Lua de Sangue
Pedro Felipe
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 25/10/16 23:29
Gênero(s): Terror ou Horror
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 15min a 21min
Apreciadores: 10
Comentários: 1
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Palavras: 2545
Este texto foi escrito para o concurso "Concurso de Halloween" No Concurso Oficial de Halloween da Academia de Contos, apoiado pela DarkSide Books, convidamos os participantes a escreverem textos no estilo "creepypasta", ou seja, obras detalhadas de terror escritas com o objetivo de assustar os leitores e deixá-los se perguntando o que é real e o que é ficção na história. Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único Lua de Sangue

Era dia do ritual da lua de sangue, uma data especial pra minha tribo, onde todos os membros iriam se reunir para a celebração da passagem de uma nova fase na minha vida e na de meus irmãos mais novos : Upiara e Iamana, seriamos enviados para dentro da floresta negra e ao nosso retorno seria comemorado o início da colheita e o afastamento dos maus espíritos. Dizem que a floresta e a lua pediam que os 3 curumins mais novos fossem enviados para um teste de sobrevivência e amadurecimento e que se guiassem pela floresta, ao saírem da mesma deixariam nela seu espirito de juventude e renovação que seria usado pra cultivar os frutos da nova safra. Por anos, eu, Anahí, escutei lendas e histórias sobre curumins destemidos e corajosos que sobreviveram aos perigos da floresta e voltaram dando orgulho a sua tribo, em mim foi incubado o sentimento de que o medo não me dominaria e não me tomaria a honra de ser uma heroína para o meu povo. Mas aconteceu algo naquela floresta que não devia ter acontecido...algo que vai sim ser eternizado, mas não pela conquista e sim pela tragédia, pelo medo, pelo pavor e a chuva de sangue, por gritos desesperados e pelo pânico que eu sinto agora ao escrever minha última carta, para lembrar que os atos de vocês tem consequências e podem acordar coisas que nunca deveriam ser despertadas, coisas tão escuras quanto uma noite de lua de sangue, de um eclipse obscuro, macabro e perverso, não deixem as vozes, o toc toc entrar na sua cabeça como ele está fazendo comigo agora, escutem meus gritos de tormento para que nunca se esqueçam que é na lua de sangue que ele uiva e agora ele caminha em minha direção...é o meu fim e se ele te encontrar, o seu também.

Estava afiando minha faca de pedra, quando Upiara com seu arco e Iamana com sua flauta entraram com tudo em meu quarto

- Tá pronta pra hoje a noite ? – disse Upiara

- É claro que estou – brandi soando corajosa – e vocês dois medrosos?

Nesse momento olhei pra Iamana e ele tremia tanto que sua flauta parecia ser balançada por um forte vento de inverno

- É claro que estamos, vamos até o final e o papai vai ficar orgulhoso de nós, não é maninho?

Upiara bagunçou o cabelo de Iamana sorrindo

É...É...quer dizer, eu acho que sim – respondeu Iamana com um tom medroso

Nesse momento eu que sempre fora corajosa, sentia em meu coração uma pontada de medo, como se uma flecha estivesse com a ponta levemente enfiada em meu coração, não era medo por mim, mas por eles, não nego que sentia certa angustia só em pensar de perder os dois pra aquela floresta, era um sentimento misto de bravura de enfrentar o desconhecido e deixar minha tribo orgulhosa e a insegurança de não conseguir sair viva por mais que fosse só uma floresta. Mas minha vó, sempre sabia, alertava pra que a gente nunca subestimasse as coisas, ela dizia que as folhas e os arbustos podiam esconder em suas sombras bem mais que animais rastejantes...e de repente aquelas palavras dela que pareciam só querer assustar uma criança como eu, pareciam aterrorizantes. E aquele pensamento tomou conta de mim e como uma chama no mato, se alastrou tarde a dentro, até que olhei pra fora e o sol se punha sabiamente, era como se ele estivesse fugindo de algo...ou de alguém, como se ele tão imenso, estrela imponente da manhã temesse a noite...a escuridão.

