Cecilia ouvia pelo rádio do seu carro, enquanto dirigia de volta para casa a mesma história que seu chefe lhe contou há uma hora atrás: "Estamos entrando em estado de quarentena. Existe a possibilidade de que fiquemos assim por muito tempo, então passem no supermercado para comprar qualquer coisa que esteja faltando e fiquem no aguardo das próximas instruções. Até lá é recomendado trabalhar por Home Office."
Ela havia acabado de passar no supermercado para comprar mantimentos, mas na cabeça da brasileira Cecilia, estava tudo sob controle da grande potência que era a Itália. A situação era de emergência? Sim, mas tudo deveria estar seguindo algum protocolo já a muito tempo estabelecido com muito cuidado por aqueles que comandavam o país… ledo engano.
A situação já havia saído muito rápido do controle, talvez um orgulho coletivo cegou todos para a possibilidade de a ameaça já estar bem presente na vida dos italianos, três focos do vírus que, se espalhava rapidamente, pegou os italianos de surpresa e Ceci — apelido para os mais íntimos — se viu observando o abismo da solidão que tentava ignorar desde que havia chegado neste admirável mundo novo. Não haviam amigos e nem familiares para conversar, todos haviam ficado no Brasil e apesar da tecnologia ajudar na distância, era justamente esta tecnologia que faltava para sua família no sertão. Cecília era a ovelha negra da família. Foram gerações de nordestinos lutando para sair da miséria e Cecília, as custas do sangue e do suor dos seus pais, conseguiu ser bem-sucedida em alavancar seu estilo de vida. Os ricos herdam as riquezas de seus pais, os pobres herdam suas dores, mas Cecília obteve uma série impressionante de sorte e sucesso em sua vida. Num momento Cecília estava estudando web designer em São Paulo, num outro momento se envolvendo num projeto no Rio de Janeiro e quando se deu conta estava conquistando seu espaço no mundo, viajando para a Itália para negociar seu contrato. Se sentia falta da família? Com certeza, mas precisava fazer seu pé de meia antes de voltar e dar uma vida melhor para todos. Ceci não conhecia a língua direito, teve a sorte de que para as necessidades básicas de ir ao supermercado e trabalhar havia uma troca mínima de informação que era intermediada pelo seu conhecimento da língua inglesa, mas isso á distanciou de qualquer convívio social: qualquer piada que seria entendida em uma língua não era compreendida na outra, gírias, metáforas, maneirismos, eram todos perdidos numa má interpretação e, Cecilia precisava muito desse emprego, então para que não chegasse na chefia que ter uma estrangeira trabalhando em sua empresa seria uma péssima ideia, botou toda sua disposição em seu trabalho. Tudo que conhecia, tudo que devia ser falado era focado em seu trabalho…
A profissional Cecilia havia dominado sua vida de tal maneira que agora fechada em sua casa, sem o movimento das pessoas criando vultos em sua visão periférica, tudo o que restara era viver no abismo da própria solidão.
Abrir os olhos, café da manhã, redes sociais, trabalho, procrastinar, voltar para o trabalho, seguir pelas ruas desertas, ir até o supermercado, voltar pelas ruas desertas, fazer o almoço, assistir um filme, fazer exercícios, conversar com os pais e ouvir os vizinhos transando na calada da noite até dormir... esta era a rotina tão "divertida" de Cecilia. As notícias não eram boas e a próxima medida tomada foi fechar restaurantes e farmácias, tudo deveria ser entregue pelos próprios funcionários, no caso farmacêuticos e garçons agora trabalhavam de office boy também. Cecilia que, antes tinha o seu serviço de home office, agora pela falta de demanda havia sido dispensada até que a epidemia parasse e por mais que estivesse sofrendo com tudo isso, Cecília não se permitia chorar nem mesmo no isolamento do seu quarto, não era uma questão de ser durona, mas sempre teve o ímpeto de resolver problemas, de enfrentar o desconhecido primeiro para somente depois poder chorar. Sua mãe e seus irmãos mais novos sempre lembravam de uma história da qual Cecília foi protagonista: ainda com 7 anos de idade, sem ter conhecimento prévio da criatura, avistou uma lacraia ligeira correr em direção ao seu irmão que, ainda bebê brincava no chão em frente a porta de sua casa. A lacraia devia ter uns 20 centímetros de comprimento, todos gritaram ao ver o animal peçonhento, mas Cecília foi a única que não soltou um pio e, em seu ímpeto prodigioso, pegou a vassoura e teve consciência de acertar o inseto com a parte de madeira. A lacraia se retorceu e Cecília rangendo os dentes esfregou a vassoura no chão até que a criatura parasse de se mexer. Todos ficaram em silêncio, a mãe de Cecília brincava que até o bebê fez silêncio naquele instante. Quando Cecília teve certeza que já havia matado a lacraia foi quando se permitiu inconscientemente sentir toda a carga de medo que estava sentindo e se pôs a chorar. Cecília sempre foi assim, o ímpeto da ação primeiro e depois a emoção.
