morte, de longe a maior empreitada: sequestrar meu amigo e levá-lo para um rolê.
Sim, sequestrar ele e levá-lo para um rolê.
Andava pela noite me esgueirando feito uma ninja. Eu sabia que não tinha ninguém atrás de mim, mas gostava de achar que estava em perigo, era mais engraçado assim. Cheguei à casa do dito cujo, vi todas as luzes apagadas. Será que ele dormiu antes de lembrar da fuga? O que, a propósito, era a cara dele: bichinho não aguentava ficar acordado depois das 11.
— Ow! — tacquei uma pedrinha que já estava no bolso na janela do cara. Foi instantâneo: uma luzinha se acendeu e eu vi uma criatura toda pimpona saindo pela janela do quarto e pulando o portãozinho para não ter que abrir e fazer barulho.
— E aí? Acha que ninguém te viu sair? — falei, dando o braço para ele, para caminharmos juntos.
— Se minha vó desconfiar, eu tô morto, cara. E, caralho, por que eu aceitei sair contigo mesmo?
— Porque você disse que queria liberdade, caralho, e aqui estamos, na rua, às duas da manhã, escutando latido de cachorro e briga de bar na rua. Uhul!
Ele riu da minha ironia, sempre com o sorriso meio travado, não sabia se era por conta do vento frio ou dele estar morrendo de medo.
— Pra onde a gente vai? — ele perguntou, curioso, pois eu o estava levando para o centro da cidade, que, a propósito, não estava tão vazio.
— Sei lá — comecei a rir.
— Sério? Tu fez eu tomar mais de cinco copos cheios de café só para ficar acordado e nem sabe para onde estamos indo?
— Exatamente, meu caro Watson — entrelacei nossas mãos por algum motivo. Eu gostava de andar de mãos dadas com ele e nem sabia o porquê. — Acho que tem um trailer que fica aberto na madruga. Vamos pedir um dogão e comer na praça enquanto escutamos a linda sinfonia de mendigos cantando.
— Que horror! — ele sorriu de um jeito mais liberto enquanto íamos ao trailer do Paulão, um cara gente fina que abria de madrugada.
— Tu trouxe grana? — perguntei.
— Eu não, fodeu...
— Relaxa, eu trouxe para nós dois — encostei meu ombro no dele como um movimento de incentivo.
Chegamos ao trailer e um cara gordinho e gente fina nos atendeu. Não íamos ficar no trailer porque queríamos andar; só pedimos o dogão e umas quatro cervejas, duas para cada. Tudo ficou pronto e saímos andando com as sacolinhas, comendo e bebendo.
— Você sabe que eu não vou beber, né? — ele me olhou, limpando a mostarda do lábio inferior. — Tomei remédio, pô.
— Beleza, eu tomo as quatro cervejas então.
— Você não vai nem lamentar por eu não conseguir beber? Que safada! — ele riu, dando um peteleco no meu nariz.
Andávamos sempre juntos, quase grudados. Quando terminamos de comer, eu já logo engatei nas cervejas. Só não esperava que quatro cervejas me deixariam meio bobona. Comecei a cantar pelas ruas músicas aleatórias, como "Te Levo Comigo", do Restart. E sabe o curioso? Eu odiava Restart.
Ele apenas ria da minha bobeira, achava graça no meu humor terrível, começava a se soltar e a rir mais alto, sem medo, conversava e criava teorias da conspiração ao meu lado enquanto andávamos por aí, sem destino, observávamos a lua, as estrelas meio ocultas por conta das luzes da cidade, e eu comecei a reparar em algo que já havia notado há anos: o quanto eu amava aquele rapaz ao meu lado. Podia ser efeito da Brahma? Talvez, mas provavelmente não.
Depois de longa caminhada e cantoria desnecessária, decidimos nos sentar em frente a uma fonte que havia em uma velha praça. Observamos a água sair, o vento gelado e confortável.
Estávamos encrencados. Eu sabia que, a qualquer momento, minha mãe poderia ter um lapso de doideira e descobrir que eu estava fora; a mesma coisa valia para a avó dele. Mas parecia que isso só tornava tudo melhor.
— É a primeira vez que sinto isso, esse lance de liberdade... — ele desabafou, colocando minha cabeça no ombro dele. — Valeu por me meter nessa furada.
— Não tem de quê, eu que agradeço. Você sempre foi... a melhor pessoa do mundo, sabia? — olhei para ele mais de perto. A barba dele estava crescendo, notava pequenas expressões no rosto, uma olheira bem leve, os mesmos olhos castanhos que pareciam inexpressivos para o mundo, mas tão expressivos para mim...
— Eu te amo — disse, meio sonolenta, não com sono, mas em um estado de transe que parecia sono, doideira total.
Ele me olhou de forma surpresa, mas, ao mesmo tempo, não estava chocado a ponto de sair correndo. Parecia saber, e parecia sentir o mesmo. Não disse "eu também", fez algo melhor: inclinou-se e beijou minha testa com ternura, me abraçando de lado, fitando a fonte com um sorriso bobo.
Eu estava feliz, não me importava com o tempo que estávamos fora, ou se eu levaria uma surra por ter saído de casa sem nem levar um celular, ou se a avó dele tacaria fogo na coleção de Star Wars dele. Tudo parecia leviano; nada existia além de nós.
Quando eu olhava para ele...
Sei que estaríamos encrencados naquela noite, mas quando o ouço, só aumenta a certeza.
Quero que ele me dê seu amor, que ele me mostre o seu amor.
De fato, estávamos encrencados, mas quem ligava?
Em um impulso leve, seguro seu rosto com a ponta dos dedos gelados e o trago para mim em um beijo fraternal, o qual ele retribuiu com certa timidez, mas não menos intensamente que eu.
— Sua maluca que me mete em problemas — ele sussurrou com um sorriso bobalegre.
— Seu medroso magricela e com cara de fuinha — retruquei, devolvendo o sorriso.
— Vamos voltar?
Concordei com a cabeça, e nos levantamos, descartamos as latinhas em uma lixeira e andamos até a casa dele. Ele entrou com a mesma furtividade com a qual havia saído, sem antes me dar um último abraço e um beijo na bochecha e agradecer tão tolamente pela oportunidade. Eu apenas sorria ao vê-lo entrar pela janela do próprio quarto e simular um sono leve.
Voltei para casa e não fui descoberta, não naquela noite. Levei um castigo de um mês quando mamãe descobriu.
Mas valeu a pena...
Valeu a pena estar em encrenca em dobro naquela noite.
E de ter sentimentos em dobro também.