Na impositiva soberania da legalidade maculada, sob suas ordens, a da lei, desvirtuada e permissível aos interesses dos golpistas, estranhamente jornais apresentavam lacunas em branco, ou despropositadas matérias como receitas de culinárias em local de destaque. Posteriormente soube serem protestos sutis contra a inclemente censura existente, tolhendo redações de jornais quando as notícias estavam prontas para impressão. Em cada empresa jornalística, impressa, televisiva e radiofônica, havia enviados com a finalidade exclusiva de fazer uma varredura, um pente-fino, entre o que podia ou não ser publicado, eram tempos de ditadura.
O clima disseminava-se a todos os que conseguiam entender o que se passava. O falar silenciado e as palavras controladas, as rádios não tocavam com freqüência a nossa música, invadida por execuções em inglês, parecendo que não tínhamos mais nenhuma tradição musical. As poucas canções, ou eram inocentes a toda prova, ou traziam mensagens cifradas, fazendo com que compositores tivessem a manobra do uso excessivo de metáforas nem sempre inteligíveis aos ouvintes. Peças e filmes abortados, artistas perseguidos, autoexílios promovidos pelo ambiente asfixiante. As conversas em lugares públicos banalizavam somente as proezas futebolísticas, paixão de nossa gente, culminando com o primeiro título da Copa, em 1970.
Havia um cercear até, e principalmente, nas escolas, sobre determinados assuntos. Como estudar, em história, a então União Soviética, de forma sucinta, sem mencionar a sua economia, por exemplo. A bíblia passou a ser o estudo malfadado de Educação Moral e Cívica, parecendo religião aplicada. Incultiam-nos maravilhas verde amarelas, o País do futuro, da rodovia transamazônica, estrada que uniria o norte o nordeste brasileiros, em disciplinas desprovidas de senso crítico, como mantras da subserviência direcionada.
Autores nacionais preteridos, pérolas como Graciliano Ramos com sua escrita esmerada, não apenas na forma, mas no retratar as mazelas sociais de nosso povo, ele próprio vítima das atrocidades do Estado Novo getulista.
Os veículos ostentavam adesivos tendo a bandeira como protagonista, Brasil, Ame ou Deixe-o. Nenhum comentário que transcendesse aquelas páginas, restritas àquele universo, passavam incòlumes. Tomavam não apenas a direção do País, mas os das mentes das gerações de jovens estudantes, o que dizer, então, dos demais setores da sociedade ?
Um texto escrito era lido, relido várias vezes, refletido, autocensurado, nada que transpirasse os sussurros de prisões hediondas, infundadas, levianas. Vivia-se espremido, desconfiado, lembrando a santa Inquisição da idade média, onde todos poderiam, a qualquer momento, serem considerados bruxos e denunciados, substituindo fogueiras pelos porões das torturas.
Algumas palavras relegadas ao ostracismo, sequer eram mencionadas, por malditas e execradas, como a greve, tida como anomalia social passiva de subversão da ordem e dos interesses nacionais, penalizada na Lei de Segurança. Comumente as mídias, televisivas e faladas, em horário nobre, anunciavam pronunciamentos nas vozes pastosas dos verde olivas em seus uniformes. 0s estudantes cumpriam as datas cívicas em desfiles obrigatórios, quando não assistiam as paradas militares a ostentarem orgulhosos seu poderio bélico.
Assim seguia nosso País, sob baionetas e fuzis, num céu de brigadeiro, ufanismos a todos os pulmões, sesquicentenário de nossa independência política, mergulhados na mais ferrenha e estúpida das aberrações contra a dignidade humana, a supressão da liberdade. Atrofiavam gerações, silenciadas, bestializadas nos bancos escolares, sob o bê a ba das censuras e das mentiras convincentes ao Poder. Realidade fabricada, manietada a livre imprensa, artistas, operários, marias, josés, putas, todos viviam sob o guante da força bruta instalada.
O sistema fechava-se, anulavam garantias individuais com o pretexto de não facilitarem a vida dos envolvidos políticos contrários ao Golpe, eufemismo denominado por eles de Revolução. Governo eleito deposto, leis de exceção transfigurando a Constituição adequada às necessidades do terror estabelecido.
Eleições apenas as proporcionais, abolia-se, incontinenti, a livre escolha para a Presidência da República, tendo os Estados governantes indicados pela Junta Militar, ora cúpula de governo. Mesmo na escolha para o parlamento, criou-se, depois de venerável derrota, a esdrúxula figura do Senador Biônico, escolhido pelo Executivo General. Banqueiros e inescrupulosos empresários, acolitados por políticos fisiológicos e oportunistas, comensais da rapinagem nacional, legitimando o massacre, atentando contra os direitos humanos.
Nos ares pesados, sob constantes ameaças à liberdade civil, pouco se falava, menos se escrevia, ruas, casas, teatros, bares e escolas, o medo nos dominava e enceguecia. Se alguém soube demais e ousou dizer, ninguém mais sabia aonde ele estava, e tudo era medonho, tristonho, militar.
Livros duplas capas, ocultos e suspeitos em leituras e segredos. Terríveis hipocrisias, funestos tempos de ira, a nação esvaía-se e esbaldava falsa moral, orgias e saques, permissões contrárias ao interesse pátrio, avanço desmedido do capital internacional e das remessas de lucros a minguarem nossas divisas, tudo em omissões, e comissões, consentidas. Falso milagre econômico a nos dilapidar até os dias presentes em juros abomináveis.
Sob o signo da guerra fria, o conflito entre duas potências, conhecemos o terror da ditadura, não apenas nós, mas também nossos irmãos vizinhos, cicatrizes relembradas para que não se intentem, nunca mais, contra o mais precioso direito da criatura humana, seu livre arbítrio e a liberdade de expressão.
Sejam sepultadas as práticas irracionais e tirânicas de todas as épocas, em qualquer bandeira ou ideologia em que se refugiem; e que, sob o argumento de estrito cumprimento das ordens, justifiquem atrocidades, negando a justiça, alheios à paz, aniquilem vidas...