Calypso
6 de Janeiro
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 11/01/18 04:17
Editado: 19/01/18 21:58
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 14min a 19min
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Notas de Cabeçalho

Conto inspirado na canção 'Calypso - John Denver'.

Capítulo Único Calypso

Um dia álgido que trouxe consigo olhares pobres e terrivelmente esfomeados, presentou um pequeno vilarejo de pescadores com um recém-nascido menino.

O bebê se encontrava magro e esguio.

A mulher que avistou o barril flutuando na água, correu atordoada até a enseada em direção ao barril que pensou ser parte de qualquer carga afundada, no entanto, deparou-se com aquilo - apenas não cuspiu naquele menino, pois teve tempo de se conter e, ao olhar para trás, sua visão pôde alcançar seus nove filhos tão magros quanto o recém-nascido encontrado vindo em sua direção.

Por um segundo, ela pensou em assar aquela criança encontrada, mas, por outro lado, sabia que sua alma estaria no eterno jugo da morte se o fizesse; então, fez o que qualquer pessoa sem perspectivas faria: abandonou a criança nua na neve, enfiou seus nove filhos em baixo da saia surrada e partiu.

O garoto não pôde escolher se ficava ou não ali... Afinal, de nada ele sabia ou podia interferir sobre a vida. As horas foram sucedendo-se e conforme o rostinho dele se enrugava e azulava com frio, mais pés que passavam por seu corpinho, apressados, o ignoravam por completo.

No ventre do mar, uma criatura cândida despertou. Esfregou seus olhos sumarentos e rodopiou fazendo surgirem bolhas. Estas bolhas, neste mesmo instante, passaram a expandirem-se até alcançar a borda da água; a criaturinha então, as assoprou, para longe elas flutuaram rapidamente e, assim, Calypso pôde voltar a dormir.

O menino estava para dar seu último suspiro, quando as bolhas subitamente o engoliram e gentilmente, começaram a centrifugá-lo.

E, no ápice do mais efêmero segundo, seus bracinhos, mãozinhas e perninhas e todos os órgãos de seu corpo infante, tornaram-se um corpo de um jovenzinho aparentando ter sete anos.

As bolhas cessaram. Cuspiram-no de volta na praia e retornaram ao lar.

Dentro de sua mente ele ouviu:

Falará como falam os humanos, beberá e ceiará com eles, fostes abençoado pelos lábios de Calypso, que não tratará piedosamente os aldeões desalmados. Mas não te preocupes... Estás abençoado com todo tom azulado que houver no mar. Teu mundo azul será.

Sendo assim, adormeceu.

"Ei, menino, levante!" - os olhos do garoto se abriram, tudo que ele conseguia ver eram luzes azuladas, o sol azulado, rostos azulados... Um azul infinito e indescritível - afinal, nunca tinha visto outro.

A esfera era estranha para ele, o menino acordou assustado. Sentiu o vento! Sentiu as vozes! Sentiu os olhos! Os cheiros! A luz-azul-solar queimando-lhe a pele, o mar atrás de si, enxarcando-lhe os dedões do pé... Aonde ele estava? O que faria?

"ÃN- ÃNNN!" - ele tentou se esquivar, mas estava deitado, estava desprotegido.

"Menino! Você é retardado?!" - dois homens o levantaram pelos bracinhos brancos e magricelos.

"Nunca vi um menino tão branco! De onde você veio?" - indagou outro, respingando suor e saliva nos olhos do rapazinho.

O que ele faria? O que ele faria? Ontem mesmo ele era um recém-nascido, certo de sua existência curta... E como num sonho rápido, agora estava moço! Vivo! Ele se lembrou do desprezo da noite passada... Dos tons... Daquelas... Cores? Do frio... Das bolhas.

"Calypso."

"O que foi que ele disse?!" - os pescadores o largaram na neve como se larga uma tonelada de peixes.

