Auroras lembradas...
EDILOY A C
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 31/05/17 17:50
Gênero(s): Cotidiano
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 6min a 8min
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Palavras: 1047
[Texto Divulgado] "Esperança do amanhecer." Todos nós esperamos - com muita fé - que o amanhecer chegará. Mas o que fazer enquanto isso?
Livre para todos os públicos
Capítulo Único Auroras lembradas...

Ao se olhar no espelho, sua expressão de nostalgia, uma certa decepção com o passar do tempo, tão inclemente, assinalando na matéria o envelhecimento inevitável. Possivelmente em sua tela de reminiscências buscava a jovem linda, impetuosa, exigente com seu guarda roupas, em seu trajar aprumado, tão diferente da dona de casa em panos simples; exigia da mãe os melhores sapatos e trajes, não importando as condições, sempre obtendo o que desejava, como sempre dizia, entre arrependida e saudosa...

De minha avó materna, mulher da lida com a criação de animais e plantações, proprietária de seu sítio, herança do esposo falecido, narrava de que era uma mulher clara, alta, destemida, e que teria perecido ainda jovem, aos quarenta e cinco anos, vitimada por um derrame cerebral, após a labuta em um dia muito ensolarado em sua propriedade. Naquele tempo, o socorro veio através de um caminhão que a transportou, corpo ainda quente, na carroceria, até o hospital mais próximo, sendo infrutíferas as tentativas de reanimá-la. Minha família, da parte materna, curiosamente confundiu-se com a paterna. Minha avó, ainda jovem e já viúva (casara-se forçada pela conveniência dos pais, aos quatorze anos, e falecido o marido pouco tempo depois, deixando-a com três filhos) conheceu o meu bisavô paterno,imigrante, italiano de Gênova, engenheiro agrimensor, separado de minha bisavó, também italiana. O coração do genovês encantou-se pela jovem viúva e derivou-se novo ramo familiar, com quatro filhos homens da união. Homem culto, fez fortuna e deixou extensões em terras, razões de litígios posteriores entre irmãos das duas uniões. Acontece que minha mãe acabou ficando como tia do meu pai por consideração. Jamais ela poderia imaginar que aquele rapazote estivesse predestinado a ser seu par pela vida inteira, entre tapas e beijos.

Testemunhei muitas de suas lembranças juvenis, a ironia do destino que previu em uma consulta com um cartomante asiático, a lhe render risos de incredulidade, vaticinando que sofreria muito, e que teria, em contrapartida, três filhos que seriam a razão de seu lar... Teve-nos, e também a sina tempestuosa prevista em um enlace conflituoso, com certa responsabilidade dela, ciumenta, possessiva, e não dada a contemporizações. Gênio forte, ariana, não encontrou muita paz no consórcio com sagitário, leviano e mulherengo, além de uma década mais jovem; amaram-se a seu modo, e permaneceram juntos, até a despedida final. Assim estava escrito, no dizer do japonês ao ler as cartas, assim foi...

