"Não ando bem de saúde...", disse Marco.
"Ué, pois para de beber, porra!", disse Cleiton.
"Impossível", respondeu, enchendo um canecão de cerveja. Sua mão direita tremia, seu olho esquerdo também tremia, e seu fígado doía. Marco tinha tão somente vinte anos e já a essa altura estava em vias de invalidez.
Os dois estavam sentados numa mesa dum boteco num mercadão da cidade.
"Sou um merda", disse Marco, "vivo tentando me consolar lendo o capítulo XX dos ensaios de Montaigne..."_
"Que é que tem esse capítulo? Quem é Montém?!"
"Olha, Cleiton. É o seguinte: não tenho muito tempo de vida."
"Você diz isso sempre!"
"Não, dessa vez é sério... Parece que estou morrendo, positivamente..."
" 'Positivamente'... Larga de ser viado, porra! Que morrendo o quê brôu! Cê se alimenta bem, come muita salada, só come pão integral, bate punheta todo dia..."
"Quê que tem a ver a punheta?"
"Ué. Não era tu mesmo que esses dias tava me falando dos benefícios do orgasmo pro sistema imunológico e tudo o mais?"
"Sim, mas... Não... Quer dizer; (Marco deu um longo gole na cerveja e arrotou estridentemente) olha, tanto faz! Isso mesmo: tanto faz! Meu avô fumava à beça e bebia cachaça todo dia: viveu pralém dos oitenta; viveu bem, e forte. Agora, pega um sujeito que se nutre de acordo com , que pratica exercícios físicos regularmente, etc. etc. Um sujeito desses vive na fila do SUS ou então é um neurótico fodido que sempre acha que está prestes a morrer..."
"Como você."
"Isso mesmo: como eu! Quer saber? Vou voltar a fumar!"
"Ah,vai?"
"Não, não vou!", bradou Marco. "Não vou, de modo algum! Não posso! Olhe pra mim, Cleiton! Preciso me conservar! Não existe nenhum outro Marco como eu na face da Terra! Eu preciso brilhar, resplandecer, fazer jus à minha existência, entende? A vida é um tesouro: não posso encurtá-la deliberadamente! ... Não! Deus não permite!"
"Desde quando acredita em Deus?"
"Desde agora!'
"Desde agora!"
"Desde agora! Desde agora, seu filho da puta! Tenho medo da morte, tenho medo da morte! Mais cerveja, garçom! Puta merda! Lá se vai meu dinheiro!"
Com efeito, Marco gastou todo o seu dinheiro...
"É preciso haver algo ALÉM dessa vida", disse Marco, "Sim, é preciso! Não é possível, não é possível que tudo seja assim, tão fatal, tão efêmero! Se tudo é tão aleatório, qual o valor da vida humana? ... Esses dias eu vagava no YouTube e assisti a um vídeo da Taylor Swift... Mais de oitenta milhões de visualizações... Uma superprodução... Vários efeitos especiais... Mulheres atirando com bazucas e enchendo homens de porrada... Depois, entrei no Facebook, e vi um vídeo de dois irmãos cavando a própria cova e em seguida sendo fuzilados; um tribunal do crime . Está me acompanhando? Nada disso faz sentido. É tudo absurdo. "
"Não, não entendo, não estou acompanhando..." disse Cleiton. "Que é que tem a Taylor Swift com Deus e o sentido da vida?", Cleiton acendeu um cigarro. Imediatamente, Marco pediu um. "Tem certeza?"
"Se tenho certeza? ... Não, jamais, jamais! Esqueça. Não quero cigarro... Vamos, me pague uma cerveja."
"A última..."
"Em que anos nós estamos?"
"Dois mil e dezessete."
"Ora... Dois mil e dezessete! Tem noção do que é isso? Tudo perdeu o valor... É tudo artificial... O ser humano deixou de pensar pra comer e twittar... Passe pra cá a cerveja! ... Os neanderthais é que sabiam viver! A gente se acha espertinho... A gente pensa que vai salvar o mundo compartilhando coisinhas no Facebook... Um cu fedorento, é isso é que é o mundo, e não há ninguém que possa limpá-lo, exceto o tempo, que o tempo é que limpa tudo..."
"Escuta, Marco, vou ter que partir."_
"Ah é?
"É. Encontrar com a Bia."
"Oh. Vá lá."_
"Vê se trata da sua cabeça!"
"Como é?!"
"Vê se trata da sua cabeça!"
"Vai tomar no cu! Me dá um trocado aí!... Pra'eu comprar só mais uma breja..."
Gleidson atirou na mesa dez reais.
"Valeu, filho da puta!", bradou Marco.
Marcou pediu mais uma cerveja. E a cada gole esquecia-se mais e mais de sua finitude.
Aos vinte anos pensava que iria morrer, mas ainda haveria décadas e décadas de dores pela frente...