Para o azar de nossa protagonista em algum momento de sua rotina de ir e vir durante a fase de lockdown, ela foi infectada. Sentiu os sintomas, pagou a consulta mais o teste no hospital particular com uma parte mínima das suas economias e estava lá o resultado, “reagente” escrito em vermelho, nada que amedrontasse Cecília, encarou os fatos, ouviu a recomendação do médico, teve pequenas surpresas como saber que o seu seguro de vida não cobria e não previa a situação que se encontrava e lá estava Cecilia pagando um pouco mais do que deveria para ter os remédios certos entregues em sua casa. Se sentia frustrada por ter que pagar por algo que pegou por irresponsabilidade do país, mas aceitou a condição de permanecer de quarentena por 14 dias e, de maneira irônica, foi neste momento de isolamento total que Ceci tem seu primeiro momento de socialização:
As 17 horas de domingo o tédio domina na casa alugada de Ceci, a TV apresenta um programa de gincanas que já foi reprisado e visualizado pela protagonista 4 vezes. Dessa vez a brincadeira foi deixar no mudo e tentar lembrar o máximo de coisas antes de elas acontecerem. Ceci é boa nisso, mas se não há comparativos não tem como garantir sua eficiência nesta nova modalidade competitiva. Eis que Ceci ouve um barulho de bicicleta do lado de fora e ao abrir uma fresta da porta ela se depara com um rapaz todo trajado com roupas de enfermeiro, usando uma máscara e tentando desajeitadamente estacionar sua bicicleta. Ele também carrega uma daquelas mochilas enormes de entregadores de pizza, mas esta mochila veio num tom verde turquesa que combina com o seu uniforme e dá um ar de profissional ao sujeito... o que aos olhos de Ceci não é verdade, pois se divertiu com as três tentativas do enfermeiro que na altura da sua impaciência deixou a bicicleta no chão e seguiu até a porta de Cecilia com a sua mochila, sem percebê-la na fresta da porta, deu três batidas moderadas e esperou.
Oi, tudo bem moço das bicicletas? — Ceci respondeu ainda pela fresta.
O enfermeiro pulou no ímpeto do susto de ver os olhos dela pela fresta. Deu um sorriso desconcertado que, mesmo escondido pela máscara foi perceptível. Disse várias coisas fora da compreensão de Cecilia, que foi incompreendida muito mais pelo fato do enfermeiro falar italiano do que pelo fato do som estar sendo abafado pela máscara.
— I am brazilian!
Cecilia interrompeu esperando que o enfermeiro soubesse inglês, mas tudo que recebeu foi um "oh! i'm sorry...?" Indicando que não sabia nada além do básico. Ambos ficaram alguns segundos parados antes que o enfermeiro se lembrasse do motivo de estar ali: retirou uma sacola de sua mochila contendo um outro saco de papel dentro com algumas caixas de remédios, entregou para Cecilia, deu um "tchau" acenando com sua mão enluvada e foi embora em sua bicicleta, um pouco menos desajeitado do que quando chegou. Ceci ficou aguardando alguns segundos do lado de fora, tentando curtir ainda o máximo dos últimos resquícios daquela interação. Ceci, não sabendo se era por carência ou por motivos justificáveis, havia gostado do rapaz: negro de pele clara, com um sorriso inerente a máscara pois sorria com os olhos. Havia vontade de falar com o rapaz, mas seu problema com a língua daquele país se mostrou um oponente digno. Talvez Ceci havia perdido a oportunidade de conhecer o homem da sua vida, já estava até retirando a possibilidade remota de conversar com o enfermeiro novamente quando percebeu que no saco de remédio só haviam medicamentos o suficiente para 7 dias sendo que a quarentena duraria 14 dias. Alguém teria que voltar para repor o estoque e suas esperanças estavam depositadas nisso.
