Muitas vezes, caro leitor, o clichê mais antigo das narrativas emerge como a única explicação para as situações mais improváveis, pois são as respostas sem sentido e as ações impensadas do coração que nos fazem mover montanhas e enfrentar nossos piores medos em nome do amor. Ele nos move, nos liberta e nos salva quando menos esperamos, porque, às vezes, não nos permitimos ver a sua grandeza dentro de nossa pequenez.
Nós, humanos falhos e autodenominados senhores do tempo, acreditamos que ele é o convidado que sempre se atrasará e que, sem mais nem menos, ocupará o espaço mais importante de nós: a nossa alma. Só que o que nosso âmago simplista nos impede de ver, é que o amor nunca se atrasa: ele chega no segundo em que dois corações apaixonados se encontram para se completarem e a nossa definição de tempo jamais conseguirá captar essa imensidão de significação. Às vezes ele chega devagarinho, como se fosse uma tímida nuvem que se junta às demais para enfeitar o céu da primavera, assim como ele pode aparecer sem pedir licença, como uma tempestade em um dia quente de verão.
A questão é que o amor sempre chega, não importa a circunstância. Nós temos receio do que não vemos, do que não conhecemos e do que não conseguimos explicar, mas ele não. O amor não tem medo de ser, ainda que o faça por caminhos desconhecidos. Ele é a coragem que move os nossos pés rumo ao que nos assombra, a benevolência que rege as batidas do nosso coração, a humildade que nos faz ver o mundo com os olhos da bondade…
Ele é o artefato mágico capaz de nos encontrar quando nos perdemos, porque o amor, caro leitor, é o caminho de luz no meio de nossa escuridão. Ele é a certeza de que somos seres dignos dele em meio a todas as nossas imperfeições.
O amor é a nossa incessante busca pela eternidade no coração de alguém.
____________________________________________________________
Quando Ternura se levantou e começou a caminhar em direção às águas, eu soube que iria perdê-la para a morte se não fizesse alguma coisa. Meu corpo ainda sentia os efeitos letárgicos da possessão do Desígnio da Morte, por isso gritei seu nome desesperadamente, como se a minha voz pudesse alcançá-la. No entanto, quando ela adentrou as águas e vi seu corpo começar a desaparecer dentro da escuridão mórbida que se formava no lago, senti que não era apenas a vida ao redor que se esvaia, mas a minha também. Era como se a cada passo dela em direção ao exício matasse as batidas do meu coração e nesse momento eu soube que não era possível existir em um mundo no qual ela não fizesse parte.
Quando os cabelos dela desapareceram, tudo ao redor pareceu parar para abraçar a mortalidade: os vagalumes, que outrora dançavam sobre as águas, boiavam nelas sem vida; as folhas da grande árvore dourada começaram a cair e a se desintegrar antes de tocar o chão, assim como de todas as redor, como se a natureza chorasse; as flores murchavam até encolherem dentro da terra em uma vã tentativa de alcançar a inspiração de seu florescimento na profundidade das águas; e o meu coração, que até poucos minutos atrás batia freneticamente em meu peito como nunca havia feito antes, parecia ter desaprendido a bombear sangue para o meu corpo, completamente paralisado pelo desespero cruel de ver a mulher da minha vida escapar entre os meus dedos sem que eu pudesse fazer nada para salvá-la. Ao ver a morte tomar tudo com tanta potência após a corrupção de Ternura pela escuridão que havia dentro de mim, percebi que ela era o centro gravitacional de todas as coisas. Era como se a existência dela trouxesse não apenas o equilíbrio necessário entre a luz e as sombras, mas também a significação para os elementos mais simples que nos rodeiam. A única coisa que não se alterou significativamente foi o brilho da lua, mas, ao olhá-la, soube que não duraria muito, pois pequenas manchas negras começavam a se formar em suas bordas, como se a escuridão, no auge de sua selvageria, almejasse engolir qualquer resquício de luz no mundo.
Sem pensar, lancei o corpo para a frente e comecei a usar os braços para me arrastar até a borda. Meus dedos arranhavam com violência a raiz abaixo do meu corpo com o intuito de aumentar a velocidade de meus movimentos desajeitados. A distância do local onde eu estava para a água era relativamente curta e, se estivesse em posse de meus movimentos, já a teria quebrado em menos de três passos. Agora, no entanto, o máximo que eu podia fazer era me entregar ao crescente desespero em meu peito como se ele fosse a minha força motriz, ignorando todo o formigamento doloroso que se espalhava pelo meu corpo. Entretanto, sei que os meus problemas estão só começando, pois quando eu alcançar a água não conseguirei me mover e temo me afogar no processo. Ainda que meu cérebro tente me alertar para o perigo e clame para que eu o ouça por cinco segundos, o meu coração alarmado não vê outra atitude como uma opção, pois ele já fez a sua escolha: se apenas uma pessoa sair com vida daquele lago, será Ternura. Salvar a vida dela nunca fora uma alternativa, pois essa já era a minha decisão antes mesmo do pior cenário possível se projetar diante de meus olhos.
