Desde quando acredita em Deus?
V
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 27/11/17 16:28
Editado: 27/11/17 16:40
Gênero(s): Cotidiano
Avaliação: 9.72
Tempo de Leitura: 4min a 5min
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Palavras: 695
Não recomendado para menores de catorze anos
Capítulo Único Desde quando acredita em Deus?

"Não ando bem de saúde...", disse Marco.

"Ué, pois para de beber, porra!", disse Cleiton.

"Impossível", respondeu, enchendo um canecão de cerveja. Sua mão direita tremia, seu olho esquerdo também tremia, e seu fígado doía. Marco tinha tão somente vinte anos e já a essa altura estava em vias de invalidez.

Os dois estavam sentados numa mesa dum boteco num mercadão da cidade.

"Sou um merda", disse Marco, "vivo tentando me consolar lendo o capítulo XX dos ensaios de Montaigne..."_

"Que é que tem esse capítulo? Quem é Montém?!"

"Olha, Cleiton. É o seguinte: não tenho muito tempo de vida."

"Você diz isso sempre!"

"Não, dessa vez é sério... Parece que estou morrendo, positivamente..."

" 'Positivamente'... Larga de ser viado, porra! Que morrendo o quê brôu! Cê se alimenta bem, come muita salada, só come pão integral, bate punheta todo dia..."

"Quê que tem a ver a punheta?"

"Ué. Não era tu mesmo que esses dias tava me falando dos benefícios do orgasmo pro sistema imunológico e tudo o mais?"

"Sim, mas... Não... Quer dizer; (Marco deu um longo gole na cerveja e arrotou estridentemente) olha, tanto faz! Isso mesmo: tanto faz! Meu avô fumava à beça e bebia cachaça todo dia: viveu pralém dos oitenta; viveu bem, e forte. Agora, pega um sujeito que se nutre de acordo com , que pratica exercícios físicos regularmente, etc. etc. Um sujeito desses vive na fila do SUS ou então é um neurótico fodido que sempre acha que está prestes a morrer..."

"Como você."

"Isso mesmo: como eu! Quer saber? Vou voltar a fumar!"

"Ah,vai?"

"Não, não vou!", bradou Marco. "Não vou, de modo algum! Não posso! Olhe pra mim, Cleiton! Preciso me conservar! Não existe nenhum outro Marco como eu na face da Terra! Eu preciso brilhar, resplandecer, fazer jus à minha existência, entende? A vida é um tesouro: não posso encurtá-la deliberadamente! ... Não! Deus não permite!"

"Desde quando acredita em Deus?"

"Desde agora!'

"Desde agora!"

"Desde agora! Desde agora, seu filho da puta! Tenho medo da morte, tenho medo da morte! Mais cerveja, garçom! Puta merda! Lá se vai meu dinheiro!"

Com efeito, Marco gastou todo o seu dinheiro...

"É preciso haver algo ALÉM dessa vida", disse Marco, "Sim, é preciso! Não é possível, não é possível que tudo seja assim, tão fatal, tão efêmero! Se tudo é tão aleatório, qual o valor da vida humana? ... Esses dias eu vagava no YouTube e assisti a um vídeo da Taylor Swift... Mais de oitenta milhões de visualizações... Uma superprodução... Vários efeitos especiais... Mulheres atirando com bazucas e enchendo homens de porrada... Depois, entrei no Facebook, e vi um vídeo de dois irmãos cavando a própria cova e em seguida sendo fuzilados; um tribunal do crime . Está me acompanhando? Nada disso faz sentido. É tudo absurdo. "

"Não, não entendo, não estou acompanhando..." disse Cleiton. "Que é que tem a Taylor Swift com Deus e o sentido da vida?", Cleiton acendeu um cigarro. Imediatamente, Marco pediu um. "Tem certeza?"

"Se tenho certeza? ... Não, jamais, jamais! Esqueça. Não quero cigarro... Vamos, me pague uma cerveja."

"A última..."

"Em que anos nós estamos?"

"Dois mil e dezessete."

"Ora... Dois mil e dezessete! Tem noção do que é isso? Tudo perdeu o valor... É tudo artificial... O ser humano deixou de pensar pra comer e twittar... Passe pra cá a cerveja! ... Os neanderthais é que sabiam viver! A gente se acha espertinho... A gente pensa que vai salvar o mundo compartilhando coisinhas no Facebook... Um cu fedorento, é isso é que é o mundo, e não há ninguém que possa limpá-lo, exceto o tempo, que o tempo é que limpa tudo..."

"Escuta, Marco, vou ter que partir."_

"Ah é?

"É. Encontrar com a Bia."

"Oh. Vá lá."_

"Vê se trata da sua cabeça!"

"Como é?!"

