"Não acredite em nada do que você ouve e em metade do que você vê."
— Edgar Allan Poe
Estou afundando. Sinto meu corpo pesado, como se algo estivesse me empurrando para baixo. Tento mover meu corpo e gritar por ajuda, mas não consigo. Algo segura e aperta meu pescoço, impedindo que qualquer palavra saia. Ainda que não houvesse nada, seria impossível gritar ou falar algo; a paralisia das minhas cordas vocais me impede.
Tento desesperadamente abrir os olhos e descobrir quem é o meu possível algoz, mas, quando o faço, tudo que vejo é a escuridão. Lanço rapidamente minha mão esquerda para o lado, a fim de alcançar a mesa de cabeceira. Minha mão bate em algo que cai e se estilhaça no chão. Tateio a superfície de madeira até encontrar uma pequena corda flutuando: o abajur. Puxo, e a luz fraca — mas suficiente para me fazer enxergar — ilumina o quarto.
A adrenalina se esvai do meu corpo e me faz perceber a dor. Minha respiração está ofegante; tento puxar o ar, mas é como se algo ainda estivesse me sufocando. Levo as mãos ao pescoço, mas não há nada. Pigarreio, e um sabor metálico invade meu paladar. Inclino o corpo para fora da cama e abro a boca. Uma baba avermelhada cai lentamente, deixando um rastro pela colcha branca até atingir o chão. Cuspo tudo com dificuldade, minha respiração ainda está pesada.
Coloco os pés no chão, mas pequenos cacos de vidro perfuram a sola. Ao olhar novamente para baixo, percebo que o que se estilhaçou foi o meu copo de água, que, como de costume, fica ao lado da minha cama. Tento retirar os cacos e caminho até o banheiro. A luz branca acende automaticamente pelo sensor. Inspeciono os pés, aliviada ao perceber que o vidro não chegou a perfurar a carne.
Ligo a torneira e faço uma concha com as mãos para levá-la à boca com a água, mas, em vez de beber, tento lavar e tirar o gosto do sangue. Evito olhar para o espelho e volto para o quarto. No relógio digital, está marcado 06:00. O sol está nascendo, mas as cortinas blackout impedem que os raios solares invadam a casa.
Meus olhos param na foto na mesa de cabeceira, e solto um suspiro de alívio. Foi apenas um sonho. Talvez eu devesse ter ido na viagem também. Casais não costumam ficar longos dias separados logo após uma semana de lua de mel. Suas palavras antes de sair chegam a minha mente “Não precisa ter medo, eu construir essa casa para você”. Preciso me adaptar a essa nova vida; nem sempre ele estará aqui para me proteger, penso, sorrindo. Abro as pesadas cortinas, que revelam as paredes de vidro que cercam o quarto, assim como o restante da casa, exceto o porão e os banheiros. Lá fora, uma floresta imensa envolve o local, longe dos olhares curiosos. Vou a cada cômodo e abro as cortinas; a casa está completamente iluminada. O medo que sentia antes desaparece.
Alguns animais se aproximam do vidro — cervos e corças. Seus olhos quase saltam das órbitas enquanto me observam pela janela da sala de estar. Desvio o olhar e caminho em direção à cozinha para preparar meu café da manhã.
Caixa 1
Fita n° 1
Um estalo me tira dos meus devaneios. Deixo o livro de lado, levanto do sofá e caminho até a outra extremidade. A escuridão preenche o ambiente, e sinto um medo crescente. Fecho a cortina, mas o barulho persiste. Seriam os animais da floresta? Porém, percebo que o som vem do porão.
A porta do porão fica próxima à cozinha. Caminho devagar até ela; o estalo se repete. Minha mão esquerda toca a maçaneta e a gira. Está escuro lá embaixo. Aciono o interruptor, e as luzes se acendem. É um porão pequeno, então consigo ver todo o cômodo da escada. Observo um rato tentando entrar em uma caixa. Pela segunda vez no dia, suspiro aliviada, constatando que o barulho era apenas do roedor. Corro até lá para enxotá-lo; ele foge para um buraco e desaparece de vista.
Minha curiosidade se volta para a caixa. Abaixo-me e a abro. Há várias caixas dispostas contra a parede, cada uma numerada. No total, são 12. A primeira, assim como as demais, está empoeirada. O conteúdo são DVDs antigos, datados, mas os números nas etiquetas estão borrados, tornando difícil identificá-los. Ao lado das caixas, vejo um aparelho sobre uma televisão antiga. Nunca mais tinha visto algo assim: um reprodutor de DVDs.