Cecilia já estava decidida e até que foi fácil: Em alguns minutos de pesquisa já havia conseguido se cadastrar num curso para aprender a falar italiano, já havia baixado uma apostila e um aplicativo para treinar nas horas vagas. É muito prático achar tudo que se precisa num isolamento pela internet, o único problema para Cecilia é que não havia motivação, não foi algo exigido para o seu emprego. Agora estava tão motivada que gostaria de pelo menos se apresentar em italiano. Passou todos os dias treinando e percebeu o quanto o tempo era relativo, havia passado uma primeira semana de isolamento baseada num demorado tédio, agora passava uma segunda semana rápida. Parecia que o dia comportava menos de 12 horas, sendo que Cecilia pulava as refeições as vezes, com o intuito de aprender um pouco mais.
***
O final de semana chegou e Ceci, ansiosa com o seu plano, acordou cedo e fez cartazes com frases em italiano, nada muito complexo ou demorado, estava somente se apresentando. Cecilia ainda não confiava muito em sua pronúncia, mas ei! O certificado foi adquirido e estava salvo para sua volta ao oficio. Este curso fez com que sua confiança fosse reconstruída, que neste momento de crise, não sabia por quanto tempo se manteria empregada, mas agora sabia que caso uma demissão acontecesse poderia conseguir facilmente outro emprego... Cecilia era muito competente e o vocabulário era sua última barreira.
Eram 5 horas da tarde quando a campainha tocou a primeira vez... tocou a segunda e a terceira vez também... Ceci havia perdido a noção do tempo e acabou cochilando, somente acordando na quarta campainha. Ceci atendeu a porta correndo, estava animada e foi apresentando as placas sem reparar em como estavam dispostas. O enfermeiro estranhou, mas achou divertido acompanhar tudo sem interferir.
"Olá, meu nome é Cecilia" — dizia a primeira placa.
"Obrigado por cuidar de mim" — a placa seguinte estava de ponta cabeça.
"Eu sou do Brasil" — estava de lado, mas o italiano entendeu.
"Eu trabalho como web designer" — outra placa de ponta cabeça.
"Tenho 27 anos, mas moro aqui faz 1 ano" — ainda faltavam 3 placas que Ceci, em sua pressa, havia deixado cair no chão da sala. Ceci percebeu, mas seguiu em frente. Sem a ajuda das placas, agora se aventurava pela sua duvidosa pronúncia italiana.
— Her... e você? Qual é o seu nome? É voluntário? — Cecilia disse se lembrando das aulas e fazendo um bom proveito disso.
O enfermeiro que havia ficado quieto todo tempo, esboçou um sorriso que só foi perceptível para Cecilia, pois seus olhos sorriam junto.
— Meu nome é Jean, sou enfermeiro, mas me voluntariei para entregar os remédios para aqueles que estão de quarentena.
Ela havia entendido tudo muito bem.
— Isso explica a sua falta de jeito com a bicicleta.
Jean olhou para a bicicleta atrás dele um pouco encabulado.
— Eu achei que seria melhor com o meu carro, mas o hospital teria que arcar com a gasolina, então preferiram comprar bicicletas.
— E não sente medo com todo o país deserto?
Em todo o país havia estabelecido o estado de lockdown, somente restaurantes e hospitais estavam funcionando, mas como o vírus pegou todos de surpresa, haviam presídios cujo os detentos entraram em rebelião ou fugiram
— Tive medo no início, mas mesmo deserto é tudo muito bonito, o Coliseu, o Panteão... A basílica de São Pedro é linda no pôr do sol.
Ceci ficou maravilhada e curiosa com a perspectiva de Jean, ela podia observar seus olhos brilhando de entusiasmo enquanto enumerava as belezas de Itália.
— Puxa... — disse Ceci imaginando todos esses lugares diante da luz do pôr do sol — gostaria de poder observar isso, já faz um tempo que me mudei para cá, mas não tive oportunidade de conhecer nenhum desses lugares.
— Eu posso tirar algumas fotos e te enviar por whatsapp — disse Jean ambíguo em sua intenção.
Cecilia deu uma risada sem graça, havia vontade de passar seu contato, mas também havia certa hesitação infundada em colaborar com alguém por quem se sentia atraída, talvez traços da cultura machista que viveu boa parte da sua vida, mas ainda tentava abandonar.
