Maldição sazonal
Dante nunca gostou do Outono. Mora num município pequeno, conhecido por sua característica peculiar durante essa estação. Todas as tardes, o solzinho fraco dá lugar às nuvens mal encaradas e o vento frio as traz ao chão pouco a pouco.
A diferença das 16h para às 17h é terrível (para suas mãozinhas e nariz naturalmente gelados e sua facilidade em pegar qualquer tipo de gripe, virose ou resfriado), ainda mais para a visibilidade da estrada sinuosa que leva os carros daquele confortável fim de mundo até a capital e vice-versa. Isso também sempre o deixou… desconfortável. Mas, depois de conhecer Vince, aquilo começou a virar um mini desespero. Mini, ao menos por enquanto.
Por essas e outras, o dengo da manhã é algo real e pegajoso. Assim que o alarme toca às 6h, antes que o marido fosse às suas obrigações (e ele também fosse obrigado a escrever mais alguma linha de seu livro), Dante se enrola em Vince como uma sucuri em sua presa, mas não se preocupe, os ataques eram apenas de amor. Depois de uma longa sessão de beijinhos na bochecha e muitas reclamações de Vince implorando para que ele pudesse ao menos escovar os dentes antes de dar um beijo real, aí sim Dante está preparado para levantar e observar Vince romântica e melancolicamente até que se desse a hora do terrível adeus.
Vince, aos olhos do amado, tinha uma paciência surreal. Dante mal conseguia esperar o café terminar de coar nos bons e velhos coadores de pano e tomava o café que ia sendo coado em goles, e isso era apenas porque odiava profundamente o gosto do café de cafeteira, senão seria usuário afoito dessa tecnologia. Ainda assim, mesmo que lhe desse uma pitadinha de raiva de vê-lo gastando um tempo imeeeeenso em cada passo daquilo que deveria ser a injeção de adrenalina para garantir o funcionamento do resto do dia, era de alguma forma esplêndido e hipnotizante ver o carinho que Vince conseguia demonstrar, mesmo se fosse apenas despejar o café no moedor. Além disso, era uma mistura de raiva e orgulho ver o quão atraente ele era fazendo isso: raiva por um ser humano existente conseguir ser tão bonito e orgulho por esse filho de Afrodite, Oxum ou qualquer deusa da beleza ter escolhido passar os dias ao seu lado. (Ponto pra ele!)
Daí adiante é só choradeira: Vince toma banho, se arruma, revisa a mochila, alimenta o gato, tudo sob o olhar tristonho e pidoncho do marido (e do gato, diga-se de passagem, que também chorava toda vez que Vince saía). Mas não adiantava, não tinha muito o que fazer, ele precisava ir para a capital e Dante precisava… lidar com isso. Vince sai todo dia às 08h.
O motivo de tanta relutância pela parte dele? Aquela cidadezinha tinha uma maldição sazonal: às 16h30, pontualmente, a cidade era coberta por uma neblina grossa, espessa, densa… era digna de filme de terror! Além de gelar a pele, gelava a alma de Dante todos os dias. Mal se dava para enxergar um palmo adiante e quase todo dia vinham notícias de acidentes. Pensar que algum desses poderia acontecer com Vince era mais do que ele podia aguentar, então ele ficava num estado que ele mesmo chamava de mal de Outono.
Até às 14h ele conseguia esquecer: fazia almoço, limpava a casa, limpava a caixinha do gato, lia o jornal (o que era estranhamente antiquado, mas ele ainda mantinha o costume). A partir daí, o horário em que costumava escrever em qualquer outra estação, vinha o mal de Outono, aquela ansiedade sazonal que lhe roía a cabeça começando pelas beiradas.
Abre o laptop e encara uma página em branco, sem conseguir pensar em nada que siga a última linha que escreveu. O personagem aguarda ansioso a continuação de seu enredo, mas a mente de Dante está bem longe da parte final de sua trilogia. Fecha o laptop, zangado consigo mesmo e com a inquietude. Decide que vai se distrair às 15h20.
Quase sem querer, põe-se na janela, olha a neblina lá fora, que veio mais cedo para lhe afrontar, e volta a atacar as unhas com os dentes (coisa que já havia prometido que iria parar umas mil vezes naquela semana). Tenta achar algum quê de qualquer coisa em toda aquela neblina, cutuca o gato que está a fazer o mesmo (mas por outras razões) e inferniza um pouco o bichano até ter alguns arranhões para reclamar de noite. Vai à cozinha, belisca alguma coisa (o estômago está dançando demais para comer), volta à sala e senta-se no sofá, agarrado com a almofada. Liga a televisão e procura algo para assistir no aplicativo de streaming, mas sequer presta atenção nos títulos. Vai até o quarto, pega o tapetinho e senta perto da varanda, acende um incenso pra acompanhar. Tenta meditação, yoga e o pouco de pilates que aprendeu, mas nada o faz relaxar. Por fim, apenas suspira e se senta novamente em frente à tela em branco do laptop.
Dante quase pode sentir o olhar de julgamento típico de seu personagem recair sobre si através da tela, mas mesmo assim não tem muito o que possa fazer. Não é como se ele não estivesse tentando! Tentar, isto é algo que ele faz, mesmo sabendo quando vai dar errado.
Decide tomar um leite quente, senta na poltrona da sala olhando para o nada. Se pergunta o que seu protagonista faria, numa última tentativa de trabalhar no livro no dia. Não chega numa resposta: o protagonista não se meteria nessa situação. Suspira, um pouco frustrado consigo mesmo. Tenta lembrar o que a terapeuta falou na sessão passada, mas os conselhos já são nublados na memória como o dia lá fora. Suspira, um pouquinho ainda mais frustrado. Ele só quer que chegue o inverno logo, afinal, apesar de mais frio, pelo menos na estação seguinte o nevoeiro vai embora.
Tenta seguir a rotina, toma um banho, alimenta o gato, faz a janta, se exercita, come um pouco, liga a televisão e assiste, sem prestar atenção no que quer que seja que passa na tela, o primeiro canal que dá na telha. Zapeia um pouco, tentando se instigar a achar algo que o relaxe ou inspire, mas por fim acaba caindo na mesma novela que sempre o deixa irritado. Ao menos ele se distrai um pouco.
Novamente, abre o laptop. Dessa vez vem algo, não é muito de seu agrado, mas ele pode resolver isso depois. Escreve um pouco, o suficiente para não sentir que foi mais um dia perdido, e depois volta a se jogar no sofá preguiçosamente.
Por fim, a porta se abre às 23h50 dando fim à agonia daquele dia e o bichano, encostado na janela até agora, vai miando até a entrada, desejando boas-vindas ao dono favorito (ambos sabiam que ele era). Dante o acompanha, com um quê de pressa desesperada. Dante o abraça forte e dá mil beijinhos dizendo o quanto o ama, então o pergunta de seu dia e ouve com todo o interesse do mundo, pois se havia algo que era interessante, era o ambiente universitário caótico e cheinho de fofocas que Vince frequentava, além do habitual estresse do estágio. A calmaria volta, sucedendo a tempestade do dia seguinte. Mas assim Dante vive, um dia por vez, até que o Outono e a neblina passem (e, quem sabe, ele consiga voltar a escrever mais um pouco do livro antes que a editora vá à loucura).