Mordo a parte interna da bochecha, ponderando se devo ou não assistir ao que tem ali. Acabei de me mudar, mas, logicamente, a casa agora também é minha, certo? Tento me convencer de que assistir o que quer que seja não seria uma invasão de privacidade.
Levo o aparelho para o andar superior, na sala de televisão, e volto para buscar uma das caixas. Percebo que o reprodutor de DVD tem um cabo compatível com a televisão moderna de tela plana na sala. O contraste entre os aparelhos me faz rir. Conecto o cabo, ligo ambos os dispositivos e insiro a primeira fita. Fico aliviada ao ver que o aparelho ainda funciona.
Sento no sofá antes de clicar no controle para iniciar o vídeo. Na tela, alguém segura uma câmera. Reconheço que é uma daquelas câmeras analógicas antigas, como as que aparecem em vídeos de adolescentes mostrando "relíquias" dos pais nas redes sociais. A câmera é colocada sobre uma superfície branca, e então a pessoa que a segurava – um homem – aparece.
Um leve fio de reconhecimento surge na minha mente, mas logo se dissipa. O homem é jovem e usa roupas típicas da década de 90. Ao fundo, uma mulher bem vestida surge em cena. Parece ser uma festa de aniversário: há um bolo e balões. Ela ri, aparentando felicidade, enquanto uma música – jazz, mais precisamente – toca ao fundo. A câmera se mexe, e vejo um rádio antigo na mesa do bolo. É de lá que vem o som.
O homem se afasta da mulher, caminhando em direção à mesa. Nesse momento, a expressão da mulher muda. Ela olha diretamente para a câmera, e seu rosto adquire uma tensão visível. Ela abre a boca, como se estivesse prestes a dizer algo. Sua face se aproxima mais da câmera. Consigo perceber detalhes: o batom vermelho, os olhos castanhos... exatamente como os meus.
De repente, uma mão atinge a câmera, que cai, e o vídeo é interrompido. Meu corpo tensiona no sofá, e eu pulo assustada quando tudo fica escuro. Uma chuva torrencial e inesperada atinge os vidros da casa. Meu coração dispara, e balanço a cabeça, tentando afastar a cena perturbadora que acabara de assistir. Preciso dormir.
Caixa 1
Fita n° 2
A lente está apontada para uma superfície branca e granulada, impossível de distinguir até ser direcionada para o mar. Eles estão em uma praia – o mesmo homem, a mesma mulher, o mesmo sorriso, e a mesma expressão de pânico quando ele corre em direção ao mar. É um dia cinza, o que torna ainda mais estranho o fato de estarem em uma praia que parece deserta.
Dessa vez, ela é mais cuidadosa e olha para trás antes de se aproximar da câmera. Ela se abaixa na areia, com o rosto cada vez mais próximo da lente. Em um gesto involuntário, começo a me aproximar da televisão, ficando na beirada do sofá. A mulher leva a mão esquerda à barriga, acariciando-a, e esse gesto me deixa desconfortável. Encosto meu corpo no sofá.
Ela começa a abrir a boca, mas antes que consiga dizer algo, vejo a sombra do homem se aproximar e desligar a câmera. Tudo fica escuro.
Caixa 1 - Fita n° 6
Ela está chorando e gritando. É a primeira vez que a vejo na câmera sem o homem ao seu lado. Seu rosto se distorce em uma expressão de sofrimento e dor, que logo se altera para uma de alívio. Seus cabelos não estão visíveis, pois uma touca hospitalar branca cobre até a testa. Mesmo assim, consigo ver gotículas de suor quando alguém faz um zoom na câmera.
A mulher está deitada em uma cama de madeira, com uma colcha estampada com motivos florais – aquelas típicas de casas de avós. Fico me perguntando onde está o homem, mas a cena seguinte responde à minha dúvida. A câmera é deixada sobre uma superfície plana e alta. Agora consigo ver toda a extensão do quarto, que é grande, com uma cama de casal no centro, um armário ao lado e uma janela do outro lado, fechada.
Meus olhos se arregalam ao perceber o que está acontecendo. Ela está dando à luz. A cabeça da criança já está saindo, e o homem se aproxima para ajudar. Ele puxa cuidadosamente e, com uma tesoura que tira do bolso, corta o cordão umbilical. Há muito sangue. Meu estômago embrulha. Corro para o banheiro e vomito um líquido amarelado no vaso sanitário. Antes de voltar à sala, lavo a boca. Por que eles não estão em um hospital?
O DVD já terminou. Volto para o ponto em que parei. O homem passa a criança para a mulher, que segura o bebê nos braços de forma protetora. Seus olhos se voltam para a câmera, mas, novamente, antes que ela consiga dizer algo, ele desliga.