"Ca-Ca-CALYPSO?!?!?!" - eles temeram, seus corpos pretejaram de medo. Em suas mentes lhes vieram imagens assombrosas de tantas vezes que a vila foi levada pelas mãos gananciosas do oceano, de inúmeras vezes que os barcos e navios retornaram aos pedaços, de quantas famílias prantearam e de quantas mulheres fizeram do mar, lágrimas.

"O QUE É VOCÊ?!" - o mais gordo deles chutou a coxa do miúdo.

Se passaram horas até as pessoas da aldeia decidirem o que fariam dele.

"Amarrar numa tábua e devolver ao mar!" - todos aplaudiram - "De acordo?' - todos levantaram as mãos, assim assentindo.

Exceto um.

O grande líder.

"Não, escutem-me. Devemos ficar com ele" - estas seis palavras soaram como destruição nos ouvidos dos demais, mas antes mesmo deles contrariarem, o líder continuou "Calypso. É a única coisa que ele sabe dizer, o quê ele é? Não anda, não escuta muito bem, magro e branco... Deve ser um teste dos oceanos... De fato, Calypso destruiu nossas vidas, no entanto, pode ter enviado o menino para nos espionar mais humanamente... Contudo, mandou um defeituoso! Boa, Calypso!" - todos gargalharam - "Logo este morrerá, temos de tratá-lo humanamente e esperar até que morra. Novos navios estão sendo enviados no próximo mês, Calypso quis nos dar uma chance. Aceitemos-na. De acordo, aldeia?" - ele esbravejou controladamente.

Mil pares de olhos se entreolharem pelo rabo do olho e mil cabeças assentiram, seguindo as mãos que se levantaram.

E assim foi.

Um tempo depois...

O menino foi chamado de Skip, que significa capitão do barco, obviamente uma zombaria dos aldeões, pois o menino tinha mania de dormir no gurupés, o mastro que aponta para vante, do maior navio do porto.

"Você é mesmo um metido!" - uma menina verruguenta chutou-lhe a canela - de fato ele era tratado bem humanamente, da forma mais cruel e humana possível.

Não o compreendiam ali, ele já vivia na aldeia há três anos... Aprendera a falar, a pescar, a andar e a fazer tudo que lhe impuseram... Porquê não o deixavam em paz? Não eram capazes de interpretar seu modo de viver... Ele dormia no gurupés, pois ali se sentia perto de casa, se é que existia uma casa para ele.

Mas às vezes, entre os bilhares de azuis que ele apenas era capaz de enxergar, seus olhos avistavam um grande boto qual o tom azulado se sobrassaía a qualquer outro. Esta criatura majestosamente primorosa, era a única razão para ele querer continuar sendo forte ali naquele mundo tristemente tingido de azul acinzentado.

Ele queria mais, e o roaz majestoso, era capaz de expandir sua mente. Apenas olhando dentro de seus olhos com amor.

"Ei... Ei... Faz tempo que nos conhecemos, eu sou capaz de ouvir sua voz dentro de minha cabeça... Mas não sei seu nome." - o menino sussurrou em direção ao mar escuro.

Seus olhos de criança perceberam brotar aos poucos uma chama fria, num azul tão inquietante que sua pele dos antebraço direito coçou. O coração do rapazinho tamburilou dentro do peito, então, num instantinho, surgiu o enorme golfinho cerúleo, que sorriu assim que viu o menino.

"Boa noite, a cada dia você se torna mais reconfortante dentro de minhas memórias... Escutou o que eu te perguntei?"

"Sim". - ele pôde ouvir a voz enternecedora da criatura dentro de sua mente. Uma lágrima quentinha escorreu de seus olhos claros.

"Me diga, qual é seu nome."

"Você o tem dentro de sua alma."

"Então... Amigo, como eu saberei?" - o menino choramingou.

"O que eu sou para você, Skip?" - o boto indagou modicamente.

