Eu estava imerso na escuridão…
Enquanto sentia o peso da minha escolha se espalhando pelo meu sangue, caminhando pelos meus músculos e se alojando no meu coração. Meu corpo estava trêmulo e um frio intenso se alastrava pela minha pele, fazendo com que a única coisa que eu visualizasse em meio àquele breu, fosse a fumaça esbranquiçada que saía da minha boca.
— Ele está tremendo muito! Tragam mais cobertas, inferno! — A voz raivosa de Diablair ecoou de algum lugar distante.
Foi nesse momento que eu soube que não estava dentro de mim…
Um arrepio percorreu o meu corpo e, ao decidir considerá-lo um aviso, comecei a caminhar. De imediato, notei a instabilidade do chão: cada passo afundava rumo ao desconhecido, impedindo-me de parar no lugar, pois, se o fizesse, seria engolido. Para piorar a situação, havia uma espécie de gosma no chão que se agarrava aos meus pés e que me fazia usar o dobro da força para uma tarefa que deveria ser aparentemente simples.
— Vamos, garoto… Escape desse lugar! Siga a minha voz. — Ouvi o Soberano Infernal me dizer.
Mas o meu coração tremeu…
E o mais puro terror me consumiu, pois a cada passo dado, a imagem de um abismo atrás de mim se projetava em minha mente. O que quer que governasse estas terras, não queria que eu parasse de seguir em frente, porque, se eu o fizesse, morreria. Quando engoli em seco, percebi que estava prendendo a respiração e, entre um passo e outro, me permiti respirar. Foi quando um cheiro pútrido alcançou as minhas narinas e comecei a vomitar enquanto andava.
— Blake, pegue estas malditas bacias! Ele está vomitando! — Ordenou ruidosamente Diablair.
A escuridão começou a se afunilar e pinceladas cinzas começaram a surgir ao redor…
A sensação claustrofóbica, somada ao cheiro terrível, intensificaram o vômito. Já não havia mais nada em meu estômago e a impressão que tive era que começaria a expelir os meus órgãos. Eu já não tinha mais forças para regurgitar e, para evitar cair e ser engolido pelo abismo pestilento, estiquei a mão para me apoiar no que eu supunha ser uma parede que havia se aproximado. Assim que a ponta do meu dedo alcançou a suposta superfície, algo engoliu um pedaço da minha carne.
— O dedo dele… — Ouvi Nekromanteion sussurrar, horrorizado.
— Não fique paralisado, porra! Precisamos estancar o sangramento. — Diablair respondeu com impaciência.
Foi quando eu comecei a gritar…
A dor de perder uma parte de mim era alucinante e se alastrava pelo meu braço como se fosse fogo. Por mais que a minha visão estivesse embaçada devido ao esforço de tentar sobreviver, vi um pequeno espaço de chão a poucos metros de onde eu estava. A escuridão havia sido superada por um cinza perturbador que, no entanto, não ajudava a melhorar a visibilidade. No espaço que parecia ser seguro, uma espécie de véu iluminado parecia escorrer do céu acinzentado que, todavia, não tinha nuvens, sol, lua ou qualquer sinal de vida. Era como se eu estivesse caminhando sob o jugo dos céus da morte. Aquele local supostamente seguro refletia a serenidade da crueldade, pois, na mesma medida em que me transmitia esperança de sair dessa situação, também me provocava arrepios. Ainda que diante da iminência de uma tragédia, negociei com o meu corpo e busquei dentro de mim a força necessária para correr até lá. Quando alcancei a superfície e a mesma não afundou, me permiti cair, completamente exausto.
— Ele parece estar melhorando, não é? — Questionou Damon, com certa esperança em sua voz.
— Não… É apenas a calmaria antes da tempestade. — O senhor Calígula o respondeu de forma apreensiva.
— É o silêncio que se ouve antes da Morte chegar... — Declarou Blake em um sussurro carregado de empatia e, ao mesmo tempo, temor.
Eu estava esgotado…
Todavia, ainda assim, ergui os olhos para ver onde estava, pois algo me dizia que a caminhada não havia sido a pior parte. Congelei no instante em que vi um trono formado por diversos olhos. As íris se mexiam de um lado para o outro, desesperadas, enquanto as pupilas estavam assustadoramente congeladas, encarando-me como se eu tivesse sido a última coisa que elas viram antes de morrer. Olhei para trás e, por conta da iluminação melhorada, reconheci o que era a suposta gosma negra: se tratava de milhares globos oculares em decomposição, completamente consumidos pela escuridão de escolher matar alguém.
— Durante as guerras, filas imensas se formavam por aqui, o que tornava o processo mais demorado. Eu conseguia ouvir a sinfonia do desespero ecoar pelas minhas cinzas, mas, agora, só me resta acolher o silêncio dos acuados.