Caixa 5
Fita n° 10
Todas as caixas têm 12 DVDs, com exceção dessa, o que me deixa apreensiva para saber o motivo. Em todas as fitas, há uma mulher jovem que aparece ao lado do homem, que, com o passar das caixas, ganhou novos traços em decorrência do processo de envelhecimento. Elas são iguais: cabelo castanho, olhos castanhos claros, lábios pintados perfeitamente com batom vermelho e a expressão de medo quando ele se afasta da câmera. Todas estavam grávidas.
A mulher da caixa número 5 é a mais ágil. Na fita de número 6, percebi os movimentos de seus lábios enquanto ela pedia ajuda. O homem estava no fundo, em uma paisagem desbotada pelo inverno, parecia ser um campo. Estavam apenas eles dois naquele lugar, sem ninguém por perto para ajudá-la. Um frio sobe pela minha espinha quando olho pela parede de vidro. Está escurecendo, apenas as árvores, os animais, e nada mais. Eu estou sozinha. Ninguém pode me ajudar. Mas eu não sou essas mulheres.
A fita de número 10 está começando. A mulher está em uma cozinha, e o homem ao lado parece cortar algo no balcão de fórmica. Pela decoração, parece ser o início dos anos 2000. Eles estão de costas. O cabelo dela está preso em um rabo de cavalo. Depois de alguns segundos, ela vira e corre na direção da câmera, tão repentinamente que eu me assusto, levando a mão ao peito. “Eu também vi. Fuja”, ela diz. A figura do homem se volta para ela, agarra seu cabelo e puxa violentamente para trás, jogando-a no chão.
Não consigo ver mais nada, apenas um barulho violento de carne sendo esmagada, enquanto o único cenário é a cozinha com o balcão de fórmica e ladrilhos verdes. Após 10 minutos, a fita para. Fico pensando no bebê que a mulher da caixa 5 teve na fita 4. O que vai acontecer com ele? Agora eu entendo por que a caixa 5 tem apenas 10 fitas.
Caixa 8
Fita n° 8
Inclino minha cabeça, com as mãos apoiadas no ladrilho gelado do banheiro enquanto a água do chuveiro cai sobre mim. Coloco tudo para fora. Estou sentindo enjoo com frequência nos últimos dias; além disso, o conteúdo das fitas me deixa angustiada, com uma sensação ruim, como se algo fosse acontecer.
Levanto a cabeça e desligo o chuveiro, saio do banheiro, me visto e volto para a sala. Estou na fita de número 8. Nas últimas noites, assisti ao conteúdo das outras caixas e fico me questionando por que ele tem esses vídeos. É estranho, mas eu preciso assistir tudo para descobrir. Antes de sentar no sofá, aciono o dispositivo de segurança através do celular. É impossível alguém entrar ou sair, a não ser com a senha. Mais relaxada, sento e aperto o botão, aguardando a fita começar.
Inesperadamente, um bebê vestido com um macacão azul e uma camisa branca aparece. Parece ter menos de um ano. Ele agita as perninhas no ar, está deitado em um pano xadrez, vermelho e branco. Uma mão, que eu associo ao homem, aparece na imagem fazendo cócegas na criança. Depois, a câmera foca na mulher, que, antes de perceber que estava sendo gravada, exibia uma expressão de tristeza. Ela logo começa a sorrir quando o homem pigarreia. Ela está claramente sendo coagida.
Não termino a fita. Retiro o DVD do aparelho, assustada demais para continuar, e eu não preciso assistir à de número 12 para saber o que acontece. É a última fita e o último dia da vida daquelas mulheres.
Caixa 10
Fita n° 6
Sem pregar os olhos por quase uma semana, continuo a analisar os conteúdos das caixas. Estou na caixa número 10. Observo o homem; alguns fios grisalhos começam a surgir, provavelmente ele tem cerca de 40 anos. Faço a conta mentalmente, mas meu cérebro prefere guardar a desconfiança no inconsciente. É mais fácil assim. A psique não sofre, eu não sofro.
Nesse vídeo, a mulher tem olhos obstinados, é visivelmente uma lutadora, diferente das outras. Manchas arroxeadas, amareladas e esverdeadas cobrem parte do seu rosto e braço. Ela está tentando resistir. Mas, depois de assistir às outras fitas, eu sei que é impossível.
Não foi ele quem iniciou a gravação, mas sim ela. A mulher está em um cômodo com cerâmicas brancas até o teto, penso ser um banheiro. Seu rosto foca e desfoca; às vezes ela para e respira fundo antes de tentar falar algo. Está apavorada e com medo de que ele apareça.