Com ela aprendi muitas coisas, como a gostar de ouvir “causos” ao lembrar-se das histórias, ou seriam estórias?, contadas por seu avô Fidélis, matuto caboclo sertanejo do interior paulista, que lhe contava coisas de arrepiar os pelos de medo, sob a lua cheia e a fraca luminosidade de lamparinas a querosene, em narrações saborosas, repassando os temores vivenciados de sua infância. Uma delas, a de um homem que teria levado a amante para viver dentro da própria casa, convivendo junto à esposa, sem se importar com o incômodo causado à companheira . Passados alguns anos, o bígamo morreu e aparecia à mulher ultrajada num corpo de um bode com uma sineta no pescoço, fazendo barulho, e xingando-a por não tê-lo impedido do mal feito, o que teria contribuído para sua pena eterna... E, ao sabor da imaginação, as façanhas ganhavam vida e cores revivendo personagens de nosso folclore, como as estripulias do negrinho saci pererê amarrando as crinas dos cavalos, o lobisomem uivando nas madrugadas, a mula sem cabeça... Assim se perpetuava a tradição, no contar de geração a geração. Outro fato que parecia tenebroso é que nas épocas narradas não se faziam os enterros em caixões propriamente; enrolava-se o cadáver em panos, e era transportado em rede, sustentada por um pau onde se prendia as extremidades, sob os ombros de dois carregadores, até à cova; no trajeto, anunciava-se, em tons de lamúrias: As Almas ! As Almas! rendendo o devido respeito dos que assistiam de passagem o pequeno séquito... A crendice dela talvez viesse desse passado de suas vivências. Em dias de trovoadas sentia-se inquieta, temerosa, acendendo vela para Santa Bárbara, protetora dos raios e trovões. Em sua meninice sertaneja os brinquedos eram confeccionados com o que se tinha a mão, como espigas de milho, bonecas com enchimento de trapos, bolas de meias velhas, carrinhos improvisados de latas usadas; no mais imperava o imaginário do qual as mentes infantis são férteis. Talvez essa herança a alimentava ocupando-se de mim e de meu irmão, sempre procurando nos fazer mimos, mandando fazer carrinhos de madeiras que enchia com sacos pequenos de areia, costurados em sua máquina de costura privada. E também nos acompanhava aos ermos para nos assistir no levantamento de pipas, encomendadas a meninos mais crescidos. Naqueles momentos ela era antes uma companheira de brincadeiras do que exatamente uma adulta na figura materna. Minha irmã passava a maior parte do tempo em outra cidade, na casa de nossos avós paternos, para estudar.

Ficou-me particularmente marcado um pesadelo que a acometera, ao acordar, aos gritos, dizendo ver um homem enforcado pendurado na soleira da porta do quarto...

Em sua incredulidade, ao ouvir-me falar de minhas convicções espíritas, de vida além da matéria, já adulto, fazia uma expressão de descrédito, respondendo num desalento: - Será ? Na velhice entregou-se a um estado mórbido e depressivo, não vendo mais interesse em continuar vivendo, eu e meus irmãos, já casados, ficaram ela e meu pai. Permanecia o dia todo só, a sua única irmã havia mudado para o interior, então se estabelecia apenas o silêncio dela com ela mesma, sem grandes motivações diárias. Com o tempo sequer assistia a televisão, desinteressada de tudo. Em uma de minhas visitas, ao vê-la distante e pessimista, insisti para que tentasse ver a vida de um prisma mais otimista, afinal estávamos todos bem, ela inclusive. Em seu desalento permanente, respondeu-me, com uma pergunta: por que Deus não a levava ? Foi-se dias depois, em um noite quente de agosto, meu pai estava na sala, assistindo tv, quando a encontrou agonizante no quarto. Cheguei a tempo de vê-la em seus estertores finais...Deu entrada no hospital para os procedimentos de praxe, já falecida.

No íntimo minha mãe manteve-se a criança saudosa de seu avô que lhe contava os causos, encerrada em si mesma, num sofrimento pessoal misterioso, de raras alegrias...Dela herdei a introspecção que tento combater por abeirar-se dos incômodos abismos de cada um de nós...

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Notas de Rodapé

PUBLICADO NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO-2017, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.

Apreciadores (3)
Comentários (2)
Postado 27/11/17 13:37

As lembranças e suas capacidades de nos transportar totalmente ao passado; nos fazendo viver, momentaneamente, um pequeno instante, seja nosso ou de outra pessoa. Gostei muito da forma que você passou isso durante toda a obra.

Um relacionamente entre uma ariana e um sagitariano, pelos deuses! KKKKKKKKKK Ri bastante ao imaginar as situações que ambos viveram, justamente por serem destes signos.

Parabéns pela obra!

Postado 27/06/18 22:51

É o primeiro texto seu que leio! E como gostei de seu jeitinho na escrita! Não me admita ter publicado tantos contos em tantos lugares, é uma honra te ter aqui, ler sua história, estar na pele, aprender palavras não muito usuais, lembrar-me do sofrimento numa época em que depressão era uma palavra vastamente desconhecida... Sua obra é maravilhosa. Meus parabéns! Obrigada por postá-la aqui na AC!