A voz veio de algum lugar atrás de mim, fazendo-me paralisar diante do mar de olhos mortos no instante em que identifiquei a quem ela pertencia. Meus músculos se retesaram com tanta violência, que pareciam querer se dobrar para dentro de si mesmos, apavorados com a descoberta. Uma gota de suor gelado escorreu pela pele do meu rosto, como se o frio externo não fosse maior do que aquele que me consumia internamente por conta de meu medo.
— Eu não sou a sua Morte, garoto. Aquela é a minha irmã, a filha favorita do nosso pai, um deus da calamidade que teve seu nome perdido através do tempo, por conta da falta de adoradores. — Ela esclareceu com a voz entediada. — Como você pode ver, eu não era tão estimada por ele, pois, enquanto a minha irmã se tornou um Desígnio, eu fui destinada a me tornar uma Maldição.
O monólogo não soava ameaçador, pelo contrário: ela parecia mais interessada em desabafar sobre as suas angústias do que no verdadeiro propósito da minha presença aqui. Enquanto ela falava sobre si, tentei invocar os Desígnios, mas nenhum deles surgiu, fazendo com que a solidão que abraçava aquela atrás de mim também se interessasse pela minha presença. Também busquei me concentrar em escutar a voz de Diablair para respondê-lo e perguntar a ele como sair dali, porém só havia o silêncio que engolia a serena solidão da voz da Morte com tanta brutalidade que eu não conseguia tomar a coragem necessária para sequer me virar e encará-la. Parecia que, por trás daquela voz pacífica, havia uma violência contida que, quando emergisse, destruiria a todos com apenas um piscar de olhos.
— Hoje as pessoas não escolhem matar, elas querem. E é isso que define quem vem até os meus domínios ou não: a vontade de matar por amor a si mesmo ou por alguém.
A voz dela soou próxima do meu ouvido. O som parecia tão perto que o senti beliscar a minha orelha. O susto da aproximação repentina me sobressaltou, fazendo-me levantar abruptamente.
Foi quando eu a vi.
Ela tinha um corpo, mas não um rosto. O local onde a sua face deveria estar era preenchido por uma massa disforme de pele, como se a sua pele tivesse sido puxada à força. Sob a deformidade, haviam diversos olhos em alturas diferentes. Eles se mexiam por conta própria ou ficavam estáticos, porém todos tinham cores raras que eu nunca havia visto: olhos laranjas, olhos cinzas, olhos dourados. Além disso, no centro do lugar onde deveria ser a testa, havia um espaço vazio aguardando ser preenchido. Como se escutasse os meus pensamentos, ela esclareceu:
— Como pode ver, esses aqui são especiais… Semideuses, fantasmas, anjos… Os olhos eram bonitos demais para serem manchados, então eu os guardei comigo para que a beleza deles pudessem ecoar pela eternidade. Mas aqui… — Ela levou uma das mãos até o espaço vazio e o tocou com delicadeza, fazendo com que todos os olhos de seu rosto, apesar de diferentes em tamanho e cor, transparecessem esperança. — Eu estou guardando para uma pessoa especial. Para a Deusa que nasceu de outras Deusas e que, por isso, tem os olhos de arco-íris; para a Mestra de minha irmã. Ela tem todas as cores para si e, na primeira oportunidade que eu tiver de manchá-la, a julgarei indigna de tê-los e os reivindicarei.
Ela gargalhou.
A risada cruel que escapou dos lábios dela ressoou com tamanha brutalidade nos meus ouvidos que os tampei imediatamente e abaixei a cabeça para melhor abafá-los, tentando impedir que o ardor se espalhasse ainda mais. Ela continuava a murmurar palavras carregadas de esperança enquanto andava de um lado para o outro, como se ter os olhos da Deusa em questão fosse o seu maior sonho. Conforme o seu monólogo descontrolado e sem nexo se estendia, mais a essência dela vinha à tona. Era como acompanhar o submergir cronometrado da Loucura dos mares serenos do Desespero.
— Eu não sou louca, garoto, mas você tem razão: eu sinto muita raiva.
A voz dela soou dentro da minha mente e, tomado pelo medo e imerso na mais profunda confusão, imediatamente a encarei. O movimento simples de erguer a cabeça fez com que eu percebesse que o meu corpo parecia pesar o dobro e os meus músculos estavam tremendo, completamente consumidos pelo medo. Ela moveu uma mão como se gesticulasse uma onda e, subitamente, a gosma enegrecida ao redor começou a subir pelo meu corpo até alcançar o pescoço, imobilizando-o. Tentei me desvencilhar do toque fétido, porém os comandos do meu cérebro não chegavam ao resto do corpo; era como se eles fossem elementos separados, mas que compartilhavam o mesmo espaço.