Olhei pras flechas que levaria comigo e pensei “Nessa noite eu abandono meus brinquedos e pego minhas armas, nessa noite deixo de ser uma curumim pra ser uma mulher, uma índia da tribo Nakar, essa noite deixo os medos para minha tribo se orgulhar”, nesse momento meu pai entrou e disse:

- Escureceu, é chegada a hora, todos te esperam lá fora

Sai com uma lágrima no rosto, com coragem em mãos e destemida como nunca. A tribo toda estava reunida, os pescadores, os caçadores, as parteiras, as curandeiras, todos sorriam, mas era notável a preocupação na face de alguns. Olhei pra oráculo de nossa povo e ela sussurrava assustada olhando pra entrada da floresta, como se ela esperasse por algo ruim, senti que ela queria dizer algo com sua aparência tremula, ela tremia como a chama de uma vela prestes a ser apagada por um suspiro...era tremor de medo. Não deixei que essa paranoia tomasse minha cabeça, olhei para os meus irmãos que examinavam curiosos o caminho de terra que nos levaria ao nosso destino. E então olhei pra cima e maravilhada avistei lá em cima, imponente e tão vermelha quanto uma veia sanguínea...a lua de sangue, era o marco de uma nova fase. Minha vó Jaci, chegou caminhando até mim e me entregou uma pedra, era um quartzo azul, de uma beleza e um brilho raro

- Pegue querida, afasta o espirito profano – disse ela

- Que espíritos vó? Achei que fossem só histórias – disse rindo sem conseguir esconder o tom de pavor em minha voz

- Toda história tem seu tom de verdade Anahi, assim como em cada canto obscuro dessa densa floresta habita um perigo e lembre-se, existem coisas que devem permanecer adormecidas...agora vá, os seus irmãos lhe esperam, cuide bem deles meu bem e não ouça vozes alheias

Aqueles dizerem me apavoraram, mas repeti pra mim mesma “são só histórias e eu serei parte delas porque me tornarei uma lenda”, fitei a floresta minunciosamente, olhei pra trás, vi meus parentes me desejando sorte, ergui a mão e gritei “NAKAR”, a minha tribo urrou, mas por algum motivo, eu sentia que aquela reunião não tinha clima de celebração...mas sim de funeral. Ajeitei minha faca na cintura e caminhei em frente, dei a mãos para os meus irmãos, olhei para eles, sorri tentando parecer confiante e pedi aos deuses que estivessem conosco aquela noite, todos eles. Caminhamos por algum tempo pisando em galhos e folhas mortas, o que provocava um barulho que parecia incomodar os seres da floresta naquele silencio mórbido, Iamana olhava pros lados aflito a cada passo que dávamos e Upiara andava cansado capengante, até que encontramos um riacho e paramos pra beber

É tão escuro e sombrio – disse Iamana

Ele tinha razão, olhei pra trás e era como se a luz do mundo já não existisse mais, estávamos em um reino de árvores e sombras, olhei pra água e nela vi o reflexo da lua e foi ai que me assustei, a lua não só parecia mais vermelha, como também parecia ter um sorriso macabro, talvez fosse só impressão minha, mas é como se ela estivesse esperando por algo...

- Quietos – disse Upiara

- O que foi ? – retruquei assustada

Olhei e Iamana fazia o sinal de silencio com seu dedinho na frente da boca.

- Escuta – Upiara

Foi ai que percebi que um ruído estranho se alastrava, como se alguma coisa estivesse sendo dilacerada, era o barulho de carne sendo rasgada, o barulho de morte que os caçadores tanto me falavam. Era a primeira vez que eu escutava e era...paralisante. Depois de segundos, escutamos um uivo, mas não era qualquer uivo, era uivo de algo que não pertence a esse mundo, era como um grito gélido, pálido, macabro e cheio de maldade.

- O que foi isso? – perguntou chorando Iamana

- Foi um lobo, só isso – respondi

Eu sabia que estava mentindo pra eles e pra mim mesma, mas estava aterrorizada demais pra pensar no que seria aquilo. Corremos desesperados e quando olhei pra trás...vi algo que nunca devia ser visto, um vulto tão escuro quanto um eclipse, tinhas pés de bode, um corpo coberto por pelo e a sua cara era de um lobo negro, cheia de dentes sedentos por sangue e no seguinte instante seu rosto era pálido, como a de um feiticeiro, ele andava se contorcendo como um cadáver que havia acabado de se levantar de um sono profundo. Quanto mais eu olhava, mas a minha sanidade acabava, acelerei o passo e corri, corri, minhas pernas pareciam ser a única parte do meu corpo ainda não tomado pelo pavor, corri por tanto tempo ao lado de meus irmãos que quase desabei, corremos em direção ao nada nos perdendo da trilha, até chegarmos a uma vila que parecia ter sido abandonada por sua tribo. Nos escondemos dentro de uma cabana e ali choramos, um abafando o choro e a respiração do outro. Escutamos passos, um vulto passou bem na nossa frente, até que o silêncio imperou de novo para ser quebrado por uma risada macabra, era como se ele soubesse onde a gente estava, mas estivesse se divertindo com isso, se alimentado do nosso medo...é como se ele tivesse a certeza de que não havia escapatória...