— Vamos fazer o seguinte — Cecilia disse decidida — eu tenho um projetor guardado na garagem, tire algumas fotos dessas paisagens durante a semana e venha me visitar no fim de semana que vem e, uma vez que já estarei curada, poderemos ver essas fotos no telão... o que acha?
Jean ficou um pouco confuso, não sabia se havia algum erro em sua pronúncia ou se havia acabado de ser convidado para um encontro, uma pequena brecha na regra do lockdown talvez…
— Pode ser… domingo, logo depois do expediente, combinado?
— Combinado!
"Deus, eu poderia beijá-lo agora mesmo se não estivesse com o vírus" — Ceci pensava entre turbilhões de desejo.
Ficaram um tempo em silêncio constrangedor, trocando olhares desconcertados e risonhos. Algum sensitivo poderia dizer que estavam trocando caricias por telepatia. Cecilia se tocou primeiro do silêncio demorado e resolveu botar um ponto final no flerte ao menear a cabeça em direção à caixa de entregador que o enfermeiro carregava. Ao olhar a caixa, o enfermeiro se lembrou qual era sua função original e lhe entregou o último pacote de remédios que faltava para Ceci se ver livre da doença e foi embora, não sem antes se atrapalhar um pouco para montar na bicicleta. Jean saiu com um pouco de vergonha e Ceci sorrindo apaixonada.
***
A semana passou rápido, mais um exemplo de como a percepção do tempo muda dependendo do que fazemos. Cecilia havia passado a semana em um limbo da imaginação, criando várias situações possíveis e agradáveis para o encontro. Algumas situações atrapalhadas, uma vez que Ceci não era exatamente delicada em sua intimidade. Se permitiu imaginar, de relance como seria a transa no dia e ruborizada se desfez do pensamento. Quase como premonição, se lembrou que toda vez que imaginava que algo muito bom fosse acontecer, o resultado era o extremo oposto e desta vez, infelizmente não seria diferente:
Campainha tocou, Cecilia atendeu com entusiasmo, mas havia algo estranho dessa vez… se deparou com olhos que não sorriam, mas que emitem desespero… houve arma, tiro e sangue.
Se não fosse pela música alta, talvez Ceci teria ouvido a briga do lado de fora. Se tivessem trocado contato talvez existisse uma forma de Jean avisar para Cecilia do perigo. Se Jean não tivesse feito um desvio para tirar algumas fotos a mais, não teria se atrasado e como consequência não teria sido rendido pelo presidiário foragido na esquina da rua de Cecilia, algo que foi de igual ignorância para os cidadãos italianos foi a situação de revolta dos presidiários durante o lockdown, o que permitiu uma rebelião com os piores criminosos a solta. Haviam muitas oportunidades de evitar a tragédia da qual Cecilia acabará de testemunhar e se sobrevivesse teria tempo para pensar em todas as oportunidades perdidas, mas infelizmente não vivemos de "e se… " E Cecilia teria que agir.
Atendeu a porta e viu o enfermeiro a sua frente, não reparou que ele estava arrumado, reparou no aviso que seus olhos davam, mas foi tudo num instante… a arma já estava apontada para o maxilar de Jean e foi somente uma puxada de gatilho e um pow! Que nem chegou aos ouvidos de Cecília, que observava a máscara de Jean saindo do branco e se tornando vermelho sangue. Somente no baque do corpo já sem vida de Jean no chão foi que Cecília despertou, "ele vai me matar também!". Cecília num ímpeto, tentou fechar a porta, mas o pé e o braço do criminoso impediram o fechamento. Ela tentou dar um passo para trás na tentativa de pegar impulso e fazer mais força na porta para machucá-lo, mas o criminoso só ganhou mais espaço, agora podendo colocar o joelho e o ombro. Cecília fazia toda força, mas sabia que era inútil.
Pow!
O criminoso deu um tiro paro o alto e assustou Cecília que no susto, largou a porta e correu se esconder pulando o balcão da cozinha.
Escondida debaixo do balcão, Cecilia tentava pensar nas variáveis. O show ao vivo que havia colocado na TV provavelmente estaria abafando o som de tiros... ninguém viria ajudá-la.
— Apareça, que se eu tiver que procurar vai ser pior.