Eu queria gritar…
Porra, como eu queria vocalizar o meu medo, mas até a minha voz ela parecia engolir com a sua crueldade. Não há espaço para mim aqui: o meu corpo, os meus pensamentos, o meu medo… tudo pertence a ela. Foi nesse momento que fui tomado pela certeza de que, até ela terminar o que desejava fazer comigo, o meu eu era o seu domínio.
— O abandono é uma angústia transvestida pela raiva e é por isso que eu escolhi marcar o mundo com a minha dor. — Ela declarou, segurando o meu queixo com uma das mãos e encarando os meus olhos com todos os olhos que ela tinha. — Você sabe do que estou falando, garoto. Você também conhece o gosto da solidão, do abandono, do medo… — Ela se aproximou ainda mais, dando a impressão de que os seus olhos estavam maiores e fossem capazes de me engolir. — Você sabe como é ser esquecido, não é?
Novamente, ela riu.
Entretanto, por trás do gesto, havia algo mais: uma triste compaixão. De repente, a áurea intimidadora perdeu o seu efeito devastador e, ao me ver refletido nas muitas íris que me encaravam, pude vê-la em essência da mesma forma que ela me via: nós éramos pessoas solitárias, marcadas pelo abandono com uma violência brutal. E por mais que eu sentisse que o meu medo me engoliria, havia um reconhecimento espelhado acontecendo entre nós que me impedia de não ter empatia por aquela mulher solitária e amordaçada pela própria loucura.
— Eu já marquei uma mulher parecida com você. Olhos vermelhos carmim, pele clara, cabelo escuro… Ela não sentiu medo e não gritou em momento nenhum, porque é difícil quebrar algo que já está quebrado. Ela tinha a certeza de que já havia conhecido o verdadeiro sofrimento, pois que tipo de mãe ela era ao abandonar os filhos e se dedicar a matar o próprio marido?
Tudo dentro de mim pareceu parar de funcionar…
Pois ouvir sobre a minha família sempre era indigesto. Haviam muitas faces da mesma história e essa disputa de narrativas seria a nossa eterna destruição. Uma letargia funesta me tomou e desejei poder me esconder dentro de mim mesmo, porque ouvir alguém verbalizar tais suposições com tamanha certeza era devastador. Eu amo a minha mãe, mas ela, de fato, abandonou eu e a minha irmã no momento em que mais precisamos dela. No dia em que Vassily foi completamente consumido pelas trevas e se transformou em um monstro, ela havia perdido para sempre o marido que amava, porém Anastacia e eu também havíamos perdido o nosso pai. Era a mesma perda, mas em corações diferentes: a questão é que o meu sofrimento não foi menor só porque o meu âmago ainda era imaturo. Todos nós saímos quebrados dessa história de alguma maneira, porém a adulta da situação era a minha mãe e por mais devastada que ela estivesse, isso não lhe dava o direito de se fechar dentro de si mesma por anos, longe da nossa casa. Hoje consigo entender o porquê dela ter feito o que fez, pois compreendo o quanto o amor pode ser um sentimento que nos constrói e que, ao mesmo tempo, nos destrói, porém o pequeno Phillip que fora deixado à mercê do genitor cruel e que teve que fazer tantas coisas brutais, não podia compreendê-la ou destinar a ela a sua empatia, porque existem sentimentos que apenas o tempo pode lapidar e amadurecer.
Não me surpreende o fato dela ter estado aqui, afinal ela havia escolhido matar o meu pai e essa decisão nos levou aos acontecimentos recentes. O plano de derrubar o czar e colocar um fim na sua tirania havia sido elaborado silenciosamente por aquela que ele confiara o posto de Estrategista Sombria. A minha mãe fora a mente de muitos planos e uma verdadeira arquiteta de ataques geniais e bem-sucedidos que ficarão eternizados na história do Hades como sinônimo de nossa força. Ela sabia os pontos fracos e fortes de cada muralha que cerca os castelos, aqueles mais inclinados a traição e os que jamais virariam as costas para o seu líder — ainda que este fosse um tirano —, os locais ideais para que as reuniões da Ordem Obscura acontecessem sem levantar suspeitas… Ela sabia como convencer os homens a lutarem por justiça com dignidade. E, assim, ela criou uma rede de infiltrados, organizou um exército disposto a batalhar por seus ideais, reuniu ferreiros para forjar armas, mulheres para costurar uniformes e convenceu diversos homens da nobreza do Hades a se rebelarem. Ela teceu a sua teia em silêncio ao redor do meu pai e, quando a hora chegasse, seria tarde demais para ele se desprender de seu ardil.
Além disso, nunca vi qualquer hesitação em seus olhos e isso deve ter me impossibilitado de ver as manchas de sua escolha refletidas em suas íris: eu estava ocupado demais admirando a sua coragem e sendo inspirado por sua bondade. De repente, quis rir, pois a ideia de ser a imagem e semelhança de meu pai, só que com os olhos de minha mãe, me fez temer não saber quem eu realmente era.