Escutamos os passos se perderem novamente na mata e então olhei para os meus irmãos petrificados, apavorados, em estado de pânico

- O que....o que...tremulou Iamana

- Era aquilo? Completou Upiara

- Euuuuu...não, eu não sei – A minha boca parecia soltar cada palavra com certo temor – Vamos nos acalmar, nós vamos sair daqui, vamos voltar pra nossa tribo e seremos reconhecidos, só precisamos aguentar essa noite

- Eu quero voltar agora, agora – disse chorando Iamana

O abracei e disse:

- Nós vamos voltar, eu prometo tá ? mas não agora, temos que passar a noite e completar nossa missão, ok ?

Beijei a testa de Iamana ajeitando seu cabelo e olhei pra Upiara e ele que mesmo sendo dois anos mais novo parecia ser tão corajoso quanto eu, se encolhia tremendo no canto da cabana. Eu honraria minha promessa de cuidar deles, nossa mãe podia ter morrido, mas eu não teria o mesmo destino dela, estaria ali pra eles. Foi a última coisa que pensei antes de cair no sono e nos meus pesadelos algo me esperava

- MATE!MATE!SANGUE, SANGUE! EU QUERO!

- Quem é você ?

- Eu sou wichi – respondeu uma voz demoníaca – sou seu fim, o espirito de sangue, o metamorfo da lua

- O que você quer ?

- QUERO MORTE....MORTE – Surrurou

Suas palavras soavam como loucura, como morte, como se elas sugassem minha sanidade

- QUERO QUE MATE SEUS IRMÃOS, SE BANHE EM SANGUE, SE GLORIFIQUE NELE E EU POUPAREI SUA TRIBO

Comecei a me imaginar cravando minha faca na goela de Iamana e nas costas de Upiara repetidas vezes, eu seria a única salvadora da tribo e me banharia no sangue deles. Aquela ideia me soava deliciosa...

- Não, não, sai da minha cabeça – Gritei

Acordei em um pulo assustada, olhei pro lado e meus irmãos dormiam. Peguei minha faca e pensei comigo mesma : eu mataria esse demônio com minhas mãos, levantei, acordei os dois

- Vamos, nós vamos caçar aquela coisa! – disse destemida

- Você tá louca ? nem morto – disse Upiara

- Deixa de ser covarde, nós damos conta – disse soando confiante em meu medo

Saímos da cabana, os dois atrás de mim, caminhamos, era preciso caçar, a vida toda fomos treinados para caçar nosso alimento e agora era hora de caçar quem nos perseguia...será que era possível capturar o horror? a loucura ? Caminhamos até que nos deparamos com um cervo, ele tinha uma luz azul em seus olhos, foi ai que lembrei da história de Anhangá, o deus que assumia a forma de animais, protetor das florestas e também deus do inferno...ele parecia querer que o seguíssemos e assim fizemos. Caminhamos por um bom tempo, até que percebi o que ele tinha feito, ele tinha nos ajudados, havia no levado de volta para a trilha, queria que voltássemos para nossa tribo. Ele parecia inquieto, como se tivesse medo de algo ou de alguém...de repente um uivo rasgou toda angustia e o cervo correu na direção do som, talvez fosse atrasar a besta, talvez o medo que sentisse era por querer fugir...um deus com medo, apavorado...corri com meus irmãos pela trilha rumo ao caminho da tribo, até que...algo estranho me ocorreu, um pensamento que assim como uma semente havia crescido em mim após aquele sonho, se eu matasse tal criatura seria a primeira não só a trazer a colheita, mas há destruir um grande mal ? Haveria proeza maior que essa? Eu seria considerada uma divindade tupi. Foi ai que comecei a escutar sussurros na minha cabeça

“Imagine a glória, o banho em ouro de me matar, de me esquartejar, de levar minha cabeça...imagine o sabor da morte...o prazer, o sabor da conquista...banhada por sangue....morte....morte....toda vitória vem da dor e sofrimento....esquartejar, saborear, sentir, sangue, sangue....vem me matar”

Era aquela voz de novo e ecoava em cada pequeno espaço da minha cabeça, alucinações passavam por mim e paralisada eu imaginava as glórias, o reconhecimento, eu seria uma deusa.