Cecília sabia muito bem que de qualquer forma seria ruim, mas que o fato de ele ter dito isso denunciava que não sabia onde ela estava… havia vantagem nisso… tentou raciocinar os próximos passos e se lembrou do celular repousado em cima da mesa, mas para isso ainda seria necessário passar pelo assassino.
Pow!
Deu mais um tiro no notebook que parou de funcionar... assim o silêncio se fez.
— Olha... pode levar o que quiser... — disse Cecília denunciando sua posição — por favor… só me deixe em paz.
Estava deitada logo após o balcão da cozinha e se lembrou de uma gaveta com faqueiro logo acima da sua cabeça.
— Mas e se… Eu quiser só conversar com você...? — O assassino dava seus primeiros passos vagarosos em direção ao balcão.
Cecilia abriu a gaveta lentamente.
— Prometo não falar nada pra polícia... eu juro! — Cecilia dissimulou choro e desespero. Seu sotaque atrapalhava um pouco, mas as palavras não importavam tanto assim quando a atuação convence.
Escolheu o facão.
— Ora… eu sei que não vai contar… — o assassino havia chegado ao balcão. Mais um passo e Cecília estava ao seu alcance.
Não havia campo de visão para o psicopata, mas este se lembrou que sua vítima tinha cabelo afro amarrado em formato de coque e bastou que esticasse a mão por cima do balcão para que a alcançasse, puxando-a até que ficasse de pé, de costas para ele. Cecília podia sentir o olhar do puto percorrendo seu corpo, mas manteve a cabeça fria. O assassino encostou a ponta da arma na nuca de sua vítima.
— Aponte aonde fica o seu quarto.
Cecília apontou para um corredor que começava do lado esquerdo da cozinha.
— Obedeça e a arma não dispara — disse empurrando-a corredor adentro. Apesar da casa ser toda mobiliada, o quarto de Cecilia, por não gostar tanto dele, era simples por conter somente uma cama crua e um guarda-roupa com duas portas e uma janela, sem muito enfeite, sem muito capricho... algo que era familiar para o presidiário, mas que também incomodou uma vez que lembrava de sua cela.
Jogou sua vítima de bruços na cama, mas gostava de estuprá-las de frente, para que pudesse ver o rosto de desespero… um capricho que carregou durante longos anos e que agora seria sua sentença de morte.
Pegou sua vítima pelo braço com a mão direita e à virou, sua mão esquerda carregava a arma apontada para o alto, não apresentando perigo. Esperava uma reação de desespero pelo estupro iminente e tudo o que houve foi um "chuk" — o som abafado da faca, entrando com um movimento rápido em seu tórax — e uma pontada de dor forte que já havia sentido nos seus primeiros dias como um presidiário. Como um reflexo, o criminoso a jogou para longe e averiguou a região da dor, apesar da faca estar estocada na lateral do tórax, não havia sangramento e ao menos para ele isso era um bom sinal… sobreviveria àquela facada. Olhou furioso para sua vítima, mas viu que esta já estava saindo pela porta. Num misto de reflexo e coordenação ruim — ele era destro — o assassino atirou…
Pow!
Passou de raspão pelo braço.
Cecília continuou correndo pelo corredor com o seu ombro ardendo, não havia tempo para saber se era muito o sangue quente que escorria pela ferida do tiro de raspão em seu braço. Voltou até a cozinha, vislumbrou as pernas de Jean caído em meio a poça de sangue… "não pense nisso, não agora" pensou enquanto puxava a última gaveta da estante da pia. Pegou a sacola cheia de pregos que havia comprado para consertar o forro do teto do seu quarto e colocou tudo no microondas, podia ouvir o estuprador praguejando em sua direção, mas manteve a cabeça fria para botar 1 minuto e…
Pow!
Pular o balcão a tempo de sentir os pequenos estilhaços da porcelana que revestia o balcão causando pequenas feridas em suas costas.
O assassino havia abandonado qualquer tesão, agora era ódio puro, se pudesse raciocinar saberia que a melhor escolha seria fugir, uma vez que era muito provável que algum vizinho tivesse ouvido os dois últimos tiros, mas seu orgulho dizia que, nem se fosse para voltar para o presídio, teria que matá-la antes.
— Saia daí sua puta! — A arma mirada por cima do balcão, segurada firme pela mão direita garantiria que os próximos tiros seriam certeiros.