O caminho até o lago parece ficar maior e a minha visão começou a ficar turva. Não sei se estou prestes a desmaiar de exaustão, como normalmente acontece após a possessão do Desígnio da Morte, ou se são lágrimas de pura agonia, só sei que continuo me movendo. Ainda que eu seja a pessoa mais descrente do mundo, faço uma prece aflita para qualquer ser superior disposto a me ouvir:
— Por favor, me dê a força necessária para salvá-la… eu não me importo em morrer! Leve a minha alma se for preciso, mas me ajude a alcançá-la.
Subitamente, um forte cheiro de lavanda tomou o ambiente e, ainda que minha visão não estivesse em seu melhor momento, eu vi quando uma mulher vestida de branco começou a caminhar sobre as águas mórbidas do lago, como se não temesse a escuridão. Quando me alcançou, ela se ajoelhou diante de mim e afagou com uma gentileza tão grande os meus cabelos que, por um segundo, senti uma calmaria inexplicável tomar a minha alma, como se o toque daquela estranha divindade fosse banhado da mais pura coragem. O quebrantamento que se apoderou de mim era tamanho que as lágrimas simplesmente explodiram de meus olhos, fazendo-me soluçar no processo. Diferente das experiências espirituais que me contaram, nas quais barganhas e culpa estavam envolvidas, aquilo me pareceu… certo. Eu me sentia acolhido pelo amor que transbordava daquela mulher sem rosto que abrigou o meu sofrimento com benevolência e caridade.
— Apenas aqueles tocados pelo amor são capazes de fazer uma prece tão verdadeira, por isso não hesitei em atender o seu chamado. — Ela começou a dizer com a voz doce, ainda acariciando o meu cabelo. — Sua alma é tão gentil que, ainda que isso lhe custasse tanto, você enviou uma parte dela para cuidar da nossa menina em seu pior momento…
Foi então que percebi que toda a dificuldade que eu estava enfrentando era, na verdade, a consequência da perda dos Desígnios. Ainda que exigisse um grande esforço da minha parte, dada a perda dos benefícios mutualistas da simbiose, era possível senti-los dentro da água, junto a Ternura. Em parte, fui tomado por uma sensação de alívio, já que, agora que não estavam subjugados pelas amarras do medo, eles poderiam impedir que o homem que habitava a minha escuridão chegasse até Ternura, principalmente por conta de todo o ódio que nutrem por esse ser desalmado. Entretanto, isso não duraria muito tempo, pois os Desígnios dificilmente sobreviveriam por muito tempo sem um hospedeiro.
Sinto, repentinamente, o toque da mulher cessar e o movimento do meu corpo, assim como a minha energia, retornarem. Quando me ajoelho de súbito, consigo encarar aquela que atendeu o meu chamado, mas tal qual foi o meu espanto quando, ao olhá-la, seu espectro começava a desaparecer lentamente, deixando diversas borboletas para trás no processo, como se elas fossem presságios de esperança. O que me surpreendeu foi a junção dos traços que marcavam as singularidades das trigêmeas e, por um instante, parecia que as três haviam se fundido, quase como se fossem uma unidade. Ou uma família!, penso repentinamente. E recordo que a mulher havia se referido a Ternura como “nossa menina”.
— Você é… — Começo a dizer, mas sou interrompido por um sorriso que me pareceu ser uma afirmação silenciosa.
— Restaurei sua vitalidade, mas será algo passageiro, já que sabes que depende dos Desígnios tanto quanto eles necessitam de você. Não perca tempo procurando as certezas para as respostas que já tem, meu menino. Confie no seu coração. — Ela esticou uma das mãos e tocou o meu peito, fazendo com que o meu íntimo adentrasse ainda mais na calmaria, como se todas as respostas do mundo estivessem nas batidas do meu coração. — Encontre Ternura em meio a tempestade dela, pois você é o único que pode fazer isso agora.
A mulher desconhecida desapareceu na mesma velocidade em que havia surgido, no entanto não havia tempo para reflexões. Só havia uma direção a seguir naquele momento.
Adentrei as águas do lago com toda a coragem que tinha e que havia acabado de descobrir que existia.
Pulei nas trevas como se fosse feito da mais pura luz.
Mergulhei na tempestade de Ternura para salvá-la, ainda que isso significasse me perder em seu coração.