O jovenzinho refletiu por uns segundos... Todas as palavras que ele conhecia para descrever seu amigo eram poucas e rasas, não sentia-se digno, no entanto, ele sabia que por mais fúteis que suas palavras fossem, o boto o continuaria amando. Pensando assim, Skip juntou todas as forças e memórias macias que pôde, bem no meio de sua língua e disse alegremente:

"Mostre o que você é." - a resposta do humano criança foi tão sincera que surpreendeu o boto-guia-espiritual.

"Agarre minhas cristas, Skip".

Cristas corajosas que pareciam existir por mágica, surgiram no lombo do boto, Skip as agarrou e suas mãos foram engolidas pelo azul contagiante.

A criatura rasgou as águas gentilmente, nadando com tanta velocidade, e, apesar de parecer impossível, a velocidade era tanta que Skip teve a impressão de estar estático em relação ao mundo, às águas, às horas.

O menino, em suas roupas judiadas, se encontrava assentado, o golfinho deslizava vertiginosamente pelos mares, no entanto, tudo parecia um passeio calmo aos olhinhos infantes. O guia mostrou a Skip toda a beleza do oceano claro e cristalino, fê-lo conhecer o azul intocável de cada montanha distante da água fria, apresentou de longe as piores tempestades regidas pelo Ser Adormecido, exibiu o labor mais bonito da vida, o céu limpo e fino, fazendo assim, Skip ter perguntas ainda mais difíceis sobre a Terra.

Calmamente, Skip foi conhecendo ali, assentado no lombo, com as mãos revestidas de cristas mágicas, o silêncio amoroso de cada constelação, de cada peixe imenso que lampejou bem abaixo deles, pôde finalmente sentir-se livre com as ondas, os ventos, as gaivotas e o calor marítimo satisfatoriamente agoniante. Foi capaz de perceber que seu amigo golfinho, era bem mais do que um golfinho qualquer, ele tinha uma aura jovial e amorosa, sentiu-se parte da vida, do crescimento, do selvagem, das montanhas, dos ventos... Do azul.

"Oh, Calypso, por que eu só enxergo esta cor? Está tudo bem para mim enxergá-la, mas todos os outros, ao perceberem que eu sou assim, me humilham e me machucam, me nomeiam como estúpido e doente. Não posso viver com eles."

"Ei... Você praticamente sabe meu nome agora."

"Jura que só ouviu a parte do nome? Eu sempre soube que era você, mas, eu reclamei e você me ignorou e..."

"Eu guio o espírito de Calypso, assim como guio o seu. Calypso é uma jovem descomunal e transcendente, adormecida dentro da alma de todo o mar. Eu sou ela, de certa forma, talvez, eu sou a parte de algum sonho concreto que se desvencilou dela... Estou aqui para te mostrar que Calypso só destrói quem não é capaz de amar e estimar cada singela gota do oceano. Jamais o destruiria Skip, você é parte de nós. Cresceu por manobras encantadas do coração maternal de Calypso, foi abençoado com o dom de ver apenas os tons que enxergam as almas mais puras existentes da Mãe-Orbe, sua mente se expande tanto quanto a nossa... Eu sou o boto-guia-espiritual. Volte para a casa." - quando Calypso cessou suas palavras formosas e suaves, Skip sentiu seu coração ser beijado.

Apalpou os vestígios de vida que estavam presentes no ar e na água.

Amou seu rosto de menino-azul refletido na água clara.

Os olhos do menino encheram-se de lágrimas.

"Como é a casa?"

"Silenciosa e sublime, é a realidade mais elevada em qualquer galáxia."

"O que é uma galáxia?"

"Um estado de espírito."

"Mas, espírito de quem?"

"Não sei, alguém MAIOR que Calypso. Maior que você."

"E este Alguém é bom?"

"Calypso é apenas um fio de cabelo Dele, se formos comparar."

"Se algum dia eu estiver ao lado Dele, penso que irei me urinar de medo...!"

Calypso gargalhou aveludadamente.

"Penso que, seria mais como um sono profundo e manso". - Calypso esclareceu.