"Vê se trata da sua cabeça!"

"Vai tomar no cu! Me dá um trocado aí!... Pra'eu comprar só mais uma breja..."

Gleidson atirou na mesa dez reais.

"Valeu, filho da puta!", bradou Marco.

Marcou pediu mais uma cerveja. E a cada gole esquecia-se mais e mais de sua finitude.

Aos vinte anos pensava que iria morrer, mas ainda haveria décadas e décadas de dores pela frente...

❖❖❖
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Postado 27/11/17 19:16

Hehehe, 20 anos e acha que vai morrer. Pode isso, Arnaldo? Não pode não. Não tem que ter sentido algum isso ser verdade. Feliz ou infelizmente, o cara foi alertado pelo narrador que sua vida se prolongaria por muito tempo ainda.

Pois bem. Eu adorei o texto. Certamente, um dos melhores que li aqui nesse recinto depois que ele voltou ao ar. Gostei muito de como o diálogo foi conduzido, ou seja, com muita expontaneadade e com falas diretas. Na verdade, o texto em si é bem direto. Fala de cara o que o autor quer passar ao leitor e com uma intensidade, até surreal, que deixa bem frisado o que está sendo dito.

De fato, tem muita coisa sem sentido. Nossa senhora, os exemplos passados no texto são mais que suficientes para exemplificar. É de deixa qualquer um que busca sentido louco. De repente, para se safar dessa loucura que são os fatos da vida, é necessário evitar buscar sentido. As coisas são como são. Ponto e basta!

Eu comecei a ler um livro do Pondé e ele traz umas coisas bem interessantes. Ele diz que esse negócio de que ser humano ser racional é meio que uma furada. Ser humano é parcialmente racional, tem parcialmente autonomia para fazer o que quer. Muitas de suas ações são conduzidas por contexto histórica e social. Por isso, escrever textões e tudo mais parece ser a saída para muitos e parece ser besteira para outros muitos. Mas as pessoas não escolhem (não muito) o que fazer. As coisas são assim e ponto. Não é destino, é consequencia de um mundo louco e irracional.

Enfim, bacana o que o texto nos traz e como nos traz. Parabéns!

Só quero fazer uma última colocação. Achei que a pontuação não está adequada. Usaria travessões em vez de aspas. Acho que fica mais bonito.

Até o próximo texto!

Postado 28/11/17 02:37

Temos aqui um texto pesado, pois remete (ou melhor, literalmente arremessa) o leitor à uma reflexão/questionamento praticamento atemporal: o sentido da vida/existência humana. De fato, tem muita/tanta coisa sendo feita e/ou desfeita neste planeta e na tal sociedade que até os manicômios parecem mais sensatos.

Não tenho qualquer prazer em dizer que sou um adepto do Niilismo com preocupante tendência à Misantropia, todavia o que penso e sinto acerca do (i)Mundo e dos que nele habitam enquanto "civilização" não me conduzem (nem o farão) para outra direção.

No meu singelo modo de pensar, existe sim uma decadência/malevolência inata à raça humana que beira à necrose. Ouso dizer que ela é proporcional a todos os avanços por ela atingidos/conquistados até agora e inexoravelmente deturpa-os. Mas, bizarramente, tudo se camufla como "Ordem e Progresso". E assim caminha a Humanidade, com todo o esplendor de sua auto-degeneração progressiva e secular.

Excelente texto, Sr. V! Profundo, atual e sucinto! Meus parabéns!

Atenciosamente,

Um ser que deixou de acreditar em Deus, Diablair.

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Postado 03/01/18 00:48

Gostei muito como os diálogos e as indagações no mesmo, conseguem fundir toda a crítica que rodeia a obra.

Meus parabéns! Excelente texto ❤

Postado 03/01/18 02:47

Agora eu encontrei as respostas para as duas forças dentro de mim, agora eu sei quem eu sou: EU SOU TANTO O MARCO QUANTO O CLEITON!

Não sei mais o que dizer sobre esse conto MARAVILHOSO, só sei que ele me arrepiou.

Cada jogada que tu fez, tudo tão inconscientemente chocante. O contraste da Taylor Swift e de dois irmãos cavando a própria cova... Nós temos dentro denós mesmos este contraste. Todos os possíveis.

Desde quando acredito em Deus?

Desde que me dei por conta que para existir tantos contrastes dentro de mim, teria de haver UM SER SUPREMO, que os criou todos.

História genial. Real. Já tive muitas e muitas conversas semelhantes regadas a cigarros e a corote com limão.

Parabéns!

Postado 20/02/18 20:19

Foi uma leitura tão agradável que fiquei triste por ter terminado.

Esse definitivamente vai para a lista dos favoritos.

Parabéns!