— Não! — A mulher berrou subitamente, desconectando-me de meus devaneios e fazendo aquela sensação de medo retornar. — Nenhuma marca é igual, porque ninguém escolhe igual. Seus olhos são seus e suas escolhas são suas.
Ela continuou a murmurar, completamente perturbada pelo o que eu havia dito em meus pensamentos. Busquei silenciá-los, visando não irritá-la ainda mais. O problema foi que isso pareceu enfurecê-la. A Morte segurou o meu maxilar com brutalidade, fazendo com que os dedos imobilizassem os meus dentes até eles quase se fundirem. O gesto me pareceu uma clara imposição para ficar em silêncio, mas havia algo mais ali… Uma fúria descomunal que pareceu invocar o Desespero. Um gosto metálico se espalhou pela minha boca e se misturou com a bile que ali estava, enquanto as lágrimas que compulsoriamente caíam de meus olhos adentravam-na e salgavam os meus lábios. Esse era o sabor do medo: um misto de humilhação, agonia e sofrimento.
Eu queria gritar até as minhas cordas vocais sangrarem…
Mas tudo dentro de mim estava confinado dentro do covil do pânico.
Subitamente, ela gritou.
O som agudo pareceu se alojar em meus tímpanos e explodi-los, dando espaço para que ele marchasse pelo meu corpo como um exército de bárbaros. A saliva dela molhou o meu rosto e, do fundo de sua boca, eu vi uma mão masculina trêmula surgir. Ela segurava um galho enegrecido em formato de pincel que parecia ser muito antigo. A Morte se apossou do objeto e, enquanto o barulho diminuía, a mão começou a se recolher para dentro da garganta dela. Foi perturbador ver o punho descer pelo pescoço daquela mulher bizarra, indo em direção ao seu próprio inferno particular.
— Obrigada, pai. — Ela declarou de repente, fazendo-me compreender imediatamente que aquela mão pertencia ao seu genitor.
Eu não sabia se era possível sentir mais medo e mais repulsa, mas essa revelação me mostrara que, por mais que a narrativa dela buscasse transmitir compreensão e quase tivesse me convencido de que éramos semelhantes, ela era uma mulher ensandecida, perdida dentro do próprio ódio. Ouvindo os meus pensamentos, a Morte deixou uma risada cínica escapar e disse:
— Você me julga por ter engolido o meu próprio pai, porém não sabe o que ele era. Eu fiz o que fiz para sobreviver e para não ser uma eterna sombra da minha irmã. Ele merecia um destino muito pior do que virar o meu jantar e o portador do meu bem mais precioso, se você quer saber, garoto. — O aperto no meu maxilar se afrouxou e ela segurou o meu queixo, obrigando-me a encará-la. Todos os seus olhos, repentinamente, ficaram brancos e ela sussurrou com a voz alterada: — Você perderá mais do que conseguirá conquistar e isso será a sua ruína. Você ouvirá a melodia do exício todas as noites, em seus pesadelos, porque aquela que traz os seus sonhos se esquecerá do caminho até eles. Você é filho da Perdição, o blasfemador, o abandonado por quase todos os deuses, aquele que trará a Última Hora… Você cheira a morte e repugnância, Philip, por isso você está fadado a ser o czar que sucumbirá ao ódio.
Aquelas palavras adentraram o meu peito com violência e escreveram em meu coração as peripécias de meu destino. Mesmo com a visão embaçada pela chegada da perda da consciência, eu vi quando ela aproximou o pincel dos meus olhos, esticando as pálpebras até o limite. Ainda que perdido no limiar entre o passado, o presente e o futuro, contemplei a aproximação perturbadoramente lenta do objeto que me lembraria para sempre da escolha que eu havia feito.
Nesse momento, tudo mudou.
A mulher que estava prestes a marcar os meus olhos tomou a forma almejada pelo seu âmago: cabelos amarelos como a grama morta do inverno, túnica vermelha como o sangue, olhos totalmente brancos como se fossem a entrada para a eternidade nos braços da Loucura. O céu estrelado surgiu acima de nós, contrastando com a perturbadora imagem dela cortando a própria língua e molhando com o seu próprio sangue enegrecido os pelos do pincel.
O som do vazio cantarolou nos meus ouvidos,
Retumbando em meu íntimo como um presságio ruim.
Eu estava em Lugar Nenhum, onde fica o leito da Morte,
Aquela que tece os destinos com sangue, medo e loucura…
Aquela que se esqueceu de si e de seu nome…
Aquela que, um dia, foi irmã de Átropos,
Filha de Érebo e Nêmesis,
Batizada como Môirai.