"Oh, me esqueci, você já conheceu O Eterno, fica mais fácil para você, Calypso." - Skip sorriu com toda a sua alegria de criança.

"Olhe para o céu" - o boto sugeriu - "Ela está te chamando...!"

Os olhinhos azuis esverdeados do menino arregalaram-se ao perceber o sol sendo devorado por imensas camadas grossas de nuvens assustadoramente escuras. Logo chegaram os raios, os trovões e a calmaria pré-tempestade.

Calmaria que faz até o sangue parar de correr.

Calmaria que faz os pássaros pensarem em pedir desculpas aos céus por estarem voando.

Calmaria que fez as pessoas do vilarejo, saberem que já era hora de começar a rezar pelas almas dos homens ao mar que em poucos minutos, não seriam mais viventes.

Skip não foi capaz de fazer um só comentário, ele de fato deveria estar certo sobre como se sentiria ao se encontrar com o SER MAIOR que eles.

O pânico tomou conta das caudas do mar, a água agitou-se, pingos grossos de chuva começaram a perfurar o oceano, os raios fritaram as pedras, as montanhas e as rochas imensas, o nível do mar transpassou o das terras, maremotos incontáveis brotaram bem abaixo do guia-espiritual e, então... A água começou a circunsonar tudo o que seus olhos podiam ver. Toda a visão. Todas as coisas.

Rodamoinhos-d'gua.

Engolindo e cuspindo embarcações.

O menino humano não sabia se era certo entrar em desespero, o coração dentro de seu peito havia até desmaiado de susto.

"O que está acontecendo?!" - Skip exclamou estridentemente, tremulando dos dentes aos pés.

O golfinho pareceu não dar ouvidos.

Solitário que se sentiu em meio ao caos divinamente infernal e sem saber a causa para todos esses acontecimentos recentes, Skip se despregou da cristas de Calypso-Roaz e deixou-se afundar plenamente pelas águas endiabradas, até atingir o fundo do fundo do fundo do fundo de toda a profundidade jamais antes vista por outros olhos humanos.

Era realmente silencioso.

Parecia-se com a hidrosfera, mas a pressão atmosférica, era semelhante à da terra. Ele podia andar desimpedidamente por ali, seus cabelos flutuavam acima de sua cabeça, bolhas saíam de sua boca, sua visão estava fosca, entretanto, quanto mais ele andava por ali, com mais tons infinitos de azul seus olhos eram abençoados.

Porém, aqueles tons o deixaram apreensivo.

Ele sentiu uma vibração.

Foi em direção a ela, abriu as cortinas de água com a ponta dos dedos, então, passou por elas com seu corpo inteiro.

Abriu os olhos.

Uma cena incomum e surreal lambeu-lhe a face.

Ela estava ali, dançando e se contorcendo, sorrindo, parindo expressões faciais que ele jamais havia visto antes, os pés de Calypso pincelavam os pés dos Oceanos, as mãos de Calypso agarravam, arranhavam e quebravam cada osso e esrutura terráquea, seus olhos comandavam a Lua, sua boca comandava as ondas, seus cabelos pingavam entre trilhares de outras trilhares de gotas azuis marinhas, suas vestes eram de algas e conchas, ela era gigantescamente assustadora e perfeita.

Monstruosamente amedrontadora e pacífica.

Ela havia dado á luz a toda a vida que vivia e que já viveu.

Skip, era de fato, um filho seu.

Atordoado, ensopado de azul e apaixonado, Skip serpentou suas mãos e pôs-se a dançar com a Mãe-Marítima.

Calypso sorriu para ele já findando seu bailado para dar ao filho pródigo, um beijo de saudades.

E ao mar azul,

indescritivelmente colossal,

assombroso e execrável,

depois de tanta confusão,

sossegou.

A imensidão cerúlea

apenas bocejou e logo em seguida,

adormeceu.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Obrigada por se pintarem de azul comigo.

Não estou totalmente satisfeita com isso... Mas espero que apreciem com o coração.

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