Em frente ao espelho, ela passa maquiagem sobre a marca roxa presente em sua face; é preciso escondê-la, pois, como ouviu, não combina com os olhos verdes e os dentes brancos. Seu pai a vigia atentamente para certifica-se que ela fará como lhe pediu, sem precisar de violência, novamente, para ser escutado.
A cada camada de pó aplicada, a mancha roxa diminui de intensidade e se aproxima da cor de sua pele. Observa a transformação em seu rosto e se indaga se a mancha roxa não se sente diminuída e pressionada a ser o que não é simplesmente por estar num local indesejado. De qualquer forma, é como ela se sente.
Quando criança, ela foi instruída a ser uma mulher cheia de dotes, bons modos e sensualidade. Seus pais a diziam que o correto era só, e tão somente só, ser uma moça prendada, capaz de agradar os demais por ter boas notas, dizer obrigado após a refeição e agradar os olhares de todos com suas curvas e brilho no olhar.
Por muito tempo, ela, assim, acreditou e o fez. Na escola, suas amigas e ela ficavam sentadas com as colunas eretas e pernas grudadas, enquanto lanchavam sanduiches naturais. Pouco conversavam, pois não era necessário para serem notadas.
No entanto, ela, como qualquer outra pessoa, foi crescendo e tendo acesso a informações e a novas possibilidades de “viver corretamente”. Na adolescência, começou a entender que sorrir era o mais fundamental, e não se desenvolver para agradar um seleto grupo de pessoas.
Assistia filmes de aventura e se atiçava em entrar em matas. Olhava pela janela do carro e se impressionava com as manobras das motocicletas. Eram tantas possibilidades e ela precisava as viver. Não queria passar o resto dos seus dias em aulas de etiquetas e em festas que só seus pais se interessavam.
E foi nessa fase em que ela decidiu sorrir por conta própria. Saiu de casa escondida e foi para a maior lomba da cidade; sentou-se num skate e se soltou; ganhou velocidade e asas para voar; sentiu-se livre pela primeira vez e sorriu; um descuido que a faz tombar e ter um dente perdido.
Chegou em casa toda ralada e com o dente na mão. Ela tremia, mas não era por medo de ter fugido, mas sim pela mistura de sensações que a liberdade lhe trouxe: êxtase e dor. Viu que a vida possui dois lados que andam lado a lado e isso era incrível.
Por sua vez, seus pais assim não pensaram. A única coisa que conseguiram ver ao olhar sua filha foi vários anos de preparo da herdeira indo para o ralo. Eles tinha a ensinado a ser obediente, temente a suas ordens, para que assim seu futuro fosse garantido.
Nesse dia, ela descobriu que a dor de ser manipulada não era a pior que tinha. Aos gritos, seu pai repetia ininterruptamente: “sua malcriada, não me desobedeça”, enquanto lhe dava fortes cintadas nas pernas, mesmo que machucadas pelo tombo.
Assim, ela aprendeu o quanto a vida pode ser maravilhosa em fazer o que se quer, mas como é custosa e desagrada terceiros. Por alguns dias, ela contou uma história mentirosa para explicar porque sentia dor ao caminhar. Por alguns anos, ela se conteve, fez o jogo de seus pais e viveu sem grandes dores físicas.
Assim foi até aos vinte anos de idade. Nesse meio tempo, não se machucou mais em nenhuma aventura e tampouco sofreu agressões por desobediência: foi uma filha exemplar! No entanto, sua alma estava calejada; não era assim que ela queria viver. Pensou em fugir novamente em várias oportunidades, mas as lembranças das noites mal dormidas por não conseguir apoiar as pernas e das exaustivas visitas ao dentista para refazer o sorriso falso não a permitiram.
Mas nem tudo foi tragédia. Em um dos almoços da turma da universidade, conheceu um rapaz que vinha do estrangeiro para cursar a graduação. Ele era lindo, inteligente e cativante. E mais, ele olhava para ela como se quisesse lhe dizer algo. E de fato queria; as trocas de olhares se transformaram em conversas, que se transformaram em paixão.
Nunca tiveram um momento mais íntimo, pois ela estava estritamente proibida por seus pais de se aproximar de rapazes, mas sempre conversavam pelo celular. Criavam aventuras em suas mentes, em que locais mágicos surgiam e eram perfeitos para se deliciarem juntos. A ligação entre eles é a qual lhe deu forças para aguentar o peso de seu fatídico destino.
E foi, também, o motivo para ela fugir novamente. No primeiro dia de férias das aulas, seu pai lhe informou que ela se casaria com o filho de um amigo seu nos próximos quarenta dias. O seu mundo parou e ela logo caiu, novamente, na realidade, onde a magia com seu amado não existia. Era terrível, pois ela estaria com alguém que seu pai aprovava e, certamente, seria como ele.
Precisava fugir e assim o fez. Arrumou suas malas e partiu com seu companheiro sem deixar uma carta se quer. Ficaram por um mês vivendo intensamente e transformando seus destinos. Trocaram de hotéis, prepararam refeições, assistiram pores do sol, se amaram ao som das ondas.
Foi um mês de liberdade plena, em que tudo que suportou fez valer a pena. Sentia-se viva, amada e relevante. Sua palavra era tão importante quanto a de qualquer outro e nada era mais fácil para ela por ser filha de quem era.
A vida estava como sempre desejou, a ponto de ignorar a possibilidade de voltar a viver acorrentada num lugar que não lhe pertencia. Mas a vida lhe pregou uma peça. Após um mês de procura, seu pai descobriu onde ela estava e mandou seus capangas trazê-la de volta e apagar qualquer tentação que lhe fizesse fugir novamente. E assim ocorreu.
Hoje ela está de luto, retocando suas marcas e vestida de noiva. Seu casamento acontecerá em poucas horas e marcará a união de duas grandes marcas na indústria aeronáutica. A cada camada de pó, ela se sente como a mancha: uma intrusa numa realidade derrotada. Orgulha-se por esse sentimento, por ter lutado por seus interesses e amores, mas sabe que para os olhos de muitos ela não passa de uma mera pequena fugitiva.