“Eu sei que você está assistindo. Ele também sabe.” Sua voz sai arrastada, quase como um sussurro. Preciso retornar ao segundo anterior para entender, e quando percebo o que ela diz, tudo o que estava no inconsciente se torna consciente. Olho para os lados, esperando ver alguém ali. Meus olhos percorrem a casa de vidro; eu não percebi, mas já é noite. Corro fechando as cortinas.
Meu coração acelera em um ritmo frenético. Paro perto do sofá e começo a respirar o mais calmamente possível. Eu preciso sair daqui.
Caixa 12
Fita n° 12
Na última fita, a mulher usa uma máscara descartável, igual à do homem. Estão em um parque; pela primeira vez, vejo algumas pessoas passando ao fundo, mas ainda assim afastadas. Não há criança na caixa 12, e não sei o motivo, mas percebo que a fita se passa durante a pandemia do Covid-19.
A câmera deve estar apoiada em uma árvore; a máscara esconde a barba grisalha do homem que aparece na fita 11. É impossível decifrar a expressão da mulher, mas eu tenho certeza de que ela está apavorada. Seus olhos tentam se comunicar. Desde a primeira fita da caixa 1 até esta última, há algo imperceptível em comum: todas parecem saber o que vai acontecer. Como se elas já soubessem o próprio fim.
Eu também sei o que vai acontecer, mas pretendo ter outro fim. Olho mais uma vez para o homem na tela antes de desligar a televisão. As caixas estão todas empilhadas agora. Vou em direção à escada, mas antes de pisar no primeiro degrau, um som chama a minha atenção, algo batendo no vidro. Olho para as paredes cobertas pelas cortinas, assustada. Pode ser os animais, penso, mas o barulho não cessa.
Sem pensar, corro escada acima, indo até o quarto. Fecho a porta violentamente e pego o celular na mesa de cabeceira, ao lado da foto da lua de mel. Tento ligar o smartphone, mas a tela continua escura. Não, não, não. Está descarregado. Como, em pleno século XXI, eu deixei o celular descarregar? Estive tão focada nas fitas. Não adianta carregar, eu preciso sair.
Desço as escadas. Assim que chego no térreo, sinto uma dor lancinante na barriga. Levo minha mão àquela região, e a imagem da mulher da caixa 1 protegendo a barriga invade a minha mente. Não, penso, não pode ser. Tento focar no presente e garantir a nossa saída daqui, olho para cada parte do andar inferior da casa, que foi construída em conceito aberto. Meus olhos esquadrinham do teto ao chão, procurando alguma câmera ou algo assim, mas não há anda. O barulho cessou.
“Ele também sabe.” Lembro da fita 12. Cada fita parece um quebra-cabeças formando uma única peça: “Eu também vi. Fuja”. Elas tinham assistido também, estavam tentando alertar a próxima. Eu sou a próxima.
A urgência que já existia cresce ainda mais dentro de mim. Vou até a porta da cozinha e tento abri-la. Lembro do sistema de segurança e, como estou sem celular, sei que vou precisar desativá-lo manualmente. Ao lado da porta, o dispositivo de segurança acende quando clico na tela. Digito a senha apressadamente, mas a tela fica vermelha, sinalizando que errei. Digito novamente, mas continua errado. Impossível, eu lembro perfeitamente a senha. É a data do casamento, foi mês passado. Digito mais uma vez, mas a tela continua vermelha. Bato no dispositivo, xingando, e percebo que, desde que entrei nesta casa, não precisei desativar o sistema para sair ou entrar.
Uma onda de medo invade o meu corpo. Ele também sabe. Por um instante, por puro instinto de sobrevivência, penso em quebrar a parede de vidro, mas é impossível. Esse vidro é resistente e não há janelas, apenas claraboias que também abrem com um aplicativo no celular.
Penso no que fazer, mas não há escapatória. Estou presa em uma caixa de vidro. Realmente essa casa foi feita para mim. Antes que eu possa tentar algo, a campainha toca. Viro-me para a entrada e fico estática, como se não me mover fosse fazê-lo ir embora, mas é claro que isso não acontece. É a casa dele. A campainha para e batidas violentas chegam à porta da frente. Continuo imóvel. A batida para, conto até dez e nada acontece. Começo a chorar. Será que ele se foi? Um soluço escapa da minha garganta. Levo as mãos à boca enquanto meu corpo treme.
O silêncio é interrompido por uma batida brutal na porta da cozinha atrás de mim. Viro-me assustada. Penso em correr, ficar escondida no quarto ou no porão, mas sei que não vai mudar nada. Abro a porta e encontro o homem parado. Seu sorriso contrasta com as lágrimas e soluços que escapam de mim. Eu sou a caixa número 13.