Meus pais começaram a levantar os móveis e fazer as malas. Tínhamos que sair dali. A pior enchente registrada na cidade chegou ao nosso bairro. Com meus parentes reunidos em uma casa só, desesperados e angustiados orando continuamente. Horas e horas na frente da tv me tornaram uma expectadora da situação, o cheiro de velas acendidas e ter que fingir não entender o ocorrido era parte do meu cargo onde eu não podia deixar meus pais sobrecarregados.
Pela janela a vista era como pedras exibindo-se na superfície, 85% do território submerso, multidões atacando o supermercado MAX, todos vidrados na pequena TV esperando a defesa civil para verificar quais casas, pessoas e carros foram levados, como uma rifa onde o perdedor é sorteado.
Quando finalmente podíamos ir ao portão, não havia nada além dos destroços de um momento caótico que afogou a todos. Silêncio. Era um dia de sol, meu aniversário, ganhei um colar e minha irmã uma pulseira.
Seguindo de carro pela cidade o silêncio tornou-se ensurdecedor. Moveis em lugares que moveis não devem ficar, carros cheios da água e famílias chorando por algo que já tinha sido um lar. As águas abaixaram, mas as cicatrizes são sentidas, eu sei onde fica a mancha deixada pela água na parede da sala, mesmo que tenham pintado por cima.
Em 2018 reportagens mostravam famílias que ainda sofriam, o roubo ao mercado MAX se tornou uma das maiores vergonhas da cidade. Toda vez que chove e o nível do rio ameaça subir, os calafrios rondam o corpo de cada morador e e todos pensam a mesma coisa. 2008.