- Anahí, Anahí, Anahí, o que foi? Por que você parou? – Perguntou Upiara

- Han...nada, nós não vamos voltar, não agora, eu vou matar aquela criatura

- Anahi, deixa de ser louca, aquilo é um demônio, vai nos matar, por favor, vamos voltar – disse suplicando de joelhos Upiara, enquanto agarrava minha mão e começava a lacrimejar. Tirei a minha mão, dei um tapa na cara dele e gritei:

- COVARDE! EU VOU MATAR AQUILO, SE QUISER PODE IR SEU INÚTIL CHORÃO

Iamana começou a chorar e Upiara também

- CALEM A BOCA SEUS PIRRALHO DE MERDA !

Nesse momento comecei a escutar o som de uma flauta, como se fosse um convite para dentro da floresta, foi ai que lembrei que Iamana tinha perdido sua flauta enquanto éramos guiado pelo cervo, pensei : Deve ser a criatura me chamando e eu caminhei em direção ao som

- Anahí...Anahí... – gritavam chorando os dois – não vá, não vá

Olhei e os dois estavam ajoelhados chorando apavorados, dei os ombros e segui em caminho a glória, enquanto eu caminhava sentia algo tomar posse de mim...um poder, uma coragem desumana, uma força divina, talvez demoníaca, algo sobrenatural tomava meu corpo, era como se eu deixasse de ser uma jovem curumim e me transformasse em....terror, em pesadelo, eu causava medo agora. E as vozes em minha cabeça, as visões de morte, de sangue se espalhando pelo meu corpo, de carne se rasgando, ah...aquilo tomava conta de mim. Avistei de longe a criatura, que parecia me esperar, lentamente fui a seu encontro, ele uivou como se algo grandioso estivesse pra acontecer e aconteceu...enfiei a faca em sua barriga repetidas vezes, como se esfaqueasse todos os meus temores, de novo, de novo e de novo e a cada corte, a cada gota de sangue derramada por aquela besta, a cada uivo de dor eu me enchia de prazer e a lua sangrenta lá em cima dava risada e eu também. Até que percebi que estava esfaqueando Upiara e Iamana no lugar da criatura, meus dois irmãos, minhas mãos estavam cobertas do meu próprio sangue...eu havia matado com tanto ódio e prazer, sem perceber que aquela criatura assistia ao meu lado o espetáculo, a vida dos meus irmãos tinha chegado ao fim, mas a minha parecia só começar. O vermelho da lua começou a escorrer e então uma chuva de sangue começou a cair sobre mim, era como se eu me tornasse a própria lua, liberta na carnificina de meus irmãos e é assim que essa história termina, com uma risada macabra, dei as mãos para wichi e caminhamos na floresta...rindo e cantarolando, esperando pela próxima colheita...agora vocês conhecem a minha história, me tornei lenda, não deixem de contar o que eu fiz, para que todos saibam da loucura e do prazer de matar

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Apreciadores (10)
Comentários (1)
Postado 21/10/21 14:25

"As folhas e os arbustos podiam esconder em suas sombras bem mais que animais rastejantes..." - A história já começou muito boa, mas hora que chegou nessa frase, eu pensei: agora sim, vai ter algo de bizarro e maravilhoso nessa história. E teve mesmo!

Adorei as vozes, e a menina sucumbindo ao desejo de morte!

"O vermelho da lua começou a escorrer e então uma chuva de sangue começou a cair sobre mim, era como se eu me tornasse a própria lua" - Essa foi com toda certeza a minha parte preferida! Simplesmente amei que no final ela acabou matando os próprios irmãos! E essa descrição da chuva de sangue foi linda e perfeita!

Meus mais sinceros parabéns por você ter escrito esse conto fantástico. Amei a temática indígena!

Um grande abraço <3