Cecília sabia o que aconteceria com mais alguns segundos de microondas ligado… precisava sair imediatamente dali.
O ímpeto gerado pelo ódio é algo fascinante, ele aumenta a força das pessoas, as vezes deixa mais forte, mas também anula o senso de inteligência e sua percepção: o assassino viu Cecília, fazer algo na cozinha, mas não se importou pois ainda tinha a sua arma, e para ele nada era mais poderoso do que aquela arma depositada em sua mão… nos passos mancos e lentos que o assassino deu em direção ao balcão, nem reparou no som do microondas ligado. Somente no momento que ficou com a arma apontada para a cabeça de sua vítima, que o presidiário teve a infelicidade de perceber um cheiro de queimado e um som de eletricidade e pedaços de metal vindo da sua esquerda. Olhou para a direção do barulho com sua arma ainda mirando para sua vítima. Pôde perceber fogo e um certo brilho azulado vindo do microondas, sua mente demorou para sair do seu momento de fúria e assimilar o que estava acontecendo. Esse foi o momento de desatenção do algoz que foi aproveitado pela Cecília para fugir correndo em direção à porta.
Não houve chance de mirar em Cecília de novo, talvez de olhar um último instante para ela, mas a visão foi ofuscada por um clarão e várias vespas metálicas e quentes que ferroaram todo o seu lado esquerdo, alguns parafusos acertaram em cheio o seu braço direito forçando-o a largar sua arma… a força da explosão foi tamanha que jogou o assassino no chão e havia tanta dor em seu corpo que demorou para entender que não conseguia falar porquê um prego havia fincado com precisão em seu maxilar e como último castigo estava cego e surdo pelo clarão.
Cecília se levantou intacta pois ao seguir em direção a porta, deixou o assassino entre ela e o microondas, fazendo somente com que a onda de impacto a derrubasse faltando alguns centímetros para cair no corpo do seu falecido crush. Cecília olhou para sua casa. O lugar onde o microondas repousava havia agora um buraco causado pela explosão, a estante próxima ao microondas estava em chamas e um clarão vindo de trás do balcão semidestruído indicava que o microondas e a estante da pia também devia estar em chamas, uma poça de sangue escorria em direção a cozinha vindo do assassino que balbuciava algo no chão. Cecília sentia nojo dele agora, seu desgosto pela vida daquele assassino e estuprador no chão, era tal qual perceber as tentativas de reação das lacraias que esmagava no sertão, metade do corpo esmagado e a outra metade ainda se mexia pela pura intenção maligna de machucar alguém antes de falecer. Viu a arma não muito distante de seu portador e com toda a serenidade que parecia discrepante com a situação, passou pelo assassino, pegou a arma no chão, apontou para a cabeça do assassino que num último momento conseguiu recuperar a visão, somente para ver os olhos de Cecília apontados com frieza para o seu rosto. Os olhos dela o assustaram muito mais do que a arma apontada para seu rosto, eram olhos frios, prontos para matar, parecidos com os seus. O presidiário tentou falar algo, mas só gorfou sangue. Cecilia, tal qual fazia quando matava uma lacraia no sertão, fechou no último segundo seus olhos, cerrou os dentes bem forte e…
Pow!
Pow!
Saindo de casa, Cecília podia ver pessoas observando das janelas de suas casas. Se lembrou que em todo esse tempo que ficou na Itália não fez questão de conhecer ninguém, seus vizinhos eram completos estranhos. Se sentou no gramado do seu quintal enquanto esperava pela polícia, "eles estão chegando, consigo ouvir as sirenes tocando" não havia qualquer sinal de felicidade quanto a isso… sequer sentiu alívio, até porque o pior já havia passado. Reparou num clarão vindo do chão um pouco à frente de onde repousava e percebeu que era um celular… o celular de Jean. Na tela trincada, permanecia uma foto congelada, que Jean havia tirado naquela tarde mesmo. Uma foto de seu rosto sem máscara, um sorriso lindo contrastando com o pôr do sol na praça da basílica de São Pedro. Cecília continuou observando a foto, mas já não aguentava mais, começou a chorar um choro compulsório, descarregou em seu choro toda aflição que havia passado desde que a quarentena havia começado, enquanto as viaturas se aproximavam, já não precisava e não queria mais se segurar: Cecília queria voltar para